Por Lígia Márcia Martins
INTRODUÇÃO
Consideramos que a temática proposta a esta conferência conclama, de partida, uma análise que tenha como eixo a articulação entre a psicologia e o marxismo. Isto porque o exame do desamparo também se faz presente em outras orientações do pensamento psicológico que, não obstante suas contribuições para a compreensão deste fenômeno, pouco avançam no estabelecimento de relações entre desamparo e trabalho, concebido como atividade vital humana e, por conseguinte, entre desamparo e alienação.
Sabemos que a psicologia tradicional edificou-se preterindo o papel do trabalho na formação humana e com isso, deixou de lado o papel determinante das relações de produção como produtoras também da subjetividade dos indivíduos: dos seus feitos e dos seus dramas, dos seus logros e dos seus limites. Por essa via, enveredou por um humanismo abstrato que parcamente contribui para a transformação das condições objetivas que se impõem como obstáculos à máxima realização das pessoas como sujeitos de si e da história que, com seu trabalho, contribuem para que exista.
Diferentemente, uma psicologia marxista, isto é, a psicologia histórico-cultural, não perde de vista que o homem é um ser que se produz a si mesmo na exata medida em que produz suas condições objetivas de vida e, sendo assim, não desgarra a análise acerca da subjetividade humana daquilo que lhe confere sustentação: os modos e/ou meios pelos quais os indivíduos se relacionam com suas condições objetivas de vida tendo em vista o atendimento de suas necessidades, isto é da atividade, bem como daquilo que medeia essa relação possibilitando-lhe uma pré-ideação e conferindo-lhe direção, isto é, da consciência.
Apenas os seres humanos podem fazer de sua atividade objeto de sua própria análise, podem dela distanciar-se; todavia, se por um lado isso amplia seu controle, promovendo a autodeterminação da atividade, por outro possibilita o surgimento da alienação. Eis a contradição de base na vida humana, representada pela tensão entre aquilo que humaniza e enriquece e aquilo que aliena e empobrece. Essa contradição/tensão encontra seu auge histórico na sociedade capitalista, quando a atividade do indivíduo e seu resultado tornam-se cada vez mais independentes, acarretando a subordinação do produtor ao produto de seu trabalho, ao mesmo tempo em que o torna volátil e distante de suas próprias mãos. Igualmente, nesse modelo político econômico acirra–se a subordinação da grande maioria dos indivíduos aos interesses de uma minoria – todavia detentora dos meios de produção, levando a luta de classes aos seus limites máximos.
A sociedade capitalista hodierna atravessa um dos seus grandes momentos históricos de acirramento da alienação, engendrado pela reestruturação produtiva do capital que vem marcando as últimas décadas, num processo que evidencia a mais absoluta inversão de valores: o humano se converte em epifenômeno do capital! Como consequência, vivemos tempos que multiplicam também os efeitos psicológicos da alienação, expressos de diferentes formas, dentre as quais destacamos: a conversão da pessoa em máscara destinada a expressar papéis que as circunstâncias externas exigem; a vida sustentada por motivos efêmeros, particulares e transitórios, próprios a quem caminha sem ter definido previamente onde pretende chegar e; igualmente, uma maciça medicalização condicionada pelo mais absoluto desamparo dos sujeitos em relação ao seu poder de determinação sobre a própria vida.
Feitas estas considerações gerais e introdutórias sobre o tema desta conferência, teceremos, na sequência, considerações pontuais sobre a sociedade capitalista como geradora de desamparo para, subsequentemente, apontar possíveis contributos da psicologia histórico-cultural na luta pela abolição daquilo que usurpa dos indivíduos a sua própria condição de ser humano!
A SOCIEDADE CAPITALISTA COMO GERADORA DE DESAMPARO
Versar sobre os malefícios da sociedade capitalista em poucas linhas é um exercício árduo, um desafio imenso que não temos a pretensão de alcançar em sua plenitude nessa exposição. Sendo assim, e considerando que estamos diante de um fenômeno histórico de altíssima complexidade, cujos traços centrais radicam na propriedade privada dos meios de produção, fazemos um recorte analítico tomando como elemento central aquilo que Marx (2005) denominou como trabalho concreto e trabalho abstrato.
Ao abordar o trabalho em sua acepção geral, Marx o concebeu como atividade vital humana, como atividade consciente e livre, e colocou em destaque sua dimensão objetivadora e promotora do autodesenvolvimento humano. O trabalho, assim concebido, se apresenta como mediação fundante da relação entre homem e natureza, sendo, pois, trabalho vivo, positivo, graças ao qual o homem produz e reproduz sua vida. Trata-se do ‘trabalho concreto’!
Contudo, em sua expressão particular, própria à sociedade burguesa, Marx desvelou a outra face do trabalho, fundante da mercadoria cujo fim não é outro, senão, a criação da mais valia e, por meio dela, a produção e reprodução do capital. Não por acaso, sua análise da economia política principia no momento em que, da noção de trabalho concreto – como manifestação determinada das capacidades de uma personalidade viva, se distingue para lhe ser oposta, a noção de trabalho abstrato, isto é: dispêndio de força humana em geral, medida de valores, regulador de trocas e essência da acumulação privada.
Mas ao empreender essa análise, Marx deixou claro, primeiramente, que o trabalho útil é condição da existência humana e, portanto, independe do tipo de sociedade que lhe confere sustentação. E deixou claro, também, que não existem duas espécies de trabalho objetivadas na mercadoria, e muito menos, no indivíduo que trabalha. Trabalho concreto e trabalho abstrato são as duas faces do mesmo trabalho que a si próprio se opõem. Isso deixa evidente que no cerne da questão reside a contradição nuclear que coabita o trabalho na sociedade capitalista.
Recorremos a tais postulados marxianos por uma razão muito simples: se o trabalho é fundante do humano, se o trabalho no capitalismo é oposição entre trabalho concreto e trabalho abstrato, não seria ilusório supor que sua marca contraditória deixaria isenta a personalidade do produtor? Eis, pois, a nosso juízo, um dos grandes contributos de uma psicologia marxista: evidenciar que as vicissitudes do trabalho, longe de dizerem respeito apenas à economia política, condicionam a própria subjetividade do homem que vive e trabalha sob tais condições.
O que estamos colocando em causa é que “a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais” (Marx,1987, p. 13), tal como anunciado na “VI Tese sobre Feuerbach”. Por conseguinte, quanto maior o esgarçamento de tais relações, o que significa dizer, quanto maior a alienação, – a exemplo do que estamos vivendo na atualidade, maiores as consequências internas, subjetivas, enfrentadas pelos indivíduos sob a forma de sofrimento psíquico.
Cabe reiterar: o processo de alienação, por seu turno, advém da estrutura social fundada na propriedade privada dos meios de produção, pela qual ocorre o esvaziamento do trabalho. A atividade do indivíduo e seu resultado, ao tornam-se independentes, provocam uma ruptura entre motivos e finalidades do ato produtivo (Leontiev, 1978a). A alienação do trabalho rompe a articulação necessária entre o trabalho e seu resultado na medida em que as necessidades às quais corresponde não são as do indivíduo que produz, da mesma forma que o salário que recebe pelo seu trabalho, meio social pelo qual atende suas necessidades, não corresponde ao trabalho realizado.
As forças que regem a relação entre o trabalho e seus resultados se tornam alheias ao produtor, subordinando-se a uma ordem de fatos centralizada no valor econômico, em relações monetárias em detrimento das relações humanas. Com isso, sob tais condições, os indivíduos não são sujeitos de si e, perdendo seu poder de determinação e autodeterminação, resta-lhe administrar subjetivamente o desamparo objetivamente criado. Ocorre, porém, que a subjetividade humana outra coisa não é, senão, subjetivação do objetivado, na mesma medida em que as objetivações despontam como subjetividade objetivada. Sendo assim, o ponto de intersecção entre a subjetividade dos indivíduos e a sociedade do capital aponta na direção do conflito entre ser e deixar de ser para sobreviver. Em contrapartida, seria possível supor que este esvaziamento ocorresse apenas no âmbito do trabalho, restando ao indivíduo o poder de determinação ao nível de sua vida pessoal.
Contudo, como alerta Sève (1979), pelo próprio condicionamento social que circunscreve a vida humana, a vida pessoal reflete o sistema de produção social, da divisão social do trabalho, de sorte que a economia doméstica reflete a economia política. Por conseguinte, as relações interpessoais na esfera da vida familiar, das relações entre os sexos, da amizade, do tempo livre, etc, culminam estruturadas e subjugadas ao sistema de trocas, via de regra, mercantis e contaminadas pelo conflito supracitado. Portanto, o empobrecimento da individualidade humana em condições de alienação abarca tanto sua expressão no âmbito do trabalho quanto no âmbito da vida pessoal, posto que a ordem de relações políticas e econômicas subordina a si a tudo que se produz sob sua égide, no que se inclui a produção da subjetividade.
Por esse processo, os indivíduos deixam de ser autores e convertem-se em coautores de sua própria existência, restando-lhes, muitas vezes, o desempenho de papéis e o cumprimento de um script definido a partir de fora, e que em muitas circunstâncias denota a ausência do sentido da mesma. Por isso, a nosso juízo, a alienação representa um fenômeno que carrega em si dois aspectos indissociáveis: as condições socioeconômicas que lhe dão origem e os efeitos psicológicos gerados nas pessoas por conta de sua ação. Referindo-se a tais efeitos, Montero (1991, pp. 58-59), com base em proposições do sociólogo norte americano Seeman, destaca cinco formas de expressão subjetiva da alienação.
A primeira forma denominada de “sentimento de falta de poder”, ou, de “sentimento de impotência”, pelo qual o indivíduo não se percebe como alguém capaz de gerir seu próprio destino por consequência de sucessivas exposições a situações de inibição, limitações objetivas, negação e pressões do ambiente, impeditivas à autogestão da vida. A segunda forma, definida como “sentido do absurdo”, consiste numa baixa expectativa de que se possam estabelecer relações satisfatórias entre os comportamentos e as probabilidades de seus resultados. Trata-se do sentimento de imprevisibilidade, pelo qual ocorre certo desapego às condições objetivas de vida, conduzindo a rumos fantasiosos e à idealização de projetos que não se fazem acompanhados de ações concretas. Sob tais condições, ocorre uma simplificação da análise do contexto existencial, dado que limita a compreensão da realidade e, consequentemente, corrobora maior subordinação aos seus limites.
A terceira forma de alienação é o “isolamento”, que corresponde a uma das formas pelas quais se expressa a desesperança, acompanhada de uma valoração negativa acerca da vida social. Por essa via, ocorre o enclausuramento do sujeito em sua vida pessoal, circunscrita a si e a seus próximos, de sorte que os grupos e a sociedade em sua maior abrangência vão se tornando cada vez mais alheios e distantes do indivíduo. Trata-se da instalação de um fosso entre indivíduo e gênero humano, pelo qual a individualidade particularizada se converte em individualismo. O isolamento, por sua vez, mantém íntima relação com o “auto-estranhamento”, definido como o grau de dependência da atividade em relação a recompensas que se situam fora dela e que produz uma seleção viciada e cega da experiência em relação aos valores, normas, significados e sentidos pessoais. Trata-se de burlar o instituído pela via de sua desqualificação arbitrária, tendo em vista a minimização de esforços e a obtenção de benefícios pessoais, muitas vezes, efêmeros.
As quatro formas de expressão da alienação referidas podem conduzir à “anomia”, à abolição das regras reguladoras da vida coletiva. Trata-se de um processo resultante do máximo distanciamento dos indivíduos em relação à sociedade, ocasionado por processos de opressão tornados insuportáveis. O sofrimento imposto pelas condições objetivas de vida social conduz o indivíduo ao rompimento de seus vínculos com o sistema ao qual pertence, mas pelo qual não possui sentimento de pertença. Por essa via, ocorrem as mais diferentes formas de violência, seja ela material, física ou simbólica e a humanidade se esvai talvez por nunca ter sido efetivamente construída.
Consideramos que o desamparo edificado pela sociedade capitalista identifica-se, sobretudo, com essas diferentes formas de expressão psicológica da alienação, que em diversos níveis e graus coabitam a subjetividade das pessoas. Contudo, há que se frisar: as origens das mesmas não radicam no plano individual, mas nas relações sociais de produção que apartam o produtor do produto de seu trabalho, das relações de produção, do gênero humano e, consequentemente, apartam o indivíduo de si mesmo como ser humano-genérico (Márkus, 1974). Por conseguinte e diante do exposto, cabe-nos identificar, agora, o que a psicologia tem a dizer e, sobretudo, fazer à vista de tais condições.
A PSICOLOGIA COMO ALIADA NA LUTA CONTRA A ALIENAÇÃO
Para introduzir esse item de nossa exposição, optamos por parafrasear uma proposição de Lênin (1970, p. 138), quando o mesmo colocou em destaque a importância da luta teórica na formação da classe revolucionária: “apenas um partido dirigido por uma teoria de vanguarda pode cumprir sua missão de combatente de vanguarda”. Essa assertiva, transposta para a psicologia nos auxilia concluir: apenas uma psicologia dirigida por uma teoria de vanguarda pode cumprir sua missão de combatente de vanguarda. Não temos dúvida de que esta teoria é a psicologia histórico-cultural.
Contudo, foge aos objetivos deste texto uma exposição alongada acerca dos preceitos desta teoria, mas importa-nos destacar sua tese fundante, qual seja: a natureza social do desenvolvimento humano e o grau de condicionabilidade do mesmo em relação às condições objetivas de vida e de educação dos indivíduos. Fundamentada que é no materialismo dialético, a psicologia histórico-cultural não se furta ao reconhecimento de que a realidade existe fora e independentemente da consciência que os indivíduos tenham dela, cabendo-lhes, como condição de seu desenvolvimento psíquico, torná-la conscientemente inteligível.
Esse processo ativo, pelo qual cada indivíduo apropria–se do acervo de objetivações materiais e simbólicas edificado historicamente pelo conjunto dos homens identifica-se com a própria formação de sua subjetividade, a ter a consciência como principal atributo. Por isso, sob essa perspectiva, que desnaturaliza o que seja psiquismo e sua qualidade maior, a consciência, resulta evidente que apenas a inserção do sujeito na cultura e, consequentemente, a apropriação da linguagem – a apropriação de signos, torna possível a formação do ser humano, na rigorosa acepção do termo. Um ser que tem, na consciência, sua maior qualidade, posto que entre aquilo que faz (atividade) e aquilo que sabe (consciência) existe uma relação de condicionabilidade recíproca, ou seja: a relação ativa sujeito-objeto subjuga a si a formação da consciência, mas ela, por sua vez, é quem a orienta e regula (Martins, 2007).
Assim explicitada, a consciência deixa de ser um ‘ente abstrato’ inerente aos recônditos do psiquismo humano, tal como pressuposto pela ‘velha psicologia’ idealista e não historicizadora da formação humana, possibilitando-nos identificar seus reais fundamentos. Referindo-se ao desenvolvimento da consciência, Leontiev (1978a) afirma que sua primeira característica diz respeito ao fato de que ela é uma forma de reflexo daquilo que existe fora de si mesma. Por conseguinte, sua tarefa central não é outra, senão, orientar o sujeito na realidade concreta por meio daquilo que reflete. Apenas a imagem subjetiva consciente acerca da realidade objetiva pode colocar o real ao alcance das mãos humanas, que a transformam em conformidade com o atendimento de suas necessidades.
A segunda característica destacada por este autor aponta que a consciência se desenvolve a medida que o indivíduo se distingue daquilo que o rodeia, na dependência, portanto, da distinção sujeito-objeto. Neste sentido, a consciência não é um mundo interno, determinando-se na relação do indivíduo com o mundo objetivo. Por isso só pode ser compreendida como ato psíquico experienciado pela pessoa e ao mesmo tempo manifestação de suas relações com os outros indivíduos e com o mundo. Neste sentido, ela, em seu caráter ôntico, refere-se ao ser do sujeito e de seus objetos.
A terceira característica, por seu turno, desdobra-se das anteriores e coloca a consciência na condição de qualidade da imagem subjetiva que a pessoa constrói acerca da realidade objetiva. Imagem essa, instituída pelas sensações decorrentes da captação sensível dos objetos, dos significados construídos socialmente e legados à apropriação pelos sujeitos singulares e os sentidos particulares que os mesmos conferem a tais objetos e significados graças às relações pessoais que com eles travam (Leontiev, 1978a).
Porém, haja vista a relação entre a imagem subjetiva e a consciência que se tenha dela, uma observação nos importa especialmente: como toda e qualquer imagem, a consciência comporta distorções, uma vez que o reflexo da realidade não é a realidade mesma. Então, se a consciência se institui por ação social e comporta distorções, o processo de sua formação não é questão de menor importância e deve representar esforços na direção da conquista de sua máxima fidedignidade àquilo que representa.
Tais distorções podem resultar de inúmeros fatores, dentre os quais destacamos: os próprios limites da captação do objeto pelo sujeito; podem advir de significados parciais e/ou equivocados atribuídos socialmente aos objetos e fenômenos e apropriados pelo sujeito, mas podem resultar, ainda, do falseamento ideológico ao qual a consciência é exposta. Numa sociedade de classes, inúmeras distorções resultam do interesse da classe dominante em fazer de suas ideias as ideias dominantes, de sorte que sua pseudoverdade se converta numa verdade crível.
Tecidas estas considerações acerca das inúmeras possibilidades, mas, também, dos possíveis limites da consciência, retomemos a questão da alienação e suas consequências psíquicas. Montero (1991), referindo-se a essa questão, afirma que a possibilidade de que o indivíduo tenha consciência da alienação depende do grau e da fidedignidade pela qual consiga representar o real e, por conseguinte, romper o círculo vicioso entre ideologia e alienação. A autora define ideologia como falsa consciência, como um sistema de atitudes, valores, representações e crenças que buscam justificar uma dada ordem político-econômica distorcendo aquilo que a contradiz. Esse sistema cria uma opacidade da realidade e faz do indivíduo objeto da alienação, colocando-o mais e mais sob jugo da ideologia dominante.
Portanto, o problema da consciência da alienação, ou por outra, de seu enfrentamento, depende, segundo a autora supracitada, basicamente da superação de dois mecanismos. O primeiro é representado pela ignorância total do estado de alienação em que se encontra o indivíduo, ou seja, implica a não experiência da alienação. O segundo pressupõe a consciência do estado psicológico produzido pela alienação encarado e vivido, porém, como um fenômeno particular e natural. Esse tipo de reação denota a falta de perspectiva da consciência sobre a própria situação, o que não deixa de ser uma dupla manifestação da impotência gerada pela própria alienação.
De tais mecanismos resulta a conhecida concepção de ‘normalidade’ do mundo em que se vive e igualmente a resignação perante ele, pela qual se isenta o papel decisivo das condições econômico-sociais em sua configuração. Mas resulta também na responsabilização individual dos desajustes, do sofrimento, das incoerências e inseguranças pessoais, que retroalimentam o círculo vicioso culpabilização/autonegação. Por isso, é a serviço da superação de tais condições que a psicologia deve voltar-se à formação/transformação da consciência dos indivíduos. Uma psicologia voltada à emancipação humana não perde de vista que é apenas como resultado do desenvolvimento da consciência que o indivíduo pode fazer de sua atividade e da realidade que a circunscreve objetos de sua própria análise, ampliando, por esta via, suas possibilidades de controle sobre ambas. Contudo, como alerta Leontiev (1978a), há que se reconhecer a diferença qualitativa entre a simples existência da consciência como atributo do psiquismo humano, complexo, e a relação consciente da pessoa com os conteúdos que ela reflete. É a serviço da construção e/ou ampliação desta relação que compreendemos o ser e o dever ser da psicologia, como ciência e como profissão, em seus vários campos de atuação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo exposto, procuramos demonstrar que o trabalho realizado em condições históricas que levam a alienação ao extremo, como as enfrentadas na atualidade em nosso país e no mundo, se coloca na base do esvaziamento da vida humana, gerando tanto o desamparo quanto inúmeras outras mazelas que corroem a personalidade das pessoas. Contudo, na medida em que a alienação é inerente à organização capitalista e ela, a própria história de suas crises, o problema da consciência dos indivíduos sobre a mesma revela-se uma questão de grau, que será maior ou menor dependendo do quanto a pessoa possa compreender sua existência para além da particularidade, ou seja, possa superar sua condição particular entendendo-se como um ser humano-genérico.
Diante de tais desafios entendemos que o maior contributo da psicologia resida em seu potencial educativo, pelo qual possa operar a serviço da formação e ampliação da consciência humana. Contudo, a tarefa de uma psicologia de vanguarda não se identifica nem reproduz o “ideal de conscientização” tal como presente na psicologia burguesa desde as suas origens. E para maior precisão desta assertiva, recorremos à distinção estabelecida por Leontiev (1978b, p. 176) entre o que ele denominou como “consciência sobre si” e “autoconsciência”.
Segundo este autor, a consciência sobre si, como qualquer outro conhecimento, compreende a delimitação de características externas e internas resultantes de comparações, análises e generalizações sintetizadas num sistema de conceitos e significados. Trata-se da autorepresentação, que vai construindo-se desde as etapas iniciais do desenvolvimento da consciência, culminando num conhecimento dos traços ou propriedades individuais. Diferentemente, a autoconsciência implica, para além do conhecimento sobre si, o estabelecimento dos nexos existentes entre o que se é e o sistema de relações sociais nas quais se insere o indivíduo. Pressupõe o confronto entre o conhecimento sobre si com as condições do mundo circundante, por isso demanda o processo de ir além de si mesmo, pelo qual a pessoa se reconhece na realidade mais ampla na mesma medida em que a reconhece em si.
A nosso juízo, o tratamento dispensado à consciência pela psicologia tradicional não ultrapassa os limites da consciência sobre si, nisso residindo o seu maior limite para compreender a essência humana. Marx (1987, pp.13-14), na “VII Tese sobre Feuerbach” afirma: “Por isso, Feuerbach não vê que o próprio ‘sentimento religioso’ é um produto social e que o indivíduo abstrato por ele analisado pertence a uma forma dada de sociedade! (grifos do autor)”. Tomando-a de empréstimo, nós diríamos: a psicologia burguesa não vê que o indivíduo abstrato por ela analisado, e todos os seus sentimentos, pertence inexoravelmente a uma forma determinada de sociedade, que condiciona a construção das pessoas que a integram! Sendo assim, a autoconsciência pressupõe a consciência sobre si, mas não pode ser à ela identificada.
Ademais, a autoconsciência não se encontra no interior do indivíduo, mas em sua existência relacional, real e objetiva, condicionada pela apropriação de um acervo de significações que elucidem as necessárias relações das pessoas com o gênero humano. Portanto, a formação da auto-consciência não ocorre espontaneamente, mas sim, como um processo mediado e é a serviço desta mediação que entendemos a tarefa de uma psicologia de vanguarda rumo à outra ordem social.
Conforme Leontiev (1978b, p.172):
Se vai conformando uma personalidade diferente, com um destino diferente quando o motivo-fim determinante se eleva até o genuinamente humano e não vai isolando o homem, mas sim, fundindo sua vida com a vida das pessoas, com seu bem. De acordo com as circunstâncias que tocam por sorte o homem, esses motivos vitais podem adquirir diversos conteúdos e diversa significação objetiva, mas só eles são capazes de criar a justificação psicológica interior da existência do homem, que constitui o sentido e a felicidade da vida.
Finalizando, apenas uma psicologia que não perca de vista a natureza concreta do homem poderá ter algo a dizer sobre ele e, seguramente, muito, a com ele fazer!
REFERÊNCIAS
Lenin, V. I. (1970). Obras Escogidas. Tomo 1. Moscú, Editorial Progresso.
Leontiev, A. N. (1978a). O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte.
Leontiev, A. N. (1978b). Actividad, consciencia y personalidad. Buenos Aires: Editorial Grijalbo.
Martins, L. M. (2007). A formação social da personalidade do professor: um enfoque vigotskiano. Campinas, SP: Autores Associados.
Marx, K. (2005). O’Capital. Livro 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Marx, K., & Engels, F. (1987). A Ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec.
Márkus, G. (1974). Marxismo y Antropologia. Barcelona: Editorial Gryjalbo.
Montero, M. (1991). Ideologia, alienación y identidade nacional. Caracas: Ediciones de la Biblioteca, Universidad central de Venezuela.
Séve, L. (1979). Marxismo e a teoria da personalidade. Lisboa: Horizonte Universitário.
Capítulo extraído do livro “Materialismo histórico-dialético e psicologia histórico-cultural: expressões da luta de clsses no interior do capitalismo” organizado por Silvana Calvo Tuleski, Adriana de Fátima Franco e Tiago Morales Calve, lançado em 2020.
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