Janine Booth, 1º de Abril de 2017
Traduzido do inglês por Pedro Côrtes
[1] Este tradutor acredita que algumas palavras correntes utilizadas para descrever questões de neurodivergência em português como “deficiência” e “incapacidade” são equivocadas, além de distanciar-se dos termos em inglês como “disability” e “disabled”. Estas palavras em inglês permitem uma compreensão onde a pessoa neurodivergente não é necessariamente uma pessoa transtornada ou deficiente, mas sim des-abilitada (dis-abled) pela sociedade excludente à sua volta. Por este motivo, optei por uma aproximação portuguesa das palavras usadas em inglês.
Pode o marxismo nos ajudar a entender a experiência autista no capitalismo moderno? Como o marxismo guiaria nossas lutas por igualdade e libertação?
Existem diversas abordagens para se entender o autismo. Talvez a abordagem médica seja a dominante: enxergar o autismo como uma tragédia, na qual as pessoas autistas são pessoas quebradas e que precisam de conserto. Nos últimos anos, uma abordagem mais progressista foi desenvolvida. Ela reforça a aceitação de pessoas autistas ao invés da simples “conscientização”, e demanda direitos, igualdade e suporte ao invés dos abusivos “tratamentos”.
Esta abordagem baseia-se no conceito de neurodiversidade: o reconhecimento de que a espécie humana é neurologicamente diversa; que diferentes pessoas possuem diferentes estruturas cerebrais. Mas esta abordagem mais progressista, apesar de bem-vinda, não implica necessariamente na localização do autismo nas estruturas sociais, econômicas e políticas da sociedade. É importante localizá-lo – em primeiro lugar, porque toda desabilidade[1] existe dentro de um contexto social; e em segundo lugar porque o autismo é na maioria das vezes uma questão sobre como as pessoas interagem socialmente. Espera-se de todos nós que sigamos as regras sociais; mas quem faz estas regras sociais, e como?
Definições: Autismo e Marxismo
O autismo é uma neurologia atípica, uma estrutura cerebral incomum. Podemos dizer que, se a maioria das pessoas é Windows, pessoas autistas são Mac. Essa neurologia atípica leva a uma comunicação, processamento e funcionamento cognitivo atípicos, e a diferenças nas interações sociais e na sensibilidade a estímulos sensoriais como som e luz.
Marxismo é socialismo científico. Ele estuda o socialismo ao invés de meramente desejá-lo, providenciando uma crítica do capitalismo e advogando pela auto-emancipação da classe trabalhadora, a classe explorada basal sob o capitalismo. Marx descreveu a classe trabalhadora como possuinte de “grilhões radicais” querendo dizer que possui o potencial e o poder para liberar não apenas a si mesma mas outras populações oprimidas também. O marxismo enxerga que a mudança – e a libertação social – são alcançadas através da luta de classes, com o fim último de abolir a divisão da sociedade em classes.
O impacto do capitalismo nas vidas autistas
Quando o capitalismo se tornou o sistema consagrado, trouxe consigo o desenvolvimento, o conhecimento, a compreensão, a investigação científica, e o potencial de providenciar mais suporte para as pessoas. Ele acelerou a produção. Consistiu em uma grande melhoria em comparação às épocas anteriores. Entretanto, o capitalismo também aumentou – e ainda aumenta – a pressão social. Ele reúne as pessoas de forma muito mais intensa, e coloca um prêmio para o quão “bom” você é socialmente.
O capitalismo também intensifica as estimulações sensoriais luminosas, sonoras, entre outras. Para pessoas autistas, o capitalismo moderno é tão desenvolvido quanto aflitivo. Ele possibilita enormes vantagens, um grande potencial, mas também causa grande angústia. Quando falamos sobre pessoas autistas como desabilitadas, queremos dizer que o capitalismo desabilita pessoas autistas.
Explicando o crescimento no número de diagnósticos
Houve um crescimento significativo no número de diagnósticos de autismo nos últimos anos. Por que? Alguns que se baseiam na abordagem de modelo médico explicam tal fato como uma epidemia. Um gráfico que circula nos E.U.A. declara: há 10 anos, 1 a cada 1000 [pessoas era autista]; há 5 anos, 1 a cada 500; hoje, 1 a cada 88; e pergunta “já está com medo?”
Eu estou mais assustada com o pensamento por trás do gráfico do que com o crescente reconhecimento da prevalência do autismo. A explicação mais progressista e acurada é que, ao invés de um aumento na prevalência do autismo, é o nosso reconhecimento do autismo que está crescendo: a sociedade possui uma crescente consciência acerca do autismo; há uma maior disponibilidade de diagnósticos; e os critérios para o diagnóstico de autismo foi firmemente ampliado ao longo dos anos.
Podemos ir além disso. A crescente pressão social colocada pelo capitalismo sobre as pessoas e a crescente sobrecarga sensorial que ele arremessa sobre nós está causando mais e mais angústia, então mais e mais pessoas autistas estão buscando diagnóstico para ter acesso à ajuda. A sociedade e seus membros autistas estão entrando cada vez mais em conflito. Muitas pessoas autistas recebem seu diagnóstico de autismo tendo inicialmente procurado por ajuda para problemas de saúde mental como ansiedade ou depressão.
Austeridade e diferenças de classe na experiência autista
Desde a crise econômica iniciada em 2008, os governos aplicaram políticas de austeridade, fazendo a classe trabalhadora pagar pela crise econômica que nós não causamos. Estas políticas aprofundaram a pobreza e retiraram acesso à assistência. Pessoas autistas vindas de famílias mais ricas costumam lidar melhor com essa situação e situações de dificuldade em geral. Isto não quer dizer que a vida é fácil se você vem de um ambiente mais rico, mas ao menos há mais acesso a recursos e cuidados.
Cortes em gastos públicos afetam pessoas autistas diretamente. Serviços tiveram sua verba cortada ou fecharam, inclusive serviços de suporte familiar, serviços de suporte de emprego, creches e outros serviços. A austeridade também causa angústia social, visto que aumenta a necessidade de suporte das pessoas autistas com uma mão, enquanto leva embora com a outra mão o suporte que existia.
Caridade?
Frequentemente espera-se que você procure por caridades quando não há nenhuma assistência pública disponível. Mas apesar de algumas caridades voltadas ao autismo realmente providenciarem serviços úteis, elas também têm um papel negativo. Elas reforçam a visão de que pessoas autistas são objetos de pena, geralmente usando imagens condescendentes para atrair doações. Elas raramente são lideradas por autistas, e elas nem sempre estão do mesmo lado que aqueles dentre nós que lutam por libertação.
A caridade estadunidense mal-nomeada Autism Speaks [“Autismo Fala”] promove visões hediondamente negativas do autismo como uma “tragédia”, e é frequentemente piqueteada por ativistas autistas. No Reino Unido, a National Autistic Society [Sociedade Autista Nacional] não chega perto de ser tão ruim, mas possui uma diferença inaceitavelmente grande entre os salários de gerentes sênior e seus assistentes e, em 2013-2014, ao esperar que professores de suas escolas trabalhassem por salários menores do que os acordados nacionalmente para professores da rede estatal, provocou os sindicatos de professores a entrar em greve.
Autismo, neurodiversidade, e produção
Em qualquer análise marxista, é importante olhar a exploração do trabalho. Pessoas autistas estão em desvantagem para se empregar. Estas estatísticas são do Reino Unido, mas a situação é semelhante em outros lugares:
- 43% dos adultos autistas saíram ou perderam um emprego devido à sua condição.
- 41% dos adultos autistas com mais de 55 anos de idade passaram mais de 10 anos sem um emprego pago.
- 37% dos adultos autistas nunca estiveram em um emprego pago depois dos 16 anos de idade.
- 15% dos adultos autistas estão em um emprego de tempo integral.
Sob o pretexto da crise econômica, empregadores tomaram a ofensiva, com técnicas de gerência de alta pressão e empregos inseguros. A emergência de contratos de curto prazo, horas de trabalho imprevisíveis e contratos de zero-hora tem um efeito depreciativo sobre todos os trabalhadores – mas se você tem uma mente autista, e se apoia em previsibilidade e rotina, o impacto pode ser ainda pior.
Nós também temos visto uma mudança em direção ao “serviço ao consumidor”, em direção às habilidades “sociais” ou à “suavidade”, agora mais valorizadas que habilidades técnicas, até mesmo em indústrias bastante técnicas como transporte público. Nós vimos os serviços públicos serem mercantilizados, e seus usuários passaram a ser vistos como “consumidores”.
Isso pode causar problemas para pessoas cujo foco é sua habilidade técnica em seu emprego, ao invés de habilidades sociais estreitamente definidas. Entretanto, ao mesmo tempo, temos visto empregadores se esforçarem mais para recrutar e acomodar trabalhadores autistas. Apesar disto ser bem-vindo, às vezes estes empregadores deixam escapar que um de seus motivos é que desejam averiguar o potencial de explorar pessoas autistas.
Eles falam sobre o quão mais produtivas algumas pessoas autistas podem ser, e como elas tendem a se distrair menos com fofocas sociais. Eles podem até mesmo estar “escolhendo a dedo” aqueles trabalhadores autistas com o mais alto nível de habilidade e o mais baixo nível de suporte necessário. Tais empregadores estão mercantilizando os talentos de pessoas autistas ao invés de valorizá-los.
O controle dos trabalhadores
O trabalho sob o capitalismo é altamente regulamentado, em seu ritmo, em seus métodos, em seus processos e em suas metas. O trabalho providencia pouquíssima ou nenhuma liberdade ou flexibilidade de ação para pessoas que pensam diferentemente e que querem fazer as coisas de forma diferente.
Crucial para conquistarmos um futuro melhor para pessoas autistas, particularmente no âmbito do trabalho, é alterar o trabalho, e não os trabalhadores. Há bastante conselhos disponíveis para pessoas autistas sobre como conseguir ou manter um emprego, mas a maioria se baseia em como mudar a nós mesmos para impressionar o empregador e “encaixarmos” no trabalho – basicamente, como fingir que você não é autista.
Muito melhor do que isto seria que o trabalho fosse alterado, juntamente ao ambiente de trabalho, que o ritmo e os métodos de trabalho fossem mais acessíveis para pessoas, quaisquer sejam suas estruturas cerebrais. Para isto, a ideia central é a de controle dos trabalhadores: trabalhadores controlando, tanto individualmente quanto coletivamente, o ambiente sensorial e a forma de se realizar um trabalho em uma empresa, por exemplo.
Do coletivo ao individual
Nas últimas décadas, à sombra das derrotas do movimento trabalhista, o discurso político mudou de um foco coletivo para um foco individual. Entretanto, ao invés de trazer reconhecimento de direitos individuais e diferenças, minou as perspectivas do progresso coletivo. Passamos a ter também uma ênfase no “sucesso” que leva as pessoas a fracassar.
Porque se a sociedade estabelece um padrão de sucesso que você não consegue atingir, então conclui-se que você não é suficiente, que de alguma forma isto é culpa sua. Um exemplo é a noção legal de “ajustes razoáveis”, mudanças que precisam ser feitas para permitir que um autista ou pessoa desabilitada de alguma forma possa participar igualmente da sociedade.
Foi um avanço que tal noção fosse incorporada à legislação de discriminação à desabilidade. Entretanto, você só recebe estes ajustes como um indivíduo, eles foram feitos apenas para quando você identifica a si e à sua desabilidade, e você precisa provar que de alguma forma você está em desvantagem para conseguir os ajustes de que precisa.
Seria muito melhor para os ambientes de trabalho, para os serviços e para a sociedade uma mudança geral, tornando-se mais acessíveis e mais amigáveis ao autismo, abordando as desvantagens autistas coletivamente ao invés de individualmente.
A economia política do autismo
Karl Marx escreveu sobre “a economia política da classe trabalhadora”, querendo dizer a luta da classe trabalhadora por leis e políticas que nos beneficie, ainda que sejam custosas ao capitalismo. Se nós escrevêssemos uma lista de mudanças que queremos para atingir igualdade para pessoas autistas, a conta a ser paga pelo capitalismo poderia ser bastante cara.
Mas é apenas a dura realidade – queremos estas mudanças, estas medidas para aliviar a angústia, para por fim à discriminação e à exclusão. Nós queremos mais igualdade, independentemente do custo disso para o sistema capitalista existente.
Um grupo de autistas e ativistas com outras neurodivergências estão atualmente trabalhando com o Chanceler Sombra[2] John McDonnell para redigir um manifesto pelo autismo/neurodiversidade – uma lista de políticas para o Partido Trabalhista atingir um progresso significativo em direção à igualdade. As demandas do movimento trabalhista só configurarão uma vitória para pessoas autistas se elas forem um reflexo da neurodiversidade da classe trabalhadora – se, em vez de adotar métodos de pensamento típicos, elas reconhecerem que, assim como a classe trabalhadora possui diversidade de etnias, gêneros, sexualidades, entre outras, a classe trabalhadora também possui diversidade neurológica.
Isto abre a discussão sobre por qual tipo de sociedade estamos lutando. Com o que se parecerá o socialismo? Como o socialismo irá reconhecer e aceitar a diversidade neurológica de forma que o capitalismo não é capaz?
Transformando o movimento trabalhista
Pessoas autistas lutando contra a opressão querem fazer parte de um movimento trabalhista unido e à esquerda. Nós podemos facilitar isto auditando as falhas da esquerda e do Partido Trabalhista, e reconhecendo nossa agência por mudança, nossa consciência histórica. Não estamos só analisando ou comentando a sociedade, estamos tentando alterá-la.
Nosso próprio movimento só será eficaz nesta questão se for habitável e acessível a pessoas autistas. Os sindicatos, o Partido Trabalhista, os grupos socialistas – pensem sobre seus eventos, suas atividades, suas publicações, sobre o comportamento de seus membros: para uma pessoa autista, eles seriam acolhedores ou angustiantes? Que mudanças vocês podem fazer? O que vocês estão perdendo de vista enquanto se mantém inóspitos?
Os sindicatos têm trabalhado mais sobre a questão recentemente, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido.
Levando esta discussão adiante
Nós podemos olhar mais detalhadamente se estas e outras abordagens teóricas podem ser úteis para a compreensão da experiência autista no capitalismo:
- Materialismo histórico: o método de Karl Marx para entender a sociedade através do estudo sobre como as necessidades materiais para a vida foram produzidas e reproduzidas ao longo da história, ao invés de meramente tirar uma foto da sociedade como ela é hoje.
- Fetichismo da mercadoria: Marx escreveu sobre o meio pelo qual, no capitalismo, as relações sociais envolvidas na produção são apresentadas como relações econômicas; fatores humanos se tornam mercadorias.
- Alienação: Marx também escreve sobre como, no capitalismo, os produtos do seu trabalho lhe são tomados, levando à alienação social de vários aspectos de nossa humanidade.
- Anomia e divisão forçada do trabalho: o sociólogo Émile Durkheim desenvolveu teorias sobre o colapso das normas sociais e sobre como a busca por lucro leva as pessoas a realizar trabalhos incompatíveis.
- Hegemonia cultural: o marxista Antonio Gramsci escreveu sobre a forma com que uma sociedade que é (ou tem potencial para ser) culturalmente diversa vem a ser dominada pelas ideias e pela cultura da classe dominante, levando à exclusão daquelas que não se encaixam às suas normas.
- Estigma: o sociólogo Erving Goffman descreveu a ideia de estigma como “ser passível de descrédito social”, e como a sociedade coloca as minorias que considera desviantes em desvantagem.
- O modelo social da desabilidade: por centenas de anos, a desabilidade foi vista como algo errado no indivíduo, que precisava ser consertado, excluído ou tratado com piedade. Nos anos 1970, o movimento radical das pessoas desabilitadas desenvolveu uma nova abordagem, diferenciando deficiência e desabilidade, e argumentando que a sociedade desabilita as pessoas com deficiências colocando barreiras à participação igual e independente.
Este é apenas o início da discussão sobre marxismo e autismo. Há muito mais trabalho a ser feito, mais trilhas de compreensão a serem exploradas.
[2] “Shadow Chancellor [of the Exchequer]” é o título informal dado a/ao líder da oposição no Reino Unido, que fica encarregada/o de fiscalizar as ações do (cargo formal de) “Chancellor of the Exchequer”, que pode ser visto como semelhante ao da tesouraria ou ministério da fazenda.