Ensaio de Luciano Canfora para o livro “Stálin: História Crítica de uma lenda negra” de Domenico Losurdo, publicado originalmente em 2008.
Uma regra rigorosamente respeitada pelos historiadores do Império consistia em que nada se dissesse do príncipe ou imperador reinante enquanto ele estivesse vivo. O historiador seguinte se ocuparia dele, o qual se calaria, por sua vez, acerca do príncipe reinante do seu tempo. Justiniano teve, sob este aspecto, um destino um pouco diferente, mas muito sintomático. Foi, de fato, o mesmo historiador, Procópio de Cesareia, que pôs em circulação, enquanto Justiniano estava vivo, numerosos livros de história que exaltavam a sua grandeza, sabedoria, guerras vitoriosas etc., mas que ao mesmo tempo mantém em reserva — destinada à circulação depois da morte do príncipe — uma História secreta, na qual Justiniano é feito literalmente em pedaços e aparece como o receptáculo de toda iniquidade, fraqueza e crueldade inútil, além de vaidade em se atribuir méritos que eram de outros. A História secreta foi escrita em torno de 558, Justiniano morreu em 14 de novembro de 565 aos oitenta e três anos. Morto o imperador, a História secreta se encarregou de demolir o vencedor dos godos, o reconquistados da Itália e o restaurador da unidade do Império. Os modernos podem livremente oscilar entre os dois extremos, como entre os dois retratos de Stalin escritos por Nikita Kruschiov: de um lado, o relatório ao XIX congresso do PCUS (outubro de 1952), no qual todo o mérito da força econômica, militar, social da URSS é atribuído ao “nosso amado chefe e mestre camarada Stalin”; do outro lado, o Relatório Secreto, lido na sessão reservada ao XX congresso do PCUS (fevereiro de 1956), cerca de três anos depois da morte de Stalin. Aqui, como na História secreta de Procópio, o “amado mestre” é apresentado como um tirano ridículo, fraco e sanguinário (tanto que era quase incompreensível como tivesse podido governar por tanto tempo e com o apoio de infinitos Kruschiov). A visão, de matriz tolstoiana, que visa anular a “grandeza” das “grandes personalidades” da história é sem dúvida um bom antídoto para a historiografia heroicizante. Mas ela não consegue explicar aquele laço entre mesquinhez individual e eficácia política que faz com que algumas personalidades acabem sendo o epicentro de eventos e de transformações epocais, que os pósteros continuarão a considerar tais apesar de todas as possíveis “histórias secretas”.
Santo Mazzarino — um dos maiores historiadores italianos — costumava comparar Stalin com Justiniano por terem sido ambos grandes construtores, grandes déspotas e grandes intolerantes.
Entre 565, ano da morte de Justiniano, e o breve e catastrófico reinado de Focas (607-610), se desfaz a grande construção justiniana. A reconquista do Ocidente, e em particular da Itália, é esvaziada. Focas se revelou incapaz, durante o seu breve reinado, de enfrentar insurreições, ataques externos, a difusão de uma crescente anarquia, até que, em 610, Heráclio, filho do governador da província de África, conquistou Constantinopla de um só golpe e fundou uma nova dinastia. O confronto, certamente só em parte correto corno todas as comparações historiográficas, é entre Justiniano e Stalin, de um lado, e Focas e Gorbatchov do outro.
As simplificações nem sempre são benéficas, mas podem dar uma ideia. A coisa não boa, em minha opinião, é que muitas vezes se renúncia, ainda agora, a falar de Stalin com mente lúcida, como, diversamente, se faz agora para Robespierre ou outros “sanguinários” advogados da “revolução”. Dão um tiro no pé, em vez de pesar os prós e os contras.
Aliás, se Time, em 1944, proclamou Stalin “homem do ano”, devia haver alguma razão para isso. Se o antifascismo europeu tributou a ele, nos anos do perigo nazifascista, palavras singelas de apreço e agradecimento, deve haver alguma razão. Mas o que, da parte de alguns, se deseja teimosamente é que se assimile a obra de Stalin com aquela unicamente nefasta e destrutiva de Hitler. De resto, não importa se o nazismo levou o mundo à guerra e à catástrofe, e a URSS, não. No fim ela se dissolveu, não arrastou os adversários e o mundo para o abismo.
Stalin teve como linha de conduta ficar fora dos conflitos, chegando à cegueira de não dar fé aos avisos que chegavam a ele de várias partes em junho de 1941.
Sobre a gestão do poder na URSS, não poderei sintetizar em poucas linhas os resultados que nas décadas passadas tantos estudiosos forneceram. Direi apenas que as questões são duas: (a) quais modelos de “poder popular” (democracia exatamente) brotaram da Revolução de 1917; (b) qual praxe efetiva foi instaurada na URSS e nos países satélites. Creio que é legítimo falar do primeiro ponto (basta pensar nos estudos de direito constitucional em torno das codificações na URSS). É preciso, ao mesmo tempo, comparar esses textos e aqueles esforços com as duras lições da realidade e com a praxe efetiva. No meu livro sobre democracia eu escrevia que “no ultimo tempo do governo de Stalin foram colocadas as premissas para a ruína do sistema”. E de fato, aquela guerra que fora, desde a ruptura com Trotski e a colocação fora da lei da oposição interna ao PCUS, uma guerra civil ininterrupta travada com ferocidade e sem exclusão de golpes, depois da vitória de 1945 teria de exaurir-se ou atenuar-se. O fato de perpetuar os seus instrumentos foi ruinoso. Sobre esse conceito de guerra civil referido a todos os acontecimentos que vão desde 1927 até a véspera da guerra mundial, gosto de lembrar as páginas de Feucht-wanger (Moscou 1937), o escritor judeu exilado depois nos EUA, onde morreu. Tudo o que foi dito até aqui tem um único pressuposto: que se fale de história. Mas para falar é preciso conhecer o sentido das palavras. Diverte-me um pouco observar os mal-entendidos que suscitou a expressão por mim empregada: “criar um mito em torno da Polônia dividida [creare un mito intorno alia Polonia spartita]”. Alguém pensou que eu tivesse dito que a Polônia não tinha sido dividida! Em italiano, porém, aquela frase significa que um fato (indiscutível) é `mitizado’, ou seja, ocupa toda a cena, se torna o fato por excelência. Em vez disso ele era um dos aspectos do pacto de agosto de 1939. Os outros aspectos eram: a vontade de destruir, antes ou depois, a URSS bem enraizada na mente de Hitler (como documentou Kershaw nos seus belos livros), bem como a pouca vontade anglofrancesa de chegar deveras a um pacto antialemão com Stalin (Churchill o escreve muito bem em seu De guerra a guerra). Para não falar da hostilidade polonesa em deixar passar tropas soviéticas por seu território em caso de conflito com a Alemanha e para não falar da coparticipação polonesa, um ano antes, na divisão da Tchecoslováquia. Demos um exemplo a partir de outro lado: Bacque documentou no volume Der geplante Tod (A morte planejada), o aniquilamento, por parte dos EUA, de centenas de milhares de prisioneiros alemães. Eram tempos “férreos” teria dito Tibulo. Subir à cátedra e dar as notas e os certificados de democracia, seja agora ou então, faz sorrir um pouco.
É boa regra entender a nós mesmos através das palavras de quem nos olha com olhar crítico, não através do consenso, estéril, dos que concordam e dos seguidores. O mais pertinente retrato de Júlio César, morto e não mais temível, foi feito por Cícero, que certamente nunca o amou, numa bem burilada passagem da Segunda filípica, onde sabiamente equilibrou valores e limites do ditador que ele mesmo tinha glorificado quando vivo. No caso de Stalin se pode dizer, sem medo de errar, que, quer enquanto vivo, quer depois de morto, não faltaram a ele literatura glorificante nem literatura demonizante.
Para personagens que, num determinado momento histórico, reúnem na própria pessoa o significado e a própria simbologia do movimento que dirigiam, o “culto” da sua pessoa é fenômeno não só bem atestado, mas, pelo que parece, dificilmente evitável. Muitos nomes poderiam ser apresentados, mas os mais familiares e mais óbvios são certamente César e Napoleão. A necessidade, por parte dos seguidores, de mitizar o “chefe”, a quem corresponde a intuição, por parte do chefe, da função imprescindível de tal mecanismo “mitizante”, é fenômeno bem documentado. Ele se distingue mais (e se revela mecanismo que vai além das escolhas do indivíduo), quando o próprio interessado seria, por seu estilo e cultura, alheio a tal relação quase religiosa e, no entanto, quando ela ocorre, ele se adapta. É o caso do “Incorruptível”, o qual foi exatamente o contrário do demagogo sedento de multidão glorificante, ou também, em tempos mais próximos de nós, de Antônio Gramsci. Gramsci narra, divertido, numa carta da prisão, a desilusão sentida por um companheiro, encontrado durante um de seus períodos de detenção, o qual imaginara o chefe dos comunistas de estatura bem diferente, imponente!
Nessa categoria (embora seja incomum dizê-lo) entra também Stalin, o qual, por não breve período da sua longa carreira quer permanecer no papel de “segundo” ideal: de mero, fiel; executor da obra e do desígnio de outro, bem “maior”, e que, mesmo morto, deveria continuar a ser percebido como “o chefe, ou seja, Lênin. A ele Stalin destinou, exatamente por isso, um mausoléu de tipo faraônico-helenístico-bizantino: para que sobre ele, único chefe “vivo”, embora morto (e por isso embalsamado) continuasse a ser canalizada a necessidade de carisma das massas soviéticas. Pela mesma dinâmica, Augusto se apresentou por um longo tempo como o herdeiro-executor-continuador-vingador de César e lhe destinou um culto semelhante aos deuses.
Mais do que nunca, portanto, é necessário, diante de personagens históricos cujo mito foi parte essencial de sua ação (e do seu “ser percebido” pelos outros), referir-se ao juízo, limitativo, mas não obnubilado, dos não-seguidores, das pessoas pensantes e distantes, e também dos adversários. Em Città libera de 23 de agosto de 1945, Croce, que nunca “concedeu” nada à contraparte comunista, nem nos momentos de maior unidade “ciellenistica” [referência ao movimento Comunhão e Libertação], e que na História da Europa tinha escrito: “o comunismo não se realizou na Rússia como comunismo” (1932), escreveu de Stalin palavras que puderam depois até parecer elogio, mas não eram. “Aquilo que se realizou na Rússia”, escreveu, “é o governo de uma classe, ou de um grupo de classes (burocratas, militares, intelectuais) que um imperador não mais hereditário, mas um homem dotado de gênio político (Lênin, Stalin) guia”; e acrescentava com ironia profética: “ficando a Providência encarregada de fornecer-lhes sucessores sempre iguais! De “gênio” (e desta vez em sentido não neutro, como é nas palavras de Croce, mas exaltatório), Alcide De Gasperi tinha falado, a propósito de Stalin, poucos meses antes, no Teatro Brancaccio em Roma, no mesmo minuto em que delineava com fumeza a distância insuperável do experimento soviético daquele, ainda a ser precisado, da Itália pós-fascista. Tinha, no entanto, falado de “mérito imenso, histórico, secular, dos exércitos organizados pelo gênio de José Stalin”.
Naquele momento, aliás, era fácil prometer gratidão “secular” aos vencedores de Stalingrado; Paolo Bufalini recordou um sacerdote que, abraçando-o, na clandestinidade, lhe tinha sussurrado: “Em Stalingrado vencemos nós”. Mas, como bem sabia Heródoto, a vitória dos atenienses em Salamina, contra um adversário preponderante e aparentemente invencível, foi aos poucos esquecida, embora fosse precursora da “liberdade dos gregos”. Esquecida exatamente pelos beneficiários, porque a partir daquela vitória começou o império ateniense, herdeiro opressor de uma aliança inicialmente paritária. Uma história que se repetiu, e que na Itália, depois de Marengo, viu aos poucos embrutecerem-se as feições do libertador. Em suma, é fácil demais falar en gros de alvos imperiais e de liberdades pisadas. Para a Europa oriental pós-1945 vale mais a leitura do notável conto de Ambler — O processo Delchev [1] — do que se contentar com jaculatórias esquemáticas sobre as “forças de Praga”. E vale mais a leitura do ensaio de Wilfried Loth — O filho pouco amado de Stalin: porque Stalin não queria o nascimento da DDR [2] —sobre a relutância de Stalin em concordar em constituir em república a zona soviética da Alemanha, do que a retórica insípida sobre a “cortina de ferro”.
Stalin volta hoje no sentir coletivo dos russos (muitas sondagens o indicam) porque na atual dificuldade e declínio da ex-superpotência é óbvio o agradecimento, por enquanto só da parte do senso comum, ao estadista que a tinha tornado tal levantando-a de uma situação de inferioridade material e de isolamento. Molotov lembra que Stalin lhe dissera uma vez: “quando eu morrer jogarão lixo sobre a minha tumba, mas depois entenderão”. A acusação quase judiciária que pesa sobre Stalin é a de ter ceifado vidas humanas demais. Essa medida de avaliação, que já durante todo o século XIX acompanhou e distorceu os vaivéns (muito semelhantes aos atuais) da historiografia sobre a Revolução Francesa, foi por fim manchado com as monstruosidades da chamado Livro negro de Courtois e companheiros: um livro que inclui entre as “vítimas de Stalin” também os milhões de mortos da Guerra mundial ou entre as “vítimas do comunismo” as infinitas vítimas da UNITA em Angola. Depois daquele monstruoso pamphlet é difícil levar a reflexão para um plano decente; nem basta o rápido desmantelamento que se produziu depois daqueles números de causar vertigem. O nexo entre Revolução e Terror é o duro problema: ele começa com Robespierre, não com Lênin, e ainda está aberto.
Mandou matar muitos comunistas, é a outra acusação “judiciária”. O Danton, de Wajda, aliás, pretendia significar e denunciar exatamente isso. Um grande escritor judeu, Lion Feuchtwanger, que reconheceu a Stalin o mérito de ser o primeiro a dar um Estado aos judeus, em Birobidjan, no interior da URSS, evocou, a propósito dos “grandes processos”, um fator capital: “A maioria dos acusados eram, em primeiro lugar, conspiradores e revolucionários, por toda a vida tinham sido subversivos e opositores, tinham nascido para isso”. [3] É a mesma observação que De Gasperi fará anos depois no já citado discurso no Brancaccio: “Nós acreditávamos que os processos fossem forjados, as testemunhas inventadas, as confissões extorquidas. Eis que informações estadunidenses objetivas asseguram que não se tratava de processos falsos, e que os sabotadores não eram trapaceiros vulgares, eram velhos conspiradores idealistas […] que preferiam enfrentar a morte a resignar-se àquilo que para eles era uma traição do comunismo original”.
Tibério teve Tácito como “juiz”; Stalin, com menos sorte, teve Nikita Kruschiov — disse com sarcasmo Concetto Marchesi depois do XX Congresso. Foi bem acertado. Com o XX Congresso começava, na realidade, uma luta pelo poder dentro da cúpula, não diferente daquela que opusera Trotski a Stalin. Uma luta sem exclusão de golpes, da qual a “desestalinização” era um modelo; não era uma tentativa historiográfica; talvez fosse a negação mais escandalosa da historiografia. E também quem, como Togliatti, não entendeu a instrumentalidade e a falsidade substancial, não pôde desmascarar pela raiz sua natureza e sua gênese, porque o próprio Togliatti e os outros dirigentes do movimento comunista eram, querendo ou não, parte dessa nova luta. Os resultados dela foram as revoluções dentro do “campo” soviético, e os de longo período são a própria história que vivemos por último. Curzio Malaparte, num livro importante e esquecido — Técnica de um golpe de Estado (editado na França em 1931, destinado a desagradar tanto aos comunistas como a seus adversários) — registrou a crônica de um evento que explica melhor do que qualquer raciocínio o conflito permanente e a repressão ininterrupta que caracterizaram os anos de governo de Stalin, até a guerra; o golpe de Estado tentado por Trotski em Moscou em 7 de novembro de 1927, por ocasião do desfile pelo décimo aniversário da Revolução. Um golpe fracassado, que tem por trás uma divisão profundíssima no partido no qual o prestígio de Trotski continuava enorme, e uma guerra civil demorada, que a propaganda soviética, de modo redutivo, apresentava como atividade judiciária contra “sabotadores”. Esses foram os acontecimentos dentro dos quais colocar e entender o fenômeno Stalin. A formação da URSS, a industrialização, a guerra aos kulaks, a alfabetização em massa, a criação de um estado social gratuito, a tentativa de ficar fora da guerra imposta por Hitler, a vitória sobre o nazismo conseguida através de esforços inimagináveis sem um verdadeiro consenso: são estes os acontecimentos com os quais o historiador deve basear-se sem nunca esquecer que, nos bastidores, se consumava um conflito civil, uma divisão do partido hegemônico, a qual nunca se aplacara.
Stalin nunca agradou aos puritanos da ideologia. Oportunamente, Colletti o definiu, 20 anos depois da sua morte, em L’Espresso, como “aquele que nunca se deixou prender nos laços da ideologia”. Mas tanto realismo não foi fim em si mesmo. O artigo não assinado com que o Corriere della sera comentou em 6 de março de 1953 o desaparecimento de Stalin resiste bem, depois de cinquenta anos de batalhas, e de modas, historiográficas: “Essa obra — lê-se ali — custou sacrifícios inenarráveis e foi conduzida com um rigor que não conheceu piedade. A liberdade, o respeito pela pessoa, a tolerância, a caridade foram palavras vãs e foram tratadas como coisas mortas. Só durante a II Guerra Mundial se viu o quanto aquela obra agira em profundidade. É história de ontem. Mas quando soou a hora da prova suprema, o homem se mostrou igual a si mesmo e aos grandes deveres que buscara, e que a história lhe tinha entregue”.
Pode-se discutir por muito tempo a questão se Stalin percebera a si mesmo e a sua ação política como inerentes ao renascimento do seu país depois da catástrofe (guerra, derrota, revolução, guerra civil) ou mais aos acontecimentos do movimento comunista mundial: para dizer de maneira mais breve, se ele se sentiu antes de tudo um estadista russo ou um dirigente comunista com responsabilidades mundiais. É próprio da reflexão historiográfica de inspiração trotskista (Trotski mesmo, Deutscher) dar crédito à primeira resposta. Ao invés, foi característico da historiografia oficial do partido (mesmo depois de 1956), rejeitar como redutiva, distorcedora, essa resposta (que, aliás, encontra acolhida também fora da discussão político-historiográfica interna ao movimento comunista), e antepor à figura de Stalin estadista, de qualquer modo, para o bem e para o mal, a figura e o papel de Stalin como homem de partido.
Hoje, mais de 50 anos longe do desaparecimento de Stalin, as razões da historiografia do partido se tornam mais insignificantes aos nossos olhos, enquanto, ao contrário, sobressai o problema histórico do lugar que cabe a Stalin e aos seus sucessores na história da Rússia do nosso século (reflexão análoga seria feita no que diz respeito ao enxerto do “comunismo” na história da China por obra de um “herege” como Mao). Isaac Deutscher dedicou um livro [4] inteiro para demonstrar que o stalinismo teria, até certo ponto, “saltado” da pele da Rússia como a crosta de uma ferida: superada a “deformação”, teriam se reunido socialismo e praxe democrática (restaurada) com um internacionalismo coerente. Nunca uma previsão se revelou mais infundada.
São três os momentos capitais na política das relações internacionais da URSS, que constituem o seu “fio vermelho” e que reciprocamente se iluminam. Brest-Litovsk (janeiro de 1918), o “pacto” russo-alemão (agosto de 1939), lapa (fevereiro de 1945).
O princípio é Brest-Litovsk. É bem conhecido o choque explosivo no grupo dirigente bolchevique entre os que eram a favor e contra a paz de cabresto. Para não assiná-la, Trotski se demitiu do comissariado do Exterior. Zinoviev e Kamenev tiveram grande perplexidade. Plenamente de acordo com Lênin, que sustentava a necessidade da paz de qualquer maneira, se colocou, porém, Stalin. Na hagiografia do partido este se torna depois um ponto de força e um rindo de: mérito dos stalinianos, na sua mandante obra de descrédito das outras facções bolcheviques. Na famigerada História do partido comunista da URSS se leem estas formulações, nas quais se misturam considerações fundamentadas e frases de funesta mistificação:
Continuar a guerra queria dizer pôr em perigo a existência da República soviética recentemente formada. A classe operária e os camponeses se viram obrigados a aceitar duras condições de paz, a retroceder diante do predador que, naquele momento, era o mais perigoso, o imperialismo alemão. […I Todos os contrarrevolucionários, dos mencheviques e social-revolucionários aos mais encarniçados guardas brancos, desencadearam uma agitação furibunda contra a assinatura do tratado de paz. Suas intenções eram claras: queriam fazer fracassar as negociações de paz, provocar urna ofensiva alemã e expor a seus golpes o poder soviético ainda não consolidado. […) Seus aliados naquela ocasião infame eram Trotski e o seu partidário fiel Bukharin, o qual junto com Radek e Pjatakov, se encontrava na frente de um grupo hostil a partido, que para mascarar-se se chamava grupo dos comunistas de esquerda. Trotski e o grupo dos comunistas de esquerda travaram dentro do partido uma luta encarniçada contra Lênin e pela continuação da guerra. Eles faziam abertamente o jogo dos imperialistas alemães. Em 1° de fevereiro de 1918 as tratativas de paz em Brest-Litovsk infringiram traiçoeiramente as diretivas explícitas do partido bolchevique. Ele declarou que a República soviética se recusava a assinar a paz nas condições propostas pela Alemanha e, ao mesmo tempo, comunicou aos alemães que a República soviética não continuaria a guerra e continuaria a desmobilizar o exército. [5]
A narrativa é, às vezes, grotesca, as insinuações difamatórias em prejuízo de Trotski se dissipam (em seguida se chega a sustentar que Trotski e Bukharin preparavam um golpe de Estado a fim de sabotar a paz). O ponto forte da narrativa continua, no entanto, sendo o fato que, no choque sobre o problema da paz, Lênin e Stalin — às vezes em minoria — são, por um lado, a favor da saída rápida da guerra, enquanto grande parte dos outros dirigentes, principalmente Trotski (que chega a demitir-se para não assinar), estão do lado oposto. O choque foi muito áspero, como é óbvio; não por acaso não apenas a História do partido comunista, mas também o Mein Leben de Trotski dedicam partes inteiras (Trotski quase trinta páginas) ao acontecimento. [6] Há de se observar que, não obstante a narrativa de Trotski ser muito superior em relação à prosa irritante da História do partido comunista, ele é claramente apologético e às vezes obscuro: cheio de detalhes que visam atenuar o dado de fato que Trotski e Lênin se encontraram em lados opostos, e sempre reticente sobre a posição assumida por Stalin no crucial acontecimento.
A escolha feita em Brest-Litovsk é também o ato de nascimento da política exterior soviética. Política externa de um Estado que leva a peito, antes de tudo, os próprios interesses estatais (entendido com base no corolário: o fortalecimento da URSS ajuda a causa da revolução no planeta inteiro). Trotski cultivava a ilusão de repetir Valmy, de ajudar a ampliar o incêndio revolucionário como no tempo de Durnouriez e do conflito vitorioso da França revolucionária contra as coalizões, Lênin e Stalin, em tantos aspectos diferentes, mas neste concordes, mediram realisticamente as relações de forças e sustentaram a linha de conduta que reaparecerá em 1939, diante do renovado perigo de guerra: “Os imperialistas se massacram entre eles, nós ficamos de fora e nos fortalecemos”.
Deutscher escreveu uma vez: “Sob um aspecto crucial Stálin prosseguiu a obra de Lênin: procurou defender o Estado construído por Lênin e aumentar seu poder”. E ainda: se Lênin tivesse sobrevivido, teria acabado fazendo a política de Stálin, já que — observa — “na prática um só caminho se abria, o que levava à autocracia”; “o regime bolchevique não podia voltar às suas origens democráticas, porque não podia esperar um apoio suficiente para garantir a sua sobrevivência”. [7]
“Garantir a sua sobrevivência”. Esta é a estrela polar da política externa de Stalin. Se alguém ainda cultivasse alguma ilusão de vastas frentes c de possíveis alianças, bastaram a intervenção estrangeira na guerra civil, o “cordão sanitário”, a exclusão, por longo tempo, das instâncias internacionais para deixar clara a efetiva relação com o mundo externo. Daí o traço dominante da política externa soviética, desde as origens: tratar com quem estiver. A ordem do dia que Lênin pôs em votação em 22 de fevereiro de 1918, numa reunião do Comitê Central, numa fase (que logo se revelou transitória) das negociações de Brest-Litovsk (“Sejam dados plenos poderes ao camarada Trotski para aceitar a ajuda dos bandidos imperialistas franceses contra os bandidos alemães”) [8], é muito mais ilustrativa e conota bem essa linha de conduta e os seus pressupostos. Assim, no dia seguinte da paz de cabresto, acontece que exatamente a Alemanha de Ludendorff é o único país com que a Rússia bolchevique consegue ter relações — pelo menos por alguns meses. E o tom mais calmo e compreensivo com que o boletim do Alto Comando alemão (Deutsche Kriegsnachrichten) fala da Rússia e de Lênin se enquadra perfeitamente nessa colaboração, aparentemente, não natural. A colaboração retomada com os jovens weimarianos de centro-direita, a partir do tratado de Rapallo (16 de abril de 1922): exatamente na ótica segundo a qual entre “bandidos franceses” e “bandidos alemães” não se devia ter ilusão de poder perceber as diferenças. E a possibilidade de maior colaboração com os alemães nascia do fato que também eles eram vítima da ordem imposta em Versalhes pelos vencedores, ou seja, das grandes e “democráticas” potências imperialistas ocidentais. O fracasso da onda revolucionária de 1919-1920 (ocupação das fábricas na Itália, República Bávara dos Conselhos. Hungria de Béla Kun, derrota militar no conflito com a Polônia) confirmava de modo definitivo à direção soviética a justeza das próprias escolhas de política externa.
De pressupostos semelhantes se segue a decisão do “pacto” de 1939. Descuida-se quase sempre de considerar, quando se julga aquele evento capital no limiar da II Guerra Mundial, que se verifica logo após o fracasso da única verdadeira tentativa de política externa “internacionalista” e de grandes alianças democráticas da parte de Stalin, ou seja, depois do colapso da República espanhola, ajudada militarmente só pelos soviéticos e pelas brigadas internacionais, abandonada a si mesma pelos governos da França (ou seja, pelo socialista Léon Blum) e da Inglaterra. A queda de Madri (28 de março de 1939) precede em poucos meses o pacto Molotov-Ribbentrop (agosto), concretizando-se — como é bem conhecido – em seguida ao desinteresse anglo-francês por um acordo efetivo com a URSS em função antialemã (antinazista). A decisão de chegar a um acordo com a Alemanha para ficar fora da guerra, enquanto os “bandidos” se destruíam mutuamente, não é senão a continuação numa situação favorável ao interlocutor alemão em troca do grande favor que lhe foi feito de assegurar-lhe a tranquilidade na frente oriental.
As motivações aduzidas depois, segundo as quais o pacto fora fumado para “preparar-se” melhor, para ter tempo para um posterior ataque alemão, são provavelmente motivações construídas post eventum; não é absolutamente dito que Stalin achasse deveras inevitável o ataque alemão contra a URSS; antes, a situação de despreparo em que a operação Barbarossa encontrou as linhas soviéticas levaria a pensar o contrário.
Não é supérfluo recordar, enfim, que a analogia entre a situação de 1918 e a de 1939 é colocada em evidência por Mikhail Gorbatchov no relatório ao Comitê Central do PCUS de 7 de novembro de 1987, por ocasião do LXX aniversário da Revolução. “A questão — disse então Gorbatchov — se colocava quase nos mesmos termos com que se tinha colocado nos tempos da paz de Brest: decidia-se o destino da independência do nosso país e da própria existência do socialismo na terra”. E acrescentou: “Pelos documentos se sabe que a data da agressão alemã contra a Polônia (não mais tarde que 1° de setembro) foi fixada já em 3 de abril de 1939, ou seja, muito antes da conclusão do pacto entre URSS e Alemanha. Londres, Paris e Washington conheciam nos mínimos detalhes os bastidores da preparação da campanha contra a Polônia”. E ainda: “Não podemos esquecer tampouco que em agosto e 1939 estava diante da URSS a ameaça de uma guerra em duas frentes: a oeste com a Alemanha e a leste com o Japão, que tinha desencadeado um sanguinolento conflito no rio Kalkhin-Gol”. Como no tempo de Brest-Litovsk concluía Gorbatchov — “a vida e a morte, eliminando os mitos, se torna o único critério da realidade”.
Arrastado para uma guerra que não queria, Stalin levou o seu país à vitória, através de uma prova duríssima, que lembra em muitos aspectos a guerra enfrentada por Alexandre I e Kutuzov contra a agressão francesa de 1812. E venceu unificando o país em torno da palavra de ordem da Grande Guerra Patriótica, recuperando, entre outras, também uma relação positiva com a Igreja ortodoxa. A ajuda militar estadunidense teve a sua importância. Averell Harriman lembrou algumas vezes a frase que Stalin lhe dissera, segundo a qual “sem o poderio industrial americano não poderia ter vencido a guerra”. [9] Para o bem da verdade, porém, se diga que, se aquelas ajudas fixam preciosas, o atraso exasperante na abertura da “segunda frente” fez com que, até o desembarque na Normandia (6-7 de junho de 1944), todo o peso da guerra na Europa caísse sobre os soviéticos. Nesse sentido, é exato dizer que Hitler perdeu a guerra em Stalingrado (o desembarque na Sicília constituiu apenas marginalmente uma “segunda frente”; o desembarque aliado, na primavera de 1943, no extremo-sul da Itália, permitiu que os alemães mantivessem sob pressão com um mínimo de forças e por tempo muito longo os anglo-americanos, obrigadas a subir com dificuldade a península inteira).
É sintomático que — como surge claramente da correspondência entre Churchill, Roosevelt e Stalin dos meses fevereiro-maio de 1944 [10] — à medida que se consolida a perspectiva de que os angloamericanos dão vida à operação Overlord (o desembarque na Normandia), volta insistente, na troca de correspondência dos estadistas, o tema do futuro arranjo da Polônia. Já na troca de cartas de 4 e 24 de fevereiro, Stalin deixa claro a Churchill que o chamado “governo polonês no exílio” (em Londres) deverá aceitar como futura fronteira entre Polônia e URSS a linha Curzon. Apesar da relutância do pouco representativo governo polonês no exílio (que fez fracassarem os colóquios de Moscou exatamente sobre a questão das fronteiras), Churchill aceitou a situação de fato. Sabe-se bem que a “partilha” de falta — realizada em outubro de 1944 pelo célebre folheto das “zonas de influência” — incluiu, embora isso não fosse oficialmente decidido na Crimeia, que, na questão polonesa bem como em outros cenários, fossem substancialmente confirmadas as vantagens territoriais que a URSS conseguira com o “pacto” de agosto de 1939. Há, em suma, plena sintonia entre a ação perseguida por Stalin no pós-guerra imediato e a substância dos acordos territoriais incluídos no pacto russo-alemão.
É por isso que, como já foi observado, um único fio liga os três momentos cardeais da diplomacia soviética: Brest-Litovsk, o pacto de não agressão com a Alemanha e Ialta. Três momentos nos quais até os mais duros adversários (antes, eles em primeiro lugar!) reconhecem a capacidade de Stalin de intuir, como estadista de classe, o interesse do seu país e a sua coerência em perseguir, num período de tempo tão vasto, tal interesse.
Não uma política imperial expansionista, mas uma política da segurança — aceita como tal também pela contraparte ocidental. Basta pensar exatamente nas decisões de Ialta, que não foram codificadas, mas foram aceitas e permaneceram firmes também nos momentos de maior tensão (bloqueio de Berlim, Revolução húngara). Política de segurança que tinha a sua definição formal nas novas linhas de fronteira. A esse respeito é interessante observar que, por ocasião da reimpressão da troca de correspondência de guerra, de 1941 a 1945, dos chefes da coalizão antinazista, foi colocada no início do livro uma introdução de Gromyko, que é substancialmente um hino às deliberações tomadas em Helsinki, em 1° de agosto de 1975: “Hoje — escreve Gromyko — a inviolabilidade das fronteiras europeias foi reconhecida por todos os estados europeus, bem como por EUA e Canadá, que assinaram em 1° de agosto em Helsinki o documento final da Conferência para a Segurança e a Colaboração na Europa. Esse acordo tem uma importância histórica, constitui uma grande contribuição para a causa da paz”.” Gromyko, que já em Ialta fazia parte da delegação soviética, capta com essas palavras o sentido — reconhecido, aliás, por todas as partes no encontro — da CSCE: o reconhecimento formal das fronteiras resultantes da segunda guerra mundial. Era o coroamento, também formal, de uma política que foi inaugurada com grande ato de realismo, que consistia em aceitar, no distante fevereiro de 1918, as cláusulas iníquas da paz de Brest.
Foi por isso que, no momento do rápido, vertiginoso, desmantelamento gorbatchoviano da URSS, as potências ocidentais ficaram, primeiro, perplexas; hesitavam em dar a sua proteção a iniciativas, como aquela, por exemplo, de Landsbergis e dos seus seguidores na Lituânia, que visavam pôr de novo em discussão tudo o que lalta e Helsinki, num período de tempo de três décadas, tinham sancionado e reforçado.
Por isso também a política externa de Gorbatchov, que consiste no desmantelamento espontâneo dos pontos fortes do Estado do qual ele era o dirigente máximo, espera (e talvez espere ainda muito tempo) pelo seu historiador e, antes ainda, pelo seu intérprete. Às vezes se tem a impressão de estar diante de duas personalidades diferentes, em luta entre elas, encenadas na mesma pessoa. O dirigente que ainda em novembro de 1987 reivindica a justeza da decisão do “pacto” de agosto de 1939 dificilmente á a mesma pessoa que escreve em La Stampa de 3 de março de 1992: “Hoje podemos dizer que tudo o que aconteceu na Europa oriental nestes últimos anos não teria sido possível sem a presença deste papa, sem o grande papel, também político, que ele soube desempenhar“. Palavras estas que Carl Bernstein, protagonista do Watergate e autor, em fevereiro de 1992, da pesquisa sobre o pacto secreto entre Reagan e Wojtyla para o apoio maciço ao Solidarnosc e a limpeza, desse modo, do regime comunista polonês, definiu, em abril de 1992, na sua primeira correspondência para II Sabato, “revelação de um dos maiores segredos do século XX”.
A colaboração jornalística de Gorbatchov a La Stampa mereceria uma análise sistemática. já que entre as pregas e no melaço do falatório genérico que Gorbatchov destina àquele importante jornal afloram de vez em quando formulações que deveriam lançar um pouco de luz sobre a personalidade fugidia do último secretário geral do PCUS. Por exemplo, aquela que figura no final do prolixo ensaio de 26 de novembro de 1992 (“Yeltsin, bastão e cenoura”): “Depois de ter com razão jogado fora, porque não servia, o modelo comunista, deveremos evitar cair em outros modelos rígidos”.
Ademais, a “revelação” para a qual Carl Bernstein chamou a atenção —ou seja, a avaliação que Gorbatchov faz do papel desempenhado por Wojtyla na demolição dos regimes comunistas — dificilmente se concilia com as frases finais do diálogo entre Gorbatchov e Wojtyla (1° de dezembro de 1989). O texto foi publicado pelo próprio Gorbatchov nos Avant-Mémoires, onde Wojtyla diz: “Ninguém deve pretender que as mudanças na Europa e no mundo devam ser feitas segundo o modelo ocidental; isto é contrário às minhas convicções mais profundas; a Europa, enquanto protagonista da história mundial, deve respirar com seus dois pulmões“. E Gorbatchov responde: “É urna imagem muito pertinente”. [12] À luz daquilo que Gorbatchov “revelou” em março de 1992, essa proclamação causa perplexidade entre muitos. Mais ainda se levarmos em conta o pensamento do brutal exegeta do pensamento de Wojtyla, que é o presidente polonês Walesa. Entrevistado por Jas Ga-wronski para La Stampa (9 de maio de 1993, p. 8), Walesa encontrou-se diante da seguinte pergunta: “Quem determinou a derrocada do comunismo?
Estaria de acordo com uma classificação deste tipo: João Paulo II, Walesa, Gorbatchov, Reagan?” Ele respondeu, não sem habilidade: “Certamente o papel do papa foi muito importante, diria determinante. Os outros são todos elos da corrente, a corrente da liberdade; é difícil dizer qual é mais importante, mas qualquer corrente, sem um elo não é mais uma corrente. Muitos, sobretudo os alemães, acham que Gorbatchov é o mais importante, mas eu não concordo” (e após a entrevista ele também faz uma “revelação”: de ter proposto a Gorbatchov, já em 1989, que tomasse a iniciativa da dissolução da URSS).
Depois que, em 24 de fevereiro de 1992, Time publicou a investigação de Cari Bernstein sobre o “pacto secreto” entre Reagan e Wojtyla para a derrubada do regime comunista na Polônia (com detalhes relativos, por exemplo, à ponte de rádio instituída entre os palácios do Vaticano e Glemp depois que o governo de Varsóvia tinha cortado as comunicações telefônicas entre Polônia e Vaticano, ou relativos ao “alistamento” por parte da CIA do vice-ministro polonês da defesa, ou ao rio de quadros enviado para a Polônia para apoiar o sindicato “clandestino”), houve embaraço nos ambientes vaticanos. Reagan, porém, eufórico, confirmou, ao ser entrevistado por Pino Buongiomo para Panorama: “a nossa intenção [Reagan entende da sua administração e de Wojtyla, N.do A.] foi desde o início o de unir-nos para derrotar as forças do comunismo”. E prosseguiu com muitas revelações e detalhes, publicados pelo seminário italiano no fascículo de 22 de março de 1992.
Provavelmente, porém, a intervenção maciça (não nova, mesmo se potenciada pela origem polonesa do pontífice em função) não teria bastado. Pelo menos na opinião de um agudo analista de assuntos soviéticos, como é Helmut Sonnenfeldt. “Quando a porta polonesa foi aberta — declarou Sonnenfeldt a Panorama – Moscou não moveu um dedo. Talvez não tenha sido exatamente uma intervenção do Vaticano que influenciou o comportamento de Gorbatchov“. Uma hipótese que parece encontrar confirmação nas pala-vras, muito comprometedoras, escritas por Gorbatchov para La Stampa de 3 de março de 1992. Por isso não é de admirar que pouco depois, na mesma conversa, Sonnenfeldt fale, sem dar nomes, de “quem, em alguma sala do Kremlin, decidiu deixar todos irem livres”.
As ações políticas realizadas por Gorbatchov, a partir pelo menos de 1988, atingiram antes de tudo o seu povo. A condição da Rússia foi tratada por François Mitterrand (num colóquio com o então presidente do Senado italiano, Spadolini) assim: “Primeiro, a população comia pouco, mas todos comiam igualmente pouco. Agora, na Rússia, há tantas máfias (o presidente — observava Spadolini — usa o termo italiano como um sublinhado proposital) que se opõem e se combatem, e que asseguram setores privilegiados, monstruosamente distantes da inanição e da pobreza generalizada. Situação explosiva, para dizer pouco”.
Nada mal como fruto da passagem para a “liberdade” (de que tipo, se viu com a canhoneada sobre o parlamento de outubro de 1993). Por isso não é de admirar que Gorbatchov seja uma das pessoas mais detestadas no seu país (e sempre menos afagado pelos seus amigos do exterior).
Pode-se pretender tudo de um estudioso de história, menos que deva crer na “ingenuidade” que teria levado Gorbatchov a cometer erros em cima de erros, capitulações em cima de capitulações. Markus Wolf, o grande artífice dos serviços de segurança da DDR, lembrou, durante uma entrevista ao jornal La Republica [14] , que todos artífices da derrocada da URSS — Gorbatchov, Tchevarnadze, Yeltsin — trabalharam na KGB.
Péricles, falando à assembleia, ensinava aos atenienses, cansados do conflito com Esparta, urna grande verdade geopolítica: “Não se pode fugir do Império”. E com a crueza conceituai da qual não era estranho acrescentava que “o Império é tirano”, que “pode parecer injusto defendê-lo, mas cer-tamente é altamente arriscado deixá-lo ser derrotado”. [15] No fim, o Império, que durou pouco mais de setenta anos, foi derrotado graças também àqueles estrategistas (um se chamava Adimanto) que, na batalha decisiva de Egospo-tami, “traíram — como então se disse — os navios”. [16] Por uma curiosa combinação histórica, também o Império soviético durou setenta anos. A comparação entre Stalin e Péricles pode causar certo incômodo (embora sobre a grandeza do estadista georgiano insistam agora estudiosos não fanáticos como Mikhail Heller e Sérgio Romano): talvez seja mais fácil, mesmo se no sobressalto próprio das analogias, reconhecer a Gorbatchov o papel medíocre e ignominioso de Adimanto.
Referências
[1] Ambler (2002).
[2] Loth (1994).
[3] Feuchtwanger (1946), p. 97.
[4] Deutscher (1954).
[5] Storia del Partito comunista (b) dell’URSS. Edizioni l’Unita, Roma 1944, pp. 271-72.
[6] Trotski (1976), passim.
[7] Deutscher (1954), p. 31.
[8] Trotski (1976), p. 367.
[9] A citação ocorre, também, na entrevista de Enzo Biagi A Averell Harriman publicaa em La Repubblica em 6 de julho de 1983, p. 7.
[10] Churchill, Roosevelt, Stalin (1957).
[11] Churchill, Roosevelt, Stalin (1957), p. 13.
[12] Gorbatchov (1993).
[13] La Stampa, 12 de dezembro de 1993.
[14] La Stampa, 28 de julho de 1993.
[15] Tucidides, A guerra do Peloponeso, II, 63.
[16] Xenofonte, Helenicas, II, 1, 32; Lísias, XIV, 38.