Leôncio Basbaum – Uma Vida em Seis Tempos [PDF]

Em 1976, a Editora Alfa Omega lançou a autobiografia de Leôncio Basbaum intitulada “Uma Vida em Seis Tempos: Memórias”, obra que resgata a trajetória política de um dos principais dirigentes do PCB durante importantes períodos da história brasileira.

Depois de décadas fora de circulação no mercado editorial, o TraduAgindo disponibiliza a edição completa do livro de forma escaneada.

Esperamos que possam aproveitar, se aprofundar e refletir criticamente sobre a história do movimento comunista no Brasil e no mundo.

Segue o link para baixar a obra e a transcrição da introdução redigida por Basbaum.

Introdução

Creio que todos os homens, ao atingir uma certa idade, variável para uns e outros, mesmo sem querer, começam a refletir sobre o seu passado e a perguntar, por vezes, a si mesmos: “valeu a pena ter vivido? Que fiz da minha vida? Que fiz eu por mim e pelos meus semelhantes? As horas de felicidade superaram as horas de amargura?” Agora, que acabo de completar sessenta anos, essas perguntas começam também a aflorar no meu espírito.

A resposta, para mim e para muitos outros que fazem a si mesmos essas perguntas é certamente variável, tudo dependendo do que se desejou na vida, do que se considera importante e válido, do caráter e do sentimento de cada um. Mas, de qualquer modo, ninguém está apto a julgar os seus próprios atos. Talvez seja por isso que muitos escrevem sua autobiografia: vejam o que sou, o que fui, o que fiz! Alguns acreditam que realmente fizeram algo: Chaplin, por exemplo. Outros escrevem para expor seu pensamento filosófico, ou simplesmente para fazer literatura, como Sartre ou Gide. Outros ainda para desafogar sua própria consciência, como que a justificar perante os outros, ou a si mesmos, o que fizeram de sua própria vida. Assim são as Confissões de Rousseau. Outros, para se vingar da sociedade com o escândalo, como a dizer: “vejam o que vocês fizeram de mim”, qual Jean Genet de Le Journal d’un Voleur.

Eu não sei em qual delas – e existem muitas outras motivações – eu catalogaria as minhas memórias. Deixo isso ao encargo do possível leitor, que acaso se preocupe com o assunto.

E por que são lidas essas memórias, que são, muitas vezes, mais do que a simples exposição de uma vida, a exposição de uma alma, de uma intimidade desvendada e posta a nu, como se abríssemos, para o público, o recesso de nosso quarto de dormir ou mesmo as portas de nosso banheiro privativo?

Há, sem dúvida, o interesse, a admiração pelo autor, a curiosidade em torno de uma vida aventurosa, ou de qualquer modo significativa para o mundo, vida que deixou não apenas as cinzas de um fogo que se apagou, mas chispas que conseguem ainda incendiar outras almas.

Cada livro autobiográfico é uma lição de humanidade, ou de hominidade, pois, através dele, penetramos em uma alma. E, a cada livro de memórias que lemos, se o procurarmos, acrescentamos algo a essa luta do homem pelo conhecimento de si mesmo, nem sempre pelo que o autor disse ou fez, mas pelo que deixou de dizer ou fazer. Muitas vezes pelo que se consegue ler nas entrelinhas: eis aí uma alma, de qualquer modo, um homem. Há nesses livros, sempre algo de humano, desde que foi escrito por um homem, mesmo que ele nada tenha dito ou feito: era, afinal de contas, um homem e possuía em si uma minúscula parcela de humanidade, um ínfimo grão de poeira da essência humana que há em todos nós.

Acredito que sessenta anos é uma boa idade para uma pequena pausa, para rever o passado. Não, que o fogo se tenha apagado, como no meu caso. Nem isso significa o início de uma aposentadoria enquanto o sol ainda brilha lá fora. Mas nessa idade — e começo a percebê-lo — pouco há ainda que nos possa espantar ou surpreender. Temos a impressão de que tudo o que vemos, ou lemos, já foi visto ou lido. Não que o sentimento se tenha desgastado, de tanto haver sido solicitado, mas a consciência crítica começa a predominar sobre o entendimento. E vemos tudo com mais clareza. E mais sabedoria. É justo que ponhamos essa clareza e essa sabedoria a serviço das gerações que vêm tomar o nosso lugar.

Ao refletir sobre essa vida que se foi — ou que se está indo — ninguém todavia poderá dizer: “eu não devia ter feito assim, mas de outro modo; eu não devia ter dito isso, mas aquilo”. Na verdade, isso não mais importa: o que se fez está feito e o que se falou está falado. Resta apenas, agora, o consolo de que o que foi feito ou dito, não podia deixar de sê-lo. E se cada um de nós pudesse refazer sua vida, diria ou faria o exatamente o que fez ou disse. Nada poderia mudá-lo, a não ser que as circunstâncias tivessem mudado ou mudada a nossa consciência.

Mas aos sessenta anos, mesmo quando ainda não nos aposentamos, quando há ainda algo que podemos fazer ou dizer, vemos tudo com mais serenidade. É precisamente quando nos sentimos adultos, quando começamos a compreender os nossos semelhantes e a nós mesmos.

Que me leva a escrever essas memórias, quando o dia ainda está claro? Não sei, há um impulso irresistível — e talvez a força do apelo de alguns amigos. Pode ser a vaidade, o desejo de me revelar ao mundo, que ainda não me descobriu. Mas talvez seja a convicção de que a vida representou algo mais do que fiz ou tentei fazer. Muitos homens se perguntam: fui um fracasso ou um vitorioso? Não se trata de julgar-me por esse ângulo, nem de me submeter ao julgamento de outros. Sinceramente, não estou interessado nesse veredito da posteridade. Mas acredito que tenho algo para dar ao mundo: a minha experiência, a experiência de um homem que viveu dentro do mundo, que não apenas o olhou de longe mas de dentro dele, que sentiu e viveu os seus problemas, que pensou, escreveu e, sobretudo, agiu, pois é a ação que marca uma vida. E nisso que joguei a minha vida e o meu pensamento, talvez haja algo capaz de interessar à humanidade, senão pelo que fiz ou tentei fazer em seu benefício, pelo menos indiretamente, pelo que essas memórias possam significar: um pouco da alma de um homem, de um certo e determinado homem, de qualquer modo uma parcela da essência humana. Um dia se criará a ciência do homem e a matéria-prima dessa ciência pode estar contida nesse número sem conta de autobiografias que, através dos tempos, foram sendo escritas. Seja a de um mendigo anônimo, seja a de um rei ou de um líder, todos têm em si uma parcela de humanidade, da chama que alumia ou incendeia os espíritos e movimenta os homens. Para essa ciência, como para o pó de onde todos vieram e para o qual voltarão, todos são iguais.

Mas há ainda uma outra motivação para mim: mais de metade da minha vida, em pensamento e ação, foi dedicada ao Partido Comunista do Brasil, hoje Partido Comunista Brasileiro, não tanto ao próprio Partido, mas ao que ele representava em intenções: a liberdade e o resgate do povo brasileiro, a redenção do Brasil. Nesses anos conheci muita gente ligada ao Partido, de uma forma ou de outra: militantes ativos, simples contribuintes, simpatizantes, amigos e inimigos, aproveitadores, tiras, e até mesmo marginais de toda espécie, ladrões salteadores, punguistas, vagabundos, nas várias prisões por que passei. Uma parte da humanidade, enfim, diferente e, não obstante, igualmente humana. Acompanhei a formação e a evolução do Partido, de sindicatos operários, de muitas lutas de caráter econômico ou político.

Nesses quase quarenta anos, algumas vezes marginalizado pelas lutas internas, outras como elemento de vanguarda, conheci, dentro do Partido ou na sua periferia, tipos humanos de toda espécie. Havia heróis e salafrários, mártires e vigaristas, homens honestos ou simples aventureiros, comunistas sinceros e carreiristas. Mas nada há de admirar: disso é feita a humanidade. (Mas então eu não sabia ainda.) Eles estão em toda a parte. Muitos passavam pelo Partido como cometas, chegavam e desapareciam, subiam e desciam, mas deixando quase sempre sequelas maleficentes de sua passagem. De repente surgiam como ardorosos líderes e de repente voltavam ao anonimato de suas vidas reais, obscuras e insignificantes.

O grande desapontamento de minha vida, todavia, foi encontrá-los onde eu menos esperava: no meio de santos, de homens que teimavam em dar a outros sua vida por um mundo melhor.

É claro que isso hoje não mais me espanta. Mas a frustração sentida quando o descobri, tornou amarga a minha vida por um longo período. Aventureiros, aproveitadores, carreiristas, amigos falsos, como as pulgas, estão em toda parte e somente as descobrimos quando lhes sentimos a ferroada. Não eram demônios — o que é uma forma de santidade e inocência —, eram apenas criaturas vulgares, na inteligência como nos sentimentos, e se caracterizavam por uma qualidade: a esperteza.

Enfim, bons e maus, honestos e aventureiros, todos são criaturas humanas, exceto as pulgas. Em todos há uma centelha da vida, uma parte da essência do humano, e talvez esteja nisso o encanto da vida. Ela seria bem enfadonha se fôssemos todos santos e heróis, porque então não haveria nem santos nem heróis.

Assim, tenho algo que contar, da minha vida e da vida do Partido, pois durante muito tempo eles estiveram intimamente entrosados. Relembrarei fatos e homens (algumas mulheres também). Como é óbvio, por medida de prudência, se há alguns homens que aparecem por inteiro, outros são indicados apenas por iniciais. Quando os nomes aparecem por inteiro é porque ou seus portadores já morreram ou porque de tal modo voltaram ao anonimato que não será fácil identificá-los. Ou porque fui autorizado a mencioná-los. Outras vezes porque seus nomes são de tal modo conhecidos e fichados que uma palavra a mais ou a menos não alterará sua situação perante o DOPS ou o FBI. Outras vezes, uso pseudônimos, nomes de guerra, pelos quais eram conhecidos dentro do Partido, pois nunca foi possível saber-lhes o nome real.

De qualquer modo acredito que este trabalho será uma contribuição para uma futura história do PCB: como nasceu, viveu e morreu. Mas será mais do que uma história política: será antes uma história humana, o lado humano da atividade revolucionária.

Ao terminar estas linhas introdutórias, quero render aqui minha homenagem àqueles companheiros leais dentro ou fora do Partido, aos que saíram e aos que ainda lá permanecem, e que não hesitaram em entregar sua vida e a de sua família ao movimento revolucionário, aos frustrados e aos que ainda não se frustraram, aos que lutam na certeza de que estão do lado certo, aos que desistiram e procuram um novo caminho, e mesmo aos que cansaram e saíram da estrada, mas que assim mesmo deram algo de si próprios, enquanto tiveram forças. E, sobretudo, aos que tombaram.

Todos os direitos originais estão reservados à Editora Alfa Omega Ltda. O TraduAgindo se coloca aberto para contato através do e-mail disponibilizado na seção “Arquivo”.

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