Neurodiversidade, capitalismo e socialismo

Texto de Janine Booth publicado originalmente em seu blog pessoal.

Tradução de Valentina Reis.

Autistas, dispráxicos, disléxicos e outras pessoas neurodivergentes têm experiências particulares sob o capitalismo – com aspectos positivos e negativos, mas para muitos incluindo angústia e desvantagem. Este artigo olha para a experiência dos neurodivergentes no capitalismo, para como o socialismo poderia dar fim à angústia e discriminação e de que forma podemos atingir isso.

Capitalismo e neurodiversidade

O capitalismo desenvolveu a capacidade produtiva da sociedade, podendo providenciar às pessoas bens e serviços que nenhuma sociedade anterior pôde. Mas ele submeteu os recursos produtivos à propriedade privada, então a produção cresceu de uma forma limitada, orientada para o lucro, antidemocrática, gerando desigualdade e angústia, bem como marginalizando pessoas neurologicamente atípicas.

Como o capitalismo faz isso? Organização rígida do trabalho. O capitalismo faz todos os trabalhadores em uma produção processarem as mesmas coisas, do mesmo jeito e na mesma velocidade, o que não funciona bem para pessoas que trabalham em um ritmo diferente ou veem as coisas de uma forma diferente. Apesar de terem havido muitas mudanças desde os moinhos e fábricas do século XIX, locais de trabalho modernos como call centers, escritórios e armazéns funcionam de uma maneira similarmente rígida. A falta de controle sobre os processos de trabalho é um fator chave para a desvantagem e angústia que as pessoas neurodivergentes experiência.

Sobrecarga sensorial. Muitos neurodivergentes têm uma sensibilidade incomum a estímulos sensoriais. Uma pessoa autista ou com dispraxia pode, por exemplo, ser mais afetada do que o habitual por luzes, sons, cheiros e texturas. O capitalismo intensifica rapidamente o ambiente sensorial, gerando muito mais luz e barulho do que as sociedades prévias, particularmente nas cidades grandes.

Prêmio social. Quão confiante você é, quão facilmente você interage com as pessoas, quão bem você “se encaixa”: tais fatores sociais estão se tornando mais e mais importantes para o seu “sucesso” no mercado capitalista. Isso torna as coisas mais difíceis às pessoas que acham a interação social difícil ou estressante, que não gostam de contato visual ou que comunicam-se de formas atípicas, o que inclui muitos autistas e outros neurodivergentes. A produção capitalista voltou-se para as indústrias de serviços, onde as habilidades interpessoais são mais valorizadas, e mesmo os serviços públicos se tornaram mercadorias onde os gerentes insistem que os clientes querem ser atendidos com um sorriso. Por exemplo, as empregadoras de transporte ferroviário se tornaram menos preocupadas com a habilidade de seus funcionários de fazer o trabalho relativo ao transporte e mais preocupadas com suas habilidades de dizer “obrigado” e “tenha um bom dia” para as pessoas depois de informá-las que seu trem foi cancelado.

Mercantilização da neurodiversidade. À medida que cresceu o conhecimento sobre diversidade neurológica, os capitalistas perceberam um novo mercado para novos produtos. Companhias produzem e vendem softwares, brinquedos, dispositivos de ajuda sensorial, tratamentos caros e assim por diante.

Algumas dessas coisas são úteis, mas outras não, e algumas delas são prejudiciais. Isso promove a ideia de que pessoas atípicas não precisam de aceitação, mas de produtos. Pesquisas orientadas para o lucro. Todas as pesquisas sobre autismo e outras condições neurodivergentes são conduzidas pelas empresas que fazem-nas, as quais são voltadas para o desenvolvimento de produtos que podem vender.

Pesquisa é muito importante, mas há um conteúdo político que a conduz. A terrível instituição de caridade americana “Autism Speaks” gasta milhões de dólares tentando encontrar a cura do autismo em vez de fornecer serviços de apoio ou promover campanhas de inclusão. Fazendo isso, ela apenas prejudica pessoas autistas, ao retratar o autismo como uma doença trágica ou defeito que precisa ser eliminado.

Progresso desigual. A condição cerebral que agora é chamada de dislexia provavelmente já existe há milhares de anos, mas não se tornou um problema e não foi rotulada de “dislexia” até que a linguagem escrita se espalhasse. Então, a razão pela qual pessoas disléxicas têm um problema ou disfunção não é porque são defeituosas, mas porque a sociedade desenvolveu a linguagem escrita de uma forma que não se encaixa à sua condição cerebral.

Há um caso interessante de um homem inglês criado no Japão que cresceu bilíngue, severamente disléxico em inglês e nada disléxico em japonês. Isso mostra que a sua chamada disparidade, sua incapacidade, é construída por algo que se desenvolveu socialmente, isto é, a forma que a linguagem assume. O capitalismo fez algo fantástico – ele herdou, desenvolveu e universalizou a linguagem escrita – mas o fez de maneira que servisse à neurologia da maioria e deixou para trás a minoria a quem não serve.

Como o socialismo poderia fazer melhor?

Sob o socialismo, a produção será orientada para a necessidade em vez do lucro. Projeto universal. Com propriedade coletiva e planejamento democrático, poderíamos transformar o ambiente construído, aplicando um “projeto universal”. Construções e espaços exteriores projetados podem ter não apenas acesso sem degraus, mas também um ambiente de mínimo estresse sensorial, navegação limpa, informação em vários formatos, espaços de relaxamento e assim por diante. 

Serviços de suporte. O socialismo proverá os serviços de suporte que pessoas neurodivergentes precisam e que o capitalismo não provém.

Pluralismo nos métodos de comunicação. Na sociedade atual, é “eficiente” para um empreendimento capitalista privado insistir na conformidade de comunicação. Por exemplo, uma companhia excluirá pessoas disléxicas ao insistir que todos os relatórios sejam escritos, ou excluirá pessoas autistas ao insistir no contato visual em entrevistas. Em contraste, o socialismo organizará a sociedade coletivamente, em vez de em unidades concorrentes, de modo a permitir que as pessoas se comuniquem verbalmente, visualmente, ou da maneira que lhes for mais adequada.

Pesquisa democrática e responsável. Sob o socialismo, seremos capazes de recorrer à pesquisa e focá-la no melhor entendimento da diferença neurológica a fim de reduzir a desvantagem e angústia, de forma que pessoas neurodivergentes possam opinar sobre o tipo de pesquisa que é feito.

Além disso, em vez de ter muitos departamentos de pesquisa diferentes de companhias diferentes competindo entre si, os pesquisadores serão capazes de cooperar e, assim, fazer progresso mais rapidamente.

Controle dos trabalhadores. Ter mais controle sobre nosso ambiente sensorial, as horas que trabalhamos, o ritmo e método do nosso trabalho acabará com uma grande parte da pressão e hostilidade que pessoas neurodivergentes enfrentam. Isso tornará os locais de trabalho menos angustiantes e portanto mais acessíveis. Apenas 16% dos autistas adultos em idade de trabalho têm empregos de período integral – não porque apenas 16% dos autistas adultos são capazes de trabalhar integralmente, mas em razão da hostilidade e falta de controle sobre as condições de trabalho. Muitos autistas sofrem em empregos onde não está claro de que forma seu trabalho se encaixa no processo de produção em geral. Isto é comum sob o capitalismo, que não considera ser esta a preocupação do trabalhador, e que requer que você apenas faça sua parte para produzir algo que é tirado de você e vendido.

O socialismo acabará com essa alienação dos trabalhadores em relação aos produtos do trabalho e irá reconectar-nos com o trabalho que fazemos. O lado bom sem o mau. Nós queremos que o socialismo beneficie pessoas neurodivergentes, ao combinar as vantagens da produção em massa com um novo espaço para a diversidade e individualidade.

Nós não queremos retornar às sociedades pré-capitalistas ou abandonar os níveis de produção que temos agora (embora haja níveis de produção que não precisamos, como de armas, propaganda e produtos falsificados). Nós queremos produção em massa sem que todos tenham que ser iguais, sentados uns aos lados dos outros, fazendo a mesma coisa, produzindo os mesmos quinze objetos por hora, submetidos às mesmas metas de desempenho. Se você quer sair de um contexto obsessivo, deve apresentar uma ruptura real, então vamos construir uma sociedade que permita isso. Cooperativa e não competitiva. A competição é angustiante para muitas pessoas neuroatípicas (bem como para muitas pessoas neurotípicas).

O capitalismo nos estimula a competir por tudo. Os empregadores colocam trabalhadores uns contra os outros: quem sairá melhor na avaliação de performance, quem ganhará o bônus, quem será o funcionário do mês. Firmas competem entre si, tornando os empregos instáveis. Uma economia cooperativa removeria tal nível de hostilidade.

Sobrecarga sensorial reduzida. Democrática, considerando que o planejamento poderia reduzir o estímulo sensorial. Um ambiente sustentável, limpo, seria melhor do que uma agressão aos sentidos. Uma economia cooperativa, em vez de competitiva, reduziria o volume de propaganda. Imagine um mundo sem anúncios e note quão mais calmo e agradável seria.

Karl Marx disse: de cada qual segundo suas habilidades, a cada qual segundo suas necessidades. Esse é o princípio guia para o que estamos lutando: que as pessoas contribuam com a sociedade de acordo com a forma e nível de suas capacidades, e que recebam todo o suporte e recursos necessários para viver.

Do capitalismo ao socialismo

Nós fizemos algum progresso sob o capitalismo. Por exemplo, ser canhoto é uma variante neurológica, e num passado não tão distante pessoas canhotas eram severamente maltratadas. As escolas batiam com bastões na mão esquerda das crianças ou as amarravam em suas costas para forçá-las a escrever com a mão direita. Mas agora existem tesouras e violões para canhotos, e pouquíssimos canhotos se dizem oprimidos, mesmo que as coisas sejam meio estranhas às vezes. Este é um exemplo de como, ao fazer campanha, discutir e esclarecer, podemos atingir progresso dentro do capitalismo.

Mas essas mudanças tiveram baixo ou nenhum custo aos capitalistas, e foram até lucrativas para alguns. Este não será o caso com outras desvantagens relacionadas às pessoas neurodivergentes. O capitalismo não irá, voluntariamente, fazer mudanças que o custem dinheiro ou poder: isto significaria que ele não está mais no comando de “seus” locais de trabalho, e não o aceitará graciosamente. Nós defendemos a liberação através do socialismo: podemos dizer para autistas, disléxicos, outras pessoas neurodivergentes e nossos aliados que sim, somos capazes de lutar por avanços dentro dessa sociedade, mas podemos ir além disso ao imaginar e lutar por uma sociedade diferente.

Podemos fazer isso mais efetivamente se desenvolvermos teoria, escrevermos e discutirmos seriamente sobre marxismo, autismo e neurodiversidade, como o Workers’ Liberty começou a fazer. Conforme cresce o conhecimento acerca do autismo, dislexia e a diversidade da estrutura cerebral humana, é importante evitar de colaborar com a “conscientização sobre neurodiversidade” convencional e com a agenda dos empregadores. Campanhas de “conscientização” brandas pedem que as pessoas apenas percebam um pouco mais o problema; elas não demandam mudanças. Nós precisamos de ação, não apenas consciência.

Alguns empresários agora reconhecem a neurodiversidade. Para alguns, os dá um logotipo de igualdade, uma medalha usada para mostrar que se importam. Outros estão utilizando a questão por razões de exploração direta e, se você olhar de perto, verá que o admitem abertamente. Há empregadores que recrutam ativamente pessoas autistas a fim de serem exaltados por prover trabalho às pessoas que sofrem em outros empregos. Mas então você pode ler uma entrevista com o Chefe Executivo explicando que gostam de empregados autistas porque “eles não desperdiçam tempo conversando com outras pessoas, então são mais produtivos”, ou algo similar.

Esses empregadores parecem interessados em nós porque acreditam poder explorar-nos mais do que aos outros, e estão provavelmente recrutando os autistas mais independentes e habilidosos em vez daqueles que têm uma capacidade limitada e precisam de suporte constante. Nós fazemos campanha por demandas radicais de melhoria de vida.

O projeto do Manifesto do Partido Trabalhista sobre Autismo e Neurodiversidade, que é um grupo no qual estivemos trabalhando com a ajuda de John McDonnell, têm todo tipo de políticas progressivas para resolver os problemas que mencionamos. Podemos também discutir quais demandas de transição seriam úteis à questão da neurodiversidade – quais demandas poderiam guiar-nos na luta que temos agora e, também, incitar as pessoas a buscar uma mudança na sociedade como um todo para alcançá-las completamente. Precisamos educar e mobilizar nosso movimento. Vamos protestar contra o abuso e discriminação!

Ativistas protestaram contra a Autism Speaks e sua representação negativa do autismo, contra o Judge Rotenberg Centre e seu tratamento de choque para jovens autistas, contra os charlatões e suas “curas” furadas.

E vamos reforçar nossos programas educacionais e de treinamento nos movimentos trabalhistas e de neurodiversidade. Seremos mais efetivos se fizermos da esquerda e do movimento trabalhista aliados da neurodiversidade e mais acessíveis aos neurodivergentes. Isso significa usar materiais em diversos formatos. Não podemos mais nos limitar a jornais densos cheios de texto. Pessoas podem não o ler se forem disléxicas; ou podem não ler partes enormes de uma só vez se tiverem uma capacidade de atenção menor. Graças ao capitalismo, existe a tecnologia, onde podemos facilmente fazer coisas em formatos diversos.

Podemos facilmente criar vídeos curtos sobre o que queremos dizer em relação ao socialismo; podemos usar métodos gráficos; podemos viajar por aí e falar para grandes e pequenos grupos; não precisamos mais depender apenas da palavra impressa. Nós podemos também ser mais socialmente inclusivos.

É claro que formamos grupos de amigos nos movimentos políticos, mas vamos estar atentos para não deixar pessoas de fora e garantir que sejam todos incluídos no que fazemos, em nossos eventos e atividades, mesmo que eles não façam brincadeiras como os outros.

Assédio e bullying excluem neurodivergentes e outras pessoas. O movimento trabalhista nunca esteve imune a isso, e acredito que o problema pode estar crescendo. Se as pessoas forem tratadas de maneira hostil e levadas a sentir-se mal consigo mesmas, no final se esgotarão ou irão embora. A cultura de camaradagem respeitosa não atravessa o nosso movimento da forma que precisamos. Podemos, também, aprimorar o ambiente sensorial em nossos eventos: prover uma sala silenciosa, suavizar os estímulos sensoriais.

Resumindo: o capitalismo desenvolve recursos produtivos, mas o faz de acordo com os interesses da pequena classe dominante cujo propósito é obter lucro e, assim, cria estresse e desvantagem para pessoas neurodivergentes. Ao reorganizar a sociedade com uma base socialista, com uma economia democraticamente planejada, orientada às necessidades humanas e não aos lucros privados, podemos começar a remover essas barreiras e problemas que o capitalismo cria para fundar uma sociedade mais inclusiva, menos discriminatória. Vimos algumas das formas de chegar lá – mobilizar, desenvolver teoria, tornar nosso próprio movimento mais acessível. Estamos começando a mostrar o potencial de alcance da libertação através do socialismo.

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