Artigo retirado do livro organizado por Alex Ratts Uma História Feita por Mãos Negras[1].
Transcrição por Ian Cartaxo.
PODE PARECER ESTRANHO que tenhamos escolhido a condição amorosa e não sexual para nos referir ao estado de ser mulher e preta no meu país. A escolha do tema funda-se em histórias de vida e na observação de aspectos da afetividade de mulher frente à complexidade das ligações heterossexuais.
A temática da sexualidade nas relações de homem e mulher atualmente é cada vez mais encarada do ponto de vista político ou sociológico. Ou seja, perpassa a discussão a questão do poder: o status dominante do elemento masculino em detrimento do outro elemento, o feminino. Recorre-se a explicações econômicas, sociais e políticas, enfatizando o papel do trabalho, visto como fator de resolução da desigualdade ou propulsor de um igualitarismo entre os dois sexos.
Em princípio, a retórica política do mundo moderno está calcada no liberalismo do Iluminismo europeu no século XVIII. Persegue-se o ideal de igualdade entre os agentes sociais das sociedades humanas. Fruto da reflexão na economia, que invadiu a filosofia e privilegiou o indivíduo mais que o grupo, o Iluminismo adiciona a todo o universo da humanidade a noção masculina e sobredeterminada do produtor, que tem como recompensa do seu esforço o privilégio de ser o chefe. Foi forjada no Ocidente uma sociedade de homens, identificando não só o gênero masculino, mas a espécie no seu todo. Essa perspectiva possuía um devir utópico, previa-se um mundo sem diferenças. Entretanto, ao contrário do pensamento iluminista, naquele momento processava-se a anexação de sociedades e culturas extremamente diferentes em termos políticos, sociais e individuais da sociedade do europeu através da máquina colonialista.
Sabemos que ao poder da razão se impunha essa contradição histórica no terreno das ideias e do real. Para exemplificar a mecânica dessa ideologia na prática do pensamento ocidental em que a afirmação corresponde à negação, reflitamos sobre esta frase de Martinho Lutero, no século XVI: “A razão é uma mulher astuta”. Contraporíamos: logo, é preciso que seja aprisionada pelo homem e expressada como atributo masculino, e só assim a razão pode ser dominante.
Por esse pensamento formulado, a mulher seria um homem, embora não sendo total. Seria ciclicamente homem, conforme seu próprio ciclo natural (puberdade e maternidade). Fora desses estados, sua capacidade de trabalho estaria a reboque da necessidade do desenvolvimento econômico (mão de obra anexada ou excludente de acordo com as variações da economia). Fora desses espaços, ou mesmo aí, ela não o é. Será a razão fora de lugar, ou exercerá sua razão fora do campo produtivo.
Vai recobrir a mulher a moral totalizadora, seja como agente ou como submetida. Ela irá se revestir de fantasias, de sonhos, de utopia, de eroticidade não satisfeita e estagnada pela condição específica da sua arquitetura física e psicossocial.
Dentro desse arcabouço, qualquer expressão do feminino é revestida pela instituição moral. Ela representa em si a desigualdade caracterizada pelos conflitos entre submissão × dominação; atividade × passividade, infantilização × maturação. A contrapartida a esse estado de coisas coloca a mulher num papel desviante do processo social, em que a violência é a negação de sua autoestima.
A mulher negra, na sua luta diária durante e após a escravidão no Brasil, foi contemplada como mão de obra, na maioria das vezes não qualificada. Num país em que só nas últimas décadas deste século o trabalho passou a ter significado dignificante, o que não acontecia antes, pelo estigma da escravatura, reproduz-se na mulher negra “um destino histórico”.
É ela quem desempenha, em sua maioria, os serviços domésticos, os serviços em empresas públicas e privadas recompensados por baixíssimas remunerações. São de fato empregos em que as relações de trabalho evocam as mesmas relações da escravocracia.
A profunda desvantagem em que se encontra a maioria da população feminina repercute nas suas relações com o outro sexo. Não há a noção de paridade sexual entre ela e os elementos do sexo masculino. Essas relações são marcadas mais por um desejo de exploração por parte do homem do que pelo desejo amoroso de repartir o afeto, assim como o recurso material. Em geral, nas camadas mais baixas da população, cabe à mulher negra o verdadeiro eixo econômico em torno do qual gira a família negra. Essa família, grosso modo, não obedece aos padrões patriarcais, muito menos aos padrões modernos de constituição nuclear. São da família todos aqueles (filhos, maridos, parentes) que vivem as dificuldades de uma extrema pobreza.
Quanto ao homem negro, geralmente despreparado profissionalmente por força de contingências históricas e raciais, ele tem na mulher negra economicamente ativa um meio de auxílio à sua atividade, quando não à própria sobrevivência, já que à mulher se impõe, como sabemos, dupla jornada.
Entretanto, nem todas as mulheres negras estão nessa condição. Quando escapam para outras formas de alocação de mão de obra, elas dirigem-se para profissões que requerem educação formal ou para a arte (a dança). Nesses papéis, elas se tornam verdadeiras exceções sociais. Mesmo aqui, continuam com o papel de mantenedoras, na medida em que, numa família preta, são poucos os indivíduos a cruzarem a barreira da ascensão social. Quando cruzam, variadas gamas de discriminação racial dificultam os encontros da mulher preta, seja com homens pretos, seja com os de outras etnias.
Por exemplo: uma mulher preta que atinge determinado padrão social, no mundo atual, requer cada vez mais relações de parceria, o que pode recrudescer as discriminações a essa mulher específica. Pois uma sociedade organicamente calcada no individualismo tende a massificar e serializar as pessoas, distanciando o discriminado das fontes de desejo e prazer.
A parceria, elemento de complementação em todas as relações, inclusive as materiais, é obstruída e restringida na relação amorosa da mulher.
Quanto mais a mulher negra se especializa profissionalmente numa sociedade desse tipo, mais ela é levada a se individualizar. Sua rede de relações também se especializa. Sua construção psíquica, forjada no embate entre sua individualidade e a pressão da discriminação racial, muitas vezes surge como impedimento à atração do outro, na medida em que este, habituado aos padrões formais de relação dual, teme a potência dessa mulher. Também ela, por sua vez, acaba por rejeitar esses outros — homens, masculinos, machos. Já não aceitará uma proposta de dominação unilateral.
Desse modo, ou ela permanece solitária, ou liga-se a alternativas em que os laços de dominação podem ser afrouxados. Convivendo em uma sociedade plurirracial, que privilegia padrões estéticos femininos como ideal de um maior grau de embranquecimento (desde a mulher mestiça até a branca), seu trânsito afetivo é extremamente limitado. Há poucas chances para ela numa sociedade em que a atração sexual está impregnada de modelos raciais, sendo ela representante da etnia mais submetida. Sua escolha por parte do homem passa pela crença de que ela seja mais erótica ou mais ardente sexualmente que as demais, crença relacionada às características do seu físico, muitas vezes exuberante. Entretanto, quando se trata de um relacionamento institucional, a discriminação étnica funciona como um impedimento, mais reforçado à medida que essa mulher alça uma posição de destaque social, como antes referimos.
No contexto em que se encontra, cabe a essa mulher a desmistificação do conceito de amor, transformando-o em dinamizador cultural e social (envolvimento na atividade política, por exemplo), buscando mais a paridade entre os sexos do que a “igualdade iluminista”. Ao rejeitar a fantasia da submissão amorosa, pode surgir uma mulher preta participante, que não reproduza o comportamento masculino autoritário, já que se encontra no oposto deste, podendo, assim, assumir uma postura crítica, intermediando sua própria história e seu éthos. Caberia a ela levantar a proposta de parceria nas relações sexuais, o que, por fim, se replicaria nas relações sociais mais amplas.
[1] RATTS, A. (Org.); NASCIMENTO, B. Uma História Feita por Mãos Negras: Relações raciais quilombos e movimentos.. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.