Jean Domarchi – A Lei do Coração

La loi du coeur”, Cahiers du Cinéma N°59, p. 36-37, maio de 1956.

Tradução por Miguel Fernandes.


REBEL WITHOUT A CAUSE (JUVENTUDE TRANSVIADA), filme americano em CinemaScope e Warnercolor de Nicholas Ray. Roteiro: Stewart Stern, baseado em uma história de Nicholas Ray. Adaptação: Irving Shulman. Fotografia: Ernest Haller. Décors: William Wallace. Música: Léonard Rosenman. Montagem: William Ziegler. Direção de arte: Malcolm Bert. Atuações: James Dean, Natalie Wood, Sal Mineo, Jim Backus, Ann Doran, Virginia Brissac, William Hopper, Rochelle Hudson, Corey Allen, Dennis Hopper, Marietta Canty, Edward Platt, Ian Wolfe, Nick Adams, Jack Grinnage, Steffi Sidney, Tom Bernard, Clifford Morris, Beverly Long. Produção: David Weistaart – Warner Bros., 1955.

O God! That it were possible
To undo things done, to call back yesterday
That time might turn up his swift sandy glass
To untell the days and to redeem these hours.[1]

THOMAS HEYWOOD, A woman killed with kindness    

Há momentos em que o senso crítico é inadequado, até mesmo ofensivo, sórdido. Algumas obras reivindicam e conseguem um total abandono deste senso, e, por uma adesão tão profunda, ressoam em nós como um canto, tornando-se um momento privilegiado de nossas vidas. Qualquer dissertação, então, parece ridícula, e os prós e contras, risíveis.

Sim, com Rebel Without a Cause (Juventude Transviada) foi algo diferente de um espetáculo. Foi como um sonho em que, de tempos perdidos, ressurgiu-se um passado – o meu (o seu também, talvez) –, esse passado que nos lembra a Bela Adormecida, esperando apenas um poeta renascer. Foi também toda a ternura e todo o amor do mundo, e também a recusa de tudo aquilo que, rejeitando a amizade, o altruísmo, o afeto – o amor, afinal –, transformara nossas vidas numa fria solitude, muito mais implacável do que o vazio infindo do espaço sideral.

O cinema já havia conhecido o hino, a elegia, mas, depois de Susie, o Coração Puro de Griffith e Aurora de Murnau, esquecera-se do valor inestimável de um ombro amigo, de um sorriso, de uma mão que se estende ao outro; e esse ombro amigo, esse sorriso, essa mão que se estende, quem os redescobre é Nicholas Ray. Mas é preciso dizer que ele se dirige somente à nossa sensibilidade? Não, pois ele se revela também como um admirável psicólogo. Ousando mostrar um filho que bate em seu pai por amor (um amor ao qual se mistura decepção e rancor), lembramo-nos de algumas páginas de Irmãos Karamázov e Béatrice: as situações falsas, nada as pode dar fim senão a fúria e o delírio. O que Jim condena em seu pai é menos sua covardia, sua vã boa vontade, do que a imagem de sua própria abulia que se reflete nele. Sendo obrigado a mudar, a bancar o homem forte, Jim rejeita mesmo assim o afeto insípido do amor paternal. Ele anseia a verdade e tudo é apenas ilusão. Tudo, a não ser o amor pelo qual essa consciência dilacerada e crucificada se acalma, podendo esbanjar da infinita fonte de uma ternura até então desconhecida. Estamos, portanto, lidando menos com um amor insano do que com um amor mediador, por meio do qual a consciência apaziguada se reconcilia com o mundo. Essa solução, da qual Hegel, Goethe e Kafka haviam fugido (ou recusado), N. Ray se apega a ela com todo o entusiasmo e convicção de um jovem. Ele encarna no mais alto nível essa ressurreição do Romantismo, essa renascença da lei do coração, há muito rechaçada pela arte moderna. E quanto ao seu estilo, ele coincide com essa exigência, pela maneira que há de encontrar a serenidade após a exaltação, a calmaria após a tempestade. Seu ritmo é o do coração: contido e crispado, inquieto e confiante. Nicholas Ray é o cinema tal como Bach é a música.


[1] Tradução livre: Ó Deus! Fosse possível / Desfazer o já feito, voltar ao passado / Que o tempo revirasse as areias de sua ampulheta / Anular os dias e resgatar essas horas. [N. do T.]

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