José Carlos Mariátegui – Existe um pensamento hispano-americano?

Texto traduzido de Política Revolucionaria contribución a la crítica socialista: la escena contemporânea y otros escritos Tomo 1. Caracas: Fundación Editorial El perro y la rana, 2010.

Tradução por Jhonatan Alcântara.

I

Há quatro meses, em um artigo sobre a ideia de um congresso de intelectuais ibero-americanos, formulei essa pergunta (o título do texto). A ideia do congresso já percorreu, em quatro meses, um longo caminho. Aparece agora como uma ideia que, vaga, mas simultaneamente, ressoava (batia) em vários núcleos intelectuais da América indo-ibera. Como uma ideia que germinava ao mesmo tempo em diversos centro nervosos do continente. Ainda que embrionária, hoje começa já a adquirir e desenvolver corporeidade.

Na Argentina, um grupo enérgico e volitivo se propõe a assumir a função de animar e realizar essa ideia. O empenho desse grupo tem sido o de ligar-se aos demais grupos ibero-americanos afins. Circulam entre esses grupos alguns questionários que pretendem ou insinuam os temas que devem ser discutidos no congresso. O grupo argentino, por exemplo, tem esboçado uma proposta de uma “União Latino-Americana”. Existem, em suma, os elementos preparatórios de um debate, dentro do qual será elaborada e precisada as finalidades e as bases deste movimento de coordenação e de organização do pensamento hispano-americano como, ainda que um pouco abstratamente, objetivam definir seus iniciadores.

II

Me parece, portanto, que é o tempo de considerar e esclarecer a questão discutida no meu já mencionado artigo. Existe um pensamento caracteristicamente hispano-americano? Imagino que, a respeito disso, as afirmações dos simpatizantes da sua organização vão longe demais. Certas interpretações de uma mensagem de Alfredo Palacios à juventude universitária da Ibero-América induziram, a alguns temperamentos excessivos e tipicamente tropicais, uma estimativa exorbitante de valor da potência do pensamento hispano-americano. A mensagem de Palacios, entusiasta e otimista nas suas asserções e frases, como convinha ao seu caráter de agitador, engendrou uma série de exageros. É indispensável, portanto, uma retificação destes conceitos exageradamente categóricos.

“Nossa América – escreve Palacios – até hoje viveu a partir da Europa, tendo-a como um guia. Sua cultura nos tem nutrido e orientado. Porém, a última guerra deixou evidente algo que já se imaginava: que no coração dessa cultura já estavam presentes os germes da sua própria dissolução.” É impossível se surpreender com interpretações equivocadas que essa frase pode ter gerado acerca da tese sobre a decadência do ocidente. Palacios parece anunciar uma radical independência da nossa América da cultura europeia. Nesse caso, o tempo verbal está errado. A conclusão de um leitor simplista deduz da frase de Palacios que “até agora a cultura europeia nutriu e orientou” a América; mas que a partir de hoje não a nutre nem orienta mais. Conclui-se, ao menos, que a partir de hoje a Europa perdeu o direito e a capacidade de influenciar espiritual e intelectualmente na nossa jovem América. E essa conclusão se acentua e se exacerba, inevitavelmente, quando, algumas linhas depois, Palacios acrescenta que “não nos servem os caminhos da Europa nem as velhas culturas” e quer que nos emancipemos do passado e do exemplo europeu.

Nossa América, segundo Palacios, se sente na iminência de dar à luz a uma nova cultura. Extremando esta opinião ou presságio, a revista Valoraciones fala que “devemos acertar as contas com os tópicos em questão, expressões agônicas da alma decrépita da Europa”.

Devemos ver nesse otimismo um sinal e um dado do espírito afirmativo e da vontade criadora da nova geração hispano-americana? Eu reconheço, antes de tudo, um rastro da velha e incurável exaltação verbal da nossa América. A fé da América em seu porvir não precisa se alimentar de um artificioso e retórico exagero de seu “eu” presente. Tudo bem que a América se imagine destinada a ser o lar da futura civilização. Tudo bem que ela diga: “Por minha raça falará o espírito”[1]. Tudo bem que se considere escolhida para ensinar ao mundo uma nova verdade. Porém que não se suponha em caminhos de substituir a Europa nem que declare já fenecida e superada a hegemonia intelectual da gente europeia.

A civilização ocidental se encontra em crise; mas ainda não existem indícios de que esteja próxima do colapso definitivo. A Europa não está, como absurdamente se diz, esgotada e paralítica. Apesar da guerra e do pós-guerra ainda conserva seu poder de criação. Nossa América continua importando da Europa ideias, livros, máquinas e moda. O que declina, na realidade é o ciclo da civilização capitalista. A nova ordem social, a nova ordem política, estão sendo plasmados no seio da Europa. A teoria da decadência do ocidente, produto do laboratório ocidental, não prevê a morte da Europa, mas a cultura que aí tem sua sede. Esta cultura europeia, que Spengler[2] julga em decadência, sem prever uma morte imediata para esta, sucedeu a cultura greco-romana, e europeia também. Ninguém descarta, ninguém exclui a possibilidade de que a Europa se renove e se transforme uma vez mais. No panorama histórico que nossa vista alcança, a Europa se apresenta como o continente das maiores palingenesias[3]. Os maiores artistas, os maiores pensadores contemporâneos, não são eles europeus? A Europa se nutre da seiva universal. O pensamento europeu se submerge nos mais distantes mistérios, nas mais antigas civilizações. O que demonstra, por isso mesmo, sua capacidade de convalescer e renascer.

III

Voltemos à nossa questão. Existe um pensamento característico hispano-americano?

Me parece evidente a existência de um pensamento francês, de um pensamento alemão etc., na cultura ocidental. Não me parece igualmente evidente, no mesmo sentido, a existência de um pensamento hispano-americano. Todos os pensadores da nossa América foram educados em uma escola europeia. Não se sente em sua obra o espírito da raça. A produção intelectual do continente carece ainda de aspectos próprios. Não tem contornos originais. O pensamento hispano-americano não é outra coisa senão uma rapsódia composta com razões e elementos do pensamento europeu. Para comprovar esta tese, basta revisar a obra dos mais altos representantes da inteligência indo-ibera.

O espírito hispano-americano está em elaboração. O continente, a raça, estão também em formação. As aluviões ocidentais nas quais se desenvolveram os embriões da cultura hispana ou latino-americana, – na Argentina, no Uruguai, se pode falar em latinidade – não conseguiram consubstanciar-se nem se consolidar no solo sobre o qual a colonização da América os depositou.

Em grande parte da Nossa América se constitui um estrato superficial e independente ao qual não aflora a alma indígena, deprimida e taciturna, causada pela brutalidade de uma conquista que em alguns povos hispano-americanos não mudou até hoje os seus métodos. Palacios diz: “Somos povos nascentes, livres de amarras e ligaduras, com imensas possibilidades e vastos horizontes ante nós mesmos. O cruzamento das raças nos deu uma nova alma. Dentro das nossas fronteiras acampa a humanidade. Nós e nossos filhos somos sínteses de raças.” Na Argentina é possível pensar assim; no Peru e outros povos da Hispano-América não. Aqui (no Peru) a síntese não existe ainda. Os elementos da nacionalidade em elaboração não puderam ainda firmar-se ou soldar-se. A densa capa indígena se mantém quase totalmente estranha ao processo de formação dessa peruanidade que costumam exaltar e inflamar nossos sedentários nacionalistas, predicadores de um nacionalismo sem raízes no solo peruano, aprendidos nos evangelhos imperialistas da Europa, e que, como já tive a oportunidade de observar, se trata do sentimento mais estrangeiro e postiço que existe no Peru.

IV

O debate que se inicia deve, precisamente, esclarecer todas estas questões. Não deve preferir a cômoda ficção de as declarar resolvidas. A ideia de um congresso de intelectuais ibero-americanos será válida e eficaz, antes de tudo, na medida em que consiga discuti-las. O valor da ideia está quase integralmente no debate que suscita.

O programa da seção Argentina da esboçada União Latino-Americana, o questionário da revista Repertorio Americano da Costa Rica e o questionário do grupo que trabalhar aqui pelo congresso, convidam os intelectuais da nossa América a meditar e opinar sobre muitos problemas fundamentais deste continente em formação. O programa da seção Argentina tem o tom de uma declaração de princípios. É algo ainda prematuro indubitavelmente. No momento se trata de traçar um plano de trabalho em “plano de discussão”. Os trabalhos da seção Argentina demonstram um espírito moderno e uma vontade renovadora. Este espírito, esta vontade, conferem o direito a dirigir o movimento. Porque o congresso, se não representa e organiza a nova geração hispano-americana, não representará nem organizará absolutamente nada.   


[1] Lema criado por José Vasconcelos para a Universidade Nacional do México.

[2] Oswald Spengler. Historiador e filósofo alemão autor da obra O Declínio do Ocidente.

[3] Ressureições, regenerações.

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