O importante documento agora divulgado pelo Departamento do Trabalho Ideológico do Partido FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) é um texto produzido pelo Camarada Presidente Samora Moisés Machel, em Dezembro de 1970, para estudo dos instrutores dos Centros de Preparação Político–Militar da FRELIMO.
Vivíamos então um momento de grande agudização da luta — agudização da luta militar contra o colonialismo português e do combate ideológico no seio da própria FRELIMO.
De Maio a Novembro desse ano enfrentáramos e derrotáramos a maior ofensiva militar jamais desencadeada pelo colonialismo português, a “Operação Nó Górdio”.
A Sessão do Comitê Central, realizada de 9 a 14 de Maio, expulsara da organização o reacionário Uria Simango e elegera o Camarada Samora Moisés Machel para Presidente — o que representou a vitória definitiva da linha revolucionária no seio da FRELIMO. A mesma Sessão clarificara e aprofundara a definição dos objetivos da nossa, luta, assim como a definição do inimigo.
Era particularmente urgente, nesse momento, formar quadros político–militares em número e em qualidade — quadros que fossem capazes, por um lado, de impulsionar e dirigir a luta militar em todas as frentes, numa fase em que a derrota da grande ofensiva colonialista nos deixa a iniciativa estratégica no terreno. Quadros à altura de assumir, por outro, lado, o salto qualitativo dado pela luta e pela própria organização.
Foi nesse contexto que o Camarada Presidente Samora Machel elaborou o presente documento de estudo.
O texto aborda, com rara profundidade, uma das questões fundamentais, questão permanente, da Revolução: a necessidade de nos transformarmos no processo da luta, de rompermos radicalmente com os valores, os hábitos, o estilo de vida da velha sociedade que pretendemos destruir.
Nesta perspectiva, o Camarada Presidente analisa a origem social dos novos combatentes que chegam à luta, a carga ideológica negativa que transportam consigo e as formas de desencadear o combate pela sua transformação.
Ele define a consciência nacional e a consciência de classe como as armas fundamentais com que é preciso dotarmo-nos, ao nível ideológico, para que possamos vencer as ideias velhas trazidas das sociedades colonial e tradicional.
Hoje, volvidos quase nove anos, o texto do Camarada Presidente, nas análises que faz e nas orientações que transmite, permanece completamente atual. Porque, se mudaram algumas circunstâncias, não mudou a questão central do combate ideológico que, hoje como ontem, travamos: a transformação do Homem, a criação do Homem Novo.
Pela sua profundidade, pelo seu rigor teórico, pela sua grande qualidade didática, este texto é um documento de estudo muito valioso que nos ajudará a compreendermos melhor as nossas tarefas e a forma de executá-las mais corretamente.
Departamento do Trabalho Ideológico da Frelimo
Maputo, Maio de 1979
A nossa tarefa é formar combatentes revolucionários, é formar homens que, através da luta armada, destruam o inimigo e criem condições para construir uma sociedade nova.
Formar homens quer dizer dar-lhes uma base política, científica e física que os torne aptos ao cumprimento das tarefas que lhes são fixadas.
Mas, para isto, há um certo número de questões que devem ser resolvidas. Quem são os homens que formamos? Aonde os integraremos? O que procuramos obter com a nossa formação? Como fazê-lo? Quais as dificuldades e obstáculos que limitam a realização desta tarefa?
São estes os problemas concretos que devemos assumir para compreender e podermos levar a cabo a missão que a FRELIMO nos confiou.
I — OS HOMENS
Os homens são a nossa matéria-prima. Estes homens que queremos transformar em combatentes revolucionários vêm das situações mais diversas, cada um deles possui uma experiência que lhe é própria e diferente da dos outros. Todavia entre todos eles há dois laços comuns: são todos moçambicanos explorados com consciência da opressão que sobre eles se exerceu e, querendo libertar–se destes males do colonialismo, todos eles veem na FRELIMO, veem na luta armada de libertação nacional a única via de resolução dos seus problemas.
Há os que vêm para nós provenientes das minas e das fábricas, das plantações e dos portos, dos campos e das cidades. Há também os que vêm dai escolas e das universidades e os que desertaram do exército ou administração coloniais. Há ainda os que eram vadios ou criminosos, os que viviam nas missões ou nas casas dos colonos.
Entre eles, há os que vêm das zonas Libertadas ou semi-libertadas e os que vêm das regiões ainda ocupadas pelo inimigo. Os primeiros já têm, um mínimo de integração na nossa vida; os últimos só conhecem hábitos e valores que não são os nossos. Mas todos eles estão ainda mais ou menos carregados dos pesos mortos da sociedade antiga. Desta diversidade queremos fazer combatentes revolucionários.
Desta disparidade de ideias, desejos, vontades que refletem o mundo antigo, queremos fazer homens profundamente embebidos da nossa ideologia, com a sua vontade e os seus desejos orientados totalmente para o serviço da revolução e do Povo trabalhador.
II – ONDE OS INTEGRAR?
Estes homens devem ser integrados na FRELIMO, devem ser integrados nas Forças Populares de Libertação de Moçambique. Eles devem ser integrados numa ideologia e numa vida que os conduzam a consagrar a totalidade das suas energias à construção da sociedade nova.
A integração, na nossa disciplina, de elementos vindos duma vida diferente da nossa, é uma tarefa particularmente dura.
A disciplina é a concordância do nosso comportamento e ideias com os princípios e regras que regem a nossa vida de militantes do Partido, de soldados das Forças Populares de Libertação de Moçambique e de servidores das massas.
Vemos pois que são os princípios e as regras revolucionárias que definem o ponto de partida da nossa disciplina.
Um desertor do exército colonial ou um civil vindo da zona inimiga, vêm habituados a uma obediência cega aos comandantes no exército ou aos administradores coloniais. Essa obediência é fruto do terror inspirado pela repressão colonial. A sociedade dos exploradores obriga os explorados a obedecer às suas ordens, a viver a disciplina de terror que ela inspira.
Quer isto dizer que, ao integrarmos na nossa disciplina um elemento vindo da zona inimiga, seja ele civil ou militar, temos primeiro que ó libertar do terror que lhe inspira um superior, libertá-lo da obediência passiva. Esse elemento deve, em seguida, ser levado a compreender e a amar a nossa vida, para que possa viver conscientemente os princípios e as regras que a conduzem.
Da mesma maneira, um elemento que vem duma povoação, mesmo que seja na zona controlada por nós, ainda traz em si valores, ideias e hábitos totalmente opostos à nossa vida. A sua sociedade ainda está orientada para o tribalismo, para a superstição, para o culto do passado e da tradição e isto são elementos negativos cultivados como virtudes. Essa sociedade é ainda uma sociedade em que o homem é explorado, a mulher oprimida, a juventude reprimida, a iniciativa criadora atrofiada.
Os hábitos de vida correspondem a determinadas situações e valores. Se, numa povoação, por exemplo, há um alarme, os seus habitantes reúnem-se de maneira desordenada, dispersa, fazendo barulho, movimentando-se. Num campo, ao contrário, ao sinal do apito, os homens concentram-se numa formatura, cada um no seu lugar, em silêncio, ordenados, prontos a enfrentarem a situação. Este exemplo é claro e basta-nos para contrapor as duas linhas. Na nossa vida tudo é ordenado e coletivo: o movimento, o tempo, as ações e as tarefas. Na vida do inimigo ou na sociedade antiga tudo é desordenado: o movimento, o tempo e as ações são da iniciativa exclusiva de cada indivíduo.
Um soldado, desde que inicia a sua instrução e logo na sua primeira marcha, aprende a delimitar o seu setor, a integrar-se no coletivo. No simples ato de alinhamento, o soldado vê qual é a sua zona e qual a zona do seu camarada. Ao acertar o seu passo, ao integrar-se no ritmo e estilo da marcha ele aprende o valor do coletivo, ele verifica imediatamente que qualquer ato errado seu prejudica o conjunto, ele aprende o valor da coletividade e a sua responsabilidade para com ela.
Precisamos de libertar o homem da falsa disciplina em que foi formado pela sociedade tradicional. Destruir a obediência aterrorizada diante dos espíritos inexistentes, mostrar-lhe a necessidade do progresso contra a tradição paralisadora, demonstrar-lhe a igualdade da mulher, a necessidade de a juventude dinamizar a sociedade pela sua iniciativa.
O problema de integração numa disciplina, o problema de integração na nossa vida, é um problema de transformação da consciência do homem.
III—ASSUMIR OS NOVOS VALORES
Trata-se de destruir aquilo que a sociedade exploradora, colonial ou tradicional, cultiva como valores, para fazer assumir ao homem os novos valores da sociedade sem exploração que queremos construir.
Na sociedade tradicional, a etnia, a tribo, a região, são valores. Um homem não é julgado pelas suas qualidades, mas sim pela sua origem étnica. Desprezamos alguém, por exemplo, porque nos foi ensinado que ele pertence a uma tribo de escravos.
O colonialismo atiçou estas divisões e introduziu outras. Criou conflitos entre as diferentes religiões, criou uma atitude de desprezo pelos trabalhadores e uma atitude de respeito e admiração pelos ricos, pelos exploradores.
Nós queremos introduzir no homem novos valores. Queremos que ele assuma a dimensão nacional do nosso país, queremos que ele seja um patriota Moçambicano. Só assim o homem de Cabo Delgado será capaz de levar a luta até ao Maputo, só assim o homem de Tete estará pronto a combater em Manica e Sofala ou o homem de Gaza aceitará sacrificar-se em Niassa.
O nosso valor é a Pátria Moçambicana. Afirmar este valor significa destruir o tribalismo ou o regionalismo, cultivados como virtudes pela tradição. N6s necessitamos que cada combatente assuma a dimensão de classe da nossa luta. Não é cultivando as falsas solidariedades de família, de tribo, de religião que podemos definir corretamente o nosso inimigo. Mais do que ninguém, o combatente, o militante da FRELIMO, devem saber contra quem dirigir as suas armas. A única família ou tribo é o Povo trabalhador e explorado, a única religião é a de servir as massas. O criador é o homem, integrado no esforço coletivo da sociedade livre.
A dimensão de classe é a única que nos permite definir o inimigo corretamente e diferenciar claramente entre o que pertence à nossa zona e o que é do inimigo.
É ainda a dimensão de classe que, levando-nos a distinguir os amigos dos inimigos, nos conduz ao internacionalismo, à solidariedade entre todos os povos e com todos os combatentes da libertação do homem.
Ao assumirmos os valores fundamentais de Pátria e de classe, assumimos as e exigências que estes valores comportam. Assumimos, por consequência, o sentido de responsabilidade pari coar as massas que servimos, o valor do espírito coletivo e da ação coletiva.
Na sociedade colonial-capitalista, em que o individualismo é cultivado por todos os meios, uma pessoa aprende a interessar-se apenas pelos seus próprios bens, apenas pelo bem-estar da sua família e daqueles que lhe estão mais próximos. O interesse pessoal é difundido a todo o custo, mesmo se com isso os interesses dos outros são prejudicados. No fim de contas, são estes princípios que constituem a moral da sociedade de exploração do homem pelo homem.
Na sociedade tradicional o individualismo é absorvido em favor do espírito familiar, clânico e tribal. A opressão doutra tribo, o desprezo por uma outra etnia, são justificados pela pretensa superioridade da tribo ou da classe que oprime e explora.
Quer dizer: nos dois casos, os valores coletivos, o sentido de responsabilidade para com a coletividade, não existem.
Quando alguém é integrado na FRELIMO, impõe-se que ele adquira estes valores essenciais da nossa vida.
Vemos que certos camaradas esbanjam os bens do Partido, outros não tratam com cuidado e amor os materiais que lhes são confiados. Há quem não se sinta satisfeito quando lhe é confiada a tarefa de ir cavar uma cisterna ou destroncar uma mata. Há ainda os que consideram que existem na FRELIMO grandes e pequenas tarefas.
Estas atitudes são reflexo da falta de sentido coletivo, da ausência da noção de responsabilidade para com a coletividade.
Na FRELIMO, tudo o que fazemos, tudo o que cada um de nós possui, e todos os objetos ou o material que nos são confiados, destinam-se ao serviço das massas, ao triunfo dos ideais do Partido. Se, por exemplo, nós damos sabão ou uma escova de dentes a um militante, é porque estamos conscientes do valor da saúde desse militante para o cumprimento das tarefas revolucionárias. Se confiamos um caminhão a um motorista, é porque esse caminhão e o seu trabalho são de grande relevo para a nossa luta.
Possuir um sentido coletivo é assumir que o indivíduo se valoriza na medida em que ele souber consagrar as suas energias para o progresso das massas e da revolução. Possuir um sentido de responsabilidade para com a coletividade é compreender que qualquer objeto ou material que nos é confiado, qualquer missão que nos é transmitida se destinam, em última análise, ao progresso das massas e da revolução. É por isso que, no nosso seio, o não cumprimento duma ordem dada por um responsável, ou o cumprimento dessa ordem com má vontade, é uma violação grave da nossa disciplina. A ordem é uma exigência de um responsável aos elementos que lhe são confiados para o cumprimento de uma tarefa que corresponde aos interesses das massas, do Partido, da revolução.
Na sociedade colonial, a ordem representa a vontade do superior, do opressor, a sua violação é reprimida. Na sociedade tradicional, a ordem exprime, como na sociedade capitalista, a exploração duma classe por outra ou o peso da superstição na sociedade. Desobedecer a uma ordem, nestes casos, pode ser um ato corajoso, um ato positivo. Ao pegarmos em armas desobedecemos à ordem dos exploradores, lutamos contra essa ordem. Revoltar-se contra a ordem dos exploradores e dos reacionários é uma coisa boa, é a base da nossa ação.
No nosso seio, não cumprir uma ordem ou executar uma tarefa sem alegria, sem vontade de a cumprir com perfeição e amor, reflete falta de valores coletivos, falta de sentido de responsabilidade coletiva. Para um responsável, dar uma ordem injusta, uma ordem contrária aos interesses do povo e do Partido, uma ordem que abra as portas à corrupção e que instale o inimigo no nosso seio, é um crime gravíssimo, um crime que deve ser punido severamente. Esse crime cria a desconfiança entre superiores e inferiores, instala o inimigo na nossa zona.
A formação da nova mentalidade não poderá ter lugar sem que o homem possua uma mentalidade científica, objetiva, materialista.
Tal como numa arma, onde, se falta uma das peças, o conjunto não funciona, da mesma maneira não nos é possível, por exemplo, assumir a consciência de classe, porque o regionalismo nos domina, vemos num explorador um irmão de região. Não é concebível que uma pessoa possa demarcar a nossa zona da zona do inimigo quando o seu subjetivismo lhe faz confundir o que é do inimigo com o que é nosso. Por exemplo, não definir um desertor como um inimigo só porque é preto, é utilizar um critério subjetivo. É a partir do objetivismo e do materialismo que podemos construir a nossa base científica. Uma vez que o homem compreende que os fenômenos da natureza se explicam pela natureza (materialismo) e que um fenômeno deve ser interpretado e compreendido nos seus dados reais (objetivismo), torna-se possível mobilizar a natureza, as suas leis, para transformar a natureza em proveito do homem. Esta é a base da ciência e de uma concepção científica da vida.
A concepção científica é objetiva e materialista. Só ela é capaz de fornecer os instrumentos necessários para transformar a natureza. A ciência nasce quando o homem compreende que tudo quanto existe é criado pelo homem e pela natureza, que toda a sociedade resulta da combinação entre o homem e a natureza.
É então que o homem é capaz de agir para transformar a natureza (progresso) e de criar a sociedade que corresponde às exigências das massas populares. É só quando deixamos de ver na seca uma vontade dos espíritos, para compreender que ela é um fenômeno natural, que podemos criar as barragens e canais de irrigação que tornam a seca impossível.
É quando deixamos de acreditar que a exploração do homem ou a existência de classes opressoras correspondem a uma determinação divina que somos capazes de derrubar a sociedade injusta para construir a sociedade nova. É quando deixamos de pensar que haverá uma outra vida com um paraíso para os que sofrem neste mundo, que estamos prontos para lutar contra a existência da opressão, da miséria e do sofrimento nesta vida.
A destruição da superstição no exército é tanto mais importante e necessária, quanto a crença nela nos pode conduzir a derrotas e sacrifícios inúteis. O combatente que acredita na “segurança” divina e despreza a camuflagem, serve de alvo à bala inimiga. O combatente tem de compreender que a sua vida, a vitória, dependem unicamente da combinação da sua inteligência com o terreno e com a arma. Não é nos espíritos que se encontra a destruição do inimigo e a conservação da nossa força.
Ao exaltarmos os nossos valores, nós trabalhamos para fazer progredir o homem e destruir os valores que caracterizavam a sociedade antiga, capitalista, colonial ou tradicional.
IV— OS MÉTODOS DE INTEGRAÇÃO
Definimos já os nossos objetivos na instrução, o que queremos fazer com os homens que nos são confiados para a instrução. Ao falarmos dos valores que queremos fazer assumir pelos combatentes, estivemos a definir o que entendemos realmente por combatente revolucionário, por militante da FRELIMO, por soldado do nosso exército popular.
Uma vez que tornámos claros quais são os nossos objetivos, é-nos agora possível definir e compreender os nossos métodos.
Os nossos principais centros de formação são os Centros de Preparação Político-Militar. Os instruendos vêm formar-se nos CPPM, é aqui que eles começam a ser integrados na nossa vida, recebem a instrução ou vêm reciclar-se.
Os nossos métodos de formação correspondem integralmente à nossa palavra de ordem de Estudo, Produção e Combate. Por estudo nós entendemos a educação física, técnica e científica. No estudo existe uma troca de experiências e conhecimentos entre instrutores e instruendos, entre os instruendos, e entre os instrutores.
No estudo científico podemos distinguir dois aspectos principais. O primeiro aspecto é a assimilação da nossa ideologia revolucionária que é uma ideologia científica, porque baseada nos dados objetivos da natureza, do homem, da sociedade, e porque se fundamenta no método científico do materialismo dialético. O segundo aspecto é constituído pela alfabetização dos camaradas iletrados, pelo estudo das ciências e pela elevação do nível cultural e científico da totalidade.
Na fase atual, a direção e as estruturas da FRELIMO preparam-se para introduzir no exército normas e métodos que permitam a elevação gradual e contínua do nível científico e cultural das nossas forças. É neste contexto que se integra a decisão da II Conferência do Departamento de Educação e Cultura (DEC) em organizar cursos por correspondência.
No estudo da tática também encontramos dois aspectos principais: o estudo das técnicas militares e o estudo das técnicas não-militares.
É evidente que o estudo das técnicas militares é o aspecto mais importante da tarefa confiada aos CPPM, é o aspecto principal da missão a ser cumprida pelos instrutores. Neste setor nós procuramos que o homem, consiga integrar harmoniosamente, num ato único, a sua inteligência com a arma e o terreno. O objetivo da técnica militar é o de libertar a inteligência criadora que, dominando a arma e sabendo utilizar o terreno, a seu favor, conduz à destruição do inimigo.
Um aspecto particularmente importante na técnica militar, refere-se à preparação física, ao treino físico do combatente. O executor das tarefas que são confiadas é o corpo. Uma inteligência privada do uso da força física, torna-se estéril porque incapaz de pôr em prática as suas decisões. É evidente que a força física, por muito importante que seja, sem a inteligência, resume-se a uma força bruta sem utilidade prática. O homem, embora mais fraco fisicamente que o elefante, mata o elefante e constrói máquinas muito mais potentes que qualquer elefante!
Necessitamos, pois, da força física coordenada com a nossa inteligência. Necessitamos de preparar o nosso corpo para cumprir as instruções dadas pela inteligência, para executar as decisões da vontade.
A educação física do nosso corpo faz-se sobretudo através da ginástica, das marchas e do desporto.
Nos CPPM também devem ser estudadas outras técnicas. Todos sabemos a importância que o nosso Partido e o nosso exército dão à produção. Nos nossos CPPM os combatentes devem enriquecer as suas técnicas de produção, de maneira que possam em seguida introduzir novos produtos e novas técnicas de produção nas zonas em que vão operar. Assim, por exemplo, ensinamos a cultivar tomate e mandioca, alface e cenoura. Devemos ensinar a utilizar fertilizantes naturais e a lutar contra a prática de queimar o mato. Devemos melhorar, enriquecer e sistematizar esses trabalhos. Importa que, nas horas de instrução consagradas à produção, se introduzam aulas teóricas de produção que ajudem a melhor compreender as técnicas e métodos novos e, assim, desenvolver a prática.
A produção no CPPM não pode ser uma rotina ou uma maneira de ocupar o tempo. A produção é um ato de formação, um ato de educação. É por isso que nós insistimos em combinar a produção com o estudo, de modo a que, na nossa terra, se introduzam novas técnicas e novos métodos. Quanto mais combinarmos a inteligência com a terra, mais e melhor produziremos, menos dificuldades enfrentaremos, mais livres seremos das calamidades naturais.
Insistirmos na produção nos CPPM significa também uma afirmação política. Com efeito, é pela produção que resolvemos os problemas das massas. E na produção, no esforço coletivo e combinado da nossa inteligência com a nossa força, que forjamos as boas relações, destruímos a desconfiança e aprendemos a unirmo-nos, a respeitarmo-nos e a amarmo-nos.
É na produção, no trabalho físico, que destruímos as barreiras artificiais entre camaradas instruídos e camaradas não instruídos, entre os estudantes e intelectuais e os analfabetos.
A produção é a aplicação da nossa inteligência e força à terra para melhor proveito da coletividade.
Os nossos métodos de formação aplicam-se também no combate. É certo que o combate, a liquidação física do inimigo é o objetivo principal do exército popular. O que define, o que caracteriza primeiramente o exército e o distingue de todas as outras instituições, é o seu objetivo de combate para a liquidação física do inimigo.
Mas aqui, ao falarmos de combate, ao dizermos que o combate é um dos nossos métodos de formação, não nos referimos apenas à liquidação física do inimigo.
Há duas espécies de inimigo: o que vive fisicamente fora de nós, fisicamente fora das nossas zonas, como os portugueses, os Simangos e Nkavandames; e o que vive conosco dentro da nossa zona, dentro da nossa própria cabeça. É este inimigo escondido; vivendo na nossa sociedade, vivendo na nossa cabeça, que queremos liquidar pelo combate moral.
Como dissemos anteriormente, todos nós crescemos, fomos educados e vivemos em sociedades em que o homem era explorado, a mulher oprimida, a juventude discriminada. Essas sociedades cultivam como valores aquilo que para nós são vícios e defeitos graves e, ao mesmo tempo, consideram como coisas desprezíveis aquilo que nós estimamos como virtudes.
É claro que hoje vivemos na revolução, a nossa vontade orienta-se no sentido de construir uma sociedade nova, diferente da sociedade do inimigo, da sociedade velha. Todavia, a nossa cabeça, os nossos sentimentos e gostos ainda estilo cheios dos vestígios do que é antigo.
Num quarto onde existe porcaria é preciso que a vassoura venha varrer, que ela penetre nos cantos e por baixo dos móveis, porque só assim se limpará a sujidade.
Se a vassoura não penetra fica ainda porcaria. Assim acontece conosco. Se não travamos um combate sério contra o podre que está na nossa cabeça, contra o podre que existe na nossa zona, esses representantes do inimigo no nosso seio, cedo ou tarde vão-nos desunir e destruir.
Combatemos contra o inimigo moral através dos ensinamentos dos nossos dirigentes, das reuniões, das sessões de crítica e autocritica e, sobretudo, pelo esforço feito por cada um e por todos.
É evidente que o exemplo é uma arma poderosa, quer neste combate, quer na formação em geral. Os instruendos aprendem a conhecer a nossa vida e a nossa mentalidade, sobretudo pelo exemplo que damos.
De nada servirá falarmos contra a superstição se o instrutor anda carregado de amuletos para se proteger das balas, ou passa a vida a benzer-se para afastar o inimigo. E nulo o efeito de lutar contra o alcoolismo se o instrutor é o primeiro a embebedar-se. De nada serve andarmos a gritar que queremos emancipar a mulher se um elemento do destacamento feminino é engravidada por corrupção do instrutor. É perdermos tempo querermos criar um sentido de responsabilidade em relação a coletividade e um espírito coletivo, quando o exemplo que damos é o de irresponsabilidade e individualismo.
Mostremos a diferença entre a vida da nossa zona e a do inimigo, entre a nossa mentalidade e a do inimigo, pelo nosso comportamento. Podemos dizer que o principal método de formação é o exemplo que damos. Este é o método que, se fracassar, causará o fracasso de todo o nosso trabalho.
V — AS DIFICULDADES NA NOSSA MISSÃO
No cumprimento da nossa tarefa de formar homens, temos de fazer face a diversas limitações que dificultam o cumprimento da nossa missão. Uma parte das limitações são nossas, outra dos camaradas que se vem formar.
As nossas limitações resultam de três causal principais: os vestígios da sociedade antiga, as deficiências da nossa formação científica e cultural, e, finalmente, o espírito de rotina.
No decurso deste trabalho já abordamos os dois primeiros problemas e falimos dos métodos para os resolver. Discutiremos agora o espírito de rotina.
O espírito de rotina conduz-nos a trabalhar fora das realidades e necessidades. fazermos as coisas não porque elas correspondem a exigência de uma situação, mas sim porque assim as fazíamos anteriormente. É o “é assim que fazemos», “foi assim que aprendi”, erigido em dogma, sagrado, imutável. Qualquer ideia nova, qualquer iniciativa, é combatida imediatamente apenas porque põe em causa a rotina estabelecida. A evolução da ação inimiga, o significado do crescimento das nossas forças, tudo isso passa despercebido diante dos adoradores da rotina. Para eles não é a instrução que deve acompanhar a realidade, mas é a realidade que deve obedecer a rotina que eles criaram. Este espírito traduz uma grande preguiça mental, uma incapacidade em assumir as novas situações e as suas exigências. Ele demonstra ainda um espírito de arrogância, um complexo de superioridade que leva a rejeitar todas as iniciativas e sugestões, uma incapacidade de aprender com os outros, em aprender com a situação.
Entre os camaradas que vêm ser preparados, as limitações também são importantes. Já vimos a importância dos pesos mortos, das deformações criadas quer pela sociedade colonial, quer pela sociedade tradicional.
Vamos agora analisar dois pontos insuficientemente, tratados noutros capítulos.
O colonialismo, o capitalismo, para melhor explorar as massas, necessitava de as dividir. Ele criou e atiçou as contradições entre trabalhadores urbanos e trabalhadores rurais, entre “assimilados” e “indígenas”, entre os intelectuais e alfabetizados e os não-intelectuais e iletrados. Aos primeiros foi ensinado que eles eram superiores, dirigentes natos dos segundos, que lhes cabiam os lugares de comando, as honras, os privilégios, enquanto aos segundos eram reservadas as tarefas de servir e os trabalhos pesados.
Isto é uma concepção que pertence a burguesia e não é nossa. Nós aprendemos uns dos outros. Nós não conhecemos tarefas pequenas ou tarefas grandes. O espírito de arrogância e os complexos de superioridade devem ser destruídos pela crítica e autocritica, pela participação nas tarefas de produção e no trabalho manual.
Oposto a isto e igualmente negativo é o espírito de passividade, resultante de um complexo de inferioridade. Ele aparece entre os camaradas vindos das zonal rurais, analfabetos, e entre as mulheres: Tendo sempre vivido numa sociedade que os explorava e dominava, tendo-lhes sido sempre dito que eles eram ignorantes e incapazes, tendo sempre ouvido condenar as ideias novas e o espírito de iniciativa, habituaram-se a uma passividade total, a aguardarem sempre que lhes digam o que fazer, que lhes mostrem o caminho.
O fato de terem aderido a FRELIMO, de terem compreendido que a luta pode mudar a sociedade, foi certamente um passo enorme para eles, o começo da destruição do seu espírito de passividade.
O importante é encorajar estes camaradas, é ser paciente, atento e compreensivo para as suas dificuldades de aprender. Estimula-los continuamente a pensarem par si, a tomarem iniciativas e, sobretudo, explicar-lhes que tudo aprendemos com o povo, e a força decisiva da revolução encontra-se na iniciativa criadora das massas populares.
CONCLUSÃO
A instrução é uma das tarefas mais difíceis e mais necessárias que um militante pode receber.
Para compreender esta tarefa o militante deve primeiramente tornar-se exemplar no seu comportamento de maneira a poder realmente mostrar o caminho aqueles que lhe são confiados. Em seguida, o militante que é instrutor deve-se esforçar por elevar continuamente o seu nível de conhecimentos políticos, militares, científicos, técnicos e culturais, de maneira a poder responder à complexidade crescente dos problemas da guerra e da reconstrução nacional.
Texto originalmente publicado no site marxists.org, disponível neste link.