Amanda Palha – Transfeminismo e Construção Revolucionária

Texto escrito para o dossiê “Marxismo e lutas LGBT” da revista da Boitempo. Margem Esquerda n. 33 (São Paulo, Boitempo, 2019), p. 11-18.

Transcrição por Andrey Santiago.


Pretendo, neste ensaio, trazer provocações e reflexões iniciais sobre a pertinência de um olhar mais cuidadoso sobre as contribuições que o transfeminismo pode trazer para a ação política marxista. Vale notar que isso não implica, para mim, considerar essa uma contribuição de mão única: certamente, há muito o que o marxismo pode acrescer à ação política transfeminista; esse movimento, no entanto, é tanto mais frequentemente abordado e compreendido nos círculos de afinidade marxista quanto também mais confortável à arrogância intelectual que vem se mostrando tão frequente entre nós, principalmente quando o assunto é as assim referidas “pautas identitárias”. Proponho, portanto, que abramos espaço ao desconforto, se necessário, a fim de navegar por controversas mas importantes águas.

TRANSFEMINISMO, IDENTIDADE E POLÍTICA

Por “transfeminismo” entendamos uma corrente específica do feminismo contemporâneo, resultado da absorção das discussões feministas por parte do movimento político de pessoas transexuais, travestis e transgêneros [1], que se constitui no contexto e no escopo da valorização das identidades raciais e de gênero não hegemônicas (não brancas, não heterossexuais, não cisgêneras) na ação e no pensar políticos da esquerda. Conforma-se como corrente política, no entanto, não por apresentar uma unidade teórica bem delimitada. Ao contrário: as contribuições transfeministas são, nesse sentido, bastante diversas. O que confere ao transfeminismo uma unidade enquanto corrente é a ação de sujeitos políticos que compartilham a identidade transexual, travesti ou transgênera [2] e o referencial feminista. Identidade ocupa, nessa discussão, papel fundamental, e merece destacada atenção.

São frequentes, dentro e fora do marxismo atual, as críticas às chamadas “políticas de identidade” ou ao identitarismo de movimentos políticos. Surge também, na vulgarização dessa discussão, uma falsa polêmica apoiada numa também falsa oposição entre “identidade” e “classe”, que ofusca um conjunto de questões promissoras a serem desenvolvidas na teoria e na prática anticapitalistas. É verdade que a ação política que toma a identidade como meio e fim esbarra no caráter eminentemente conservador que essa perspectiva traz: a defesa da manutenção de uma identidade, como fim político, implica a defesa da conservação das relações sociais que a produzem, bem como das fronteiras, materiais e simbólicas, que constituem sua diferenciação. É notório o quanto isso sabota qualquer perspectiva de transformação sistêmica.

Isso não é, no entanto, inerente à identidade, mas fruto do lugar dado a ela nesse tipo de ação. Outra maneira de lidar com a identidade é perceber e explorar sua potência para descrever e particularizar conjuntos específicos de relações e práticas sociais, das quais derivam valores distintos e perspectivas potenciais específicas de compreensão de dimensões da realidade social. Tratar identidade dessa forma [3] inscreve as possibilidades de (1) desvelar o seu caráter histórico e socialmente determinado, atravessando o véu da naturalização, e (2) convertê-la em instrumento potente de ações políticas anticapitalistas.

É mais importante do que apenas isso, no entanto. Prescindir de incorporar, na ação política marxista, essa perspectiva sobre as identidades (outras que a de classe), implica assumir dois riscos caros: deixar de alcançar compreensões mais ricas sobre dimensões específicas do próprio capitalismo contemporâneo e deixar de reconhecer os limites que algumas identidades podem impor às análises que fazemos.

Cabe aqui um exemplo que me é caro.

O PELOURINHO E AS PUTAS QUE FALTAVAM

O texto “Lênin e o movimento feminino”, de Clara Zetkin, publicado originalmente em 1920, é de amplo conhecimento entre marxistas. Publicado em português pela primeira vez em 1956 [4], ele traz trechos comentados de cartas entre Lênin e Zetkin, em que os dois discutem questões relativas aos movimentos de mulheres na Alemanha e no mundo. Na correspondência, Lênin traça um breve comentário sobre a questão da organização de prostitutas:

Foi-me dito que uma comunista muito qualificada publica em Hamburgo um jornal para as prostitutas e tenta organizar essas mulheres para a luta revolucionária. […] São vítimas, antes de tudo, do maldito sistema da propriedade, depois do maldito moralismo hipócrita. […] não se trata de considerar as prostitutas como, por assim dizer, um setor especial da frente revolucionária e de publicar para elas um jornal especial. Será que não existem, talvez, na Alemanha, operárias industriais para organizar, para educar com um jornal, para arrastar à luta? Eis aí um desvio mórbido. [5]

A informação que destaquei refere-se a Ketty Guttmann, militante do Partido Comunista Alemão e cofundadora da Associação das Prostitutas Legais de Hamburgo e Altona, organização de caráter trabalhista que mantinha o jornal Der Pranger (alemão para “O Pelourinho”), escrito por e para prostitutas e de orientação política explicitamente comunista. É de se ponderar que tal associação e publicação tragam contribuições importantes para a questão da prostituição no movimento comunista – é uma experiência digna, ao mínimo, de estudo mais cuidadoso.

Surpreende, então, que pesquisas pelo nome do jornal nas plataformas Scielo e Google Acadêmico não retornem nenhum resultado em português [6]. Teriam o juízo de reprovação de Lênin e sua referência de autoridade sido motivos suficientes para que virtualmente ninguém, na produção teórica marxista brasileira, tenha se dedicado a tal investigação com mais afinco? Defendo que não, não só.

Compreendendo a dualidade complementar entre os lugares da esposa e da puta como dois polos representativos do papel da mulher na organização capitalista e “apenas mediações diferentes para a afirmação do mesmo poder patriarcal que brota da propriedade privada” [7], a ausência da puta na discussão política torna as perspectivas da esposa referência única, implicando compreensões viciadas nas variações de relações sociais que apenas esta representa, ou seja, num grupo limitado (e identitariamente circunscrito) de experiências com o trabalho, o gênero, o sexo, o corpo e o desejo.

Tanto assim é que são dominantes, ainda, entre feministas marxistas, posições políticas que recusam uma abordagem trabalhista sobre a questão da prostituição, frequentemente com o argumento irracional de que seria inadmissível, para marxistas, tratar corpo e sexo como mercadorias. Para o silêncio sobre Der Pranger, opera um limite que é identitário, que se coloca quase incólume devido à ausência, na discussão, de mulheres cujas relações sociais (e de trabalho) não põem nenhuma dificuldade – mas, na verdade, a necessidade – para a compreensão do ato e da satisfação sexuais nas suas formas mercantis, e cuja relação com essas mercadorias é a de produção.

Não se trata de discutir se a organização de caráter trabalhista de prostitutas seria ou não por si só revolucionária. Nada, aliás, isoladamente o é. Trata-se de compreender do que abrimos mão quando naturalizamos a ausência política da perspectiva da prostituta, nos termos da dualidade anteriormente proposta, e recusamos aprofundamento na forma mercadoria da satisfação sexual e na forma trabalho do ato que a produz. Para uma teoria e uma prática críticas que se colocam em oposição a um sistema social que tem a mercadoria como célula-tronco, que se desenvolve no sentido da mercantilização absoluta de todos os elementos da vida e em que o trabalho e suas relações ocupam lugar central, essa é uma perda significativa que compromete seriamente a capacidade de uma abordagem crítica anticapitalista sobre o gênero alcançar suas pretendidas últimas consequências.

A contribuição, portanto, da organização de prostitutas não está na mera “representatividade”. Antes, reside nas questões, nos problemas e nas discussões que a ação política sobre suas demandas, produzidas por um conjunto específico e próprio de relações sociais, impõe ao todo da luta, e das quais não pode prescindir.

É similar o que ocorre com as ações políticas transfeministas – menos pelo que trazem de novo e mais pelo que impõem como pressuposto e como relevante à discussão.

A AÇÃO POLÍTICA TRANSFEMINISTA

Como qualquer movimento popular que se organize a partir das suas próprias demandas sociais mais imediatas, os movimentos de pessoas trans têm como objeto primeiro a vulnerabilidade e a precarização das condições de vida da maior parte dessa população. Ainda que grande parte delas seja compartilhada com o movimento feminista mais amplo, seus problemas guardam também relação estreita com a questão da ilegitimidade de suas relações com corpo, sexo e gênero, fazendo da busca pelo reconhecimento – pela legitimação dessas relações – ponto nodal de suas ações.

Apresenta-se aqui um problema delicado, similar ao abordado por Butler sobre a questão da união civil homossexual [8]: a busca do trânsito da ilegitimidade para a legitimidade só pode ser feita nos termos e regras do sistema no qual ela se insere, de forma que seu pressuposto é o “aceite”, e mesmo a reiteração, das relações estruturantes desse sistema.

Mais sério se apresenta o problema ao considerarmos que o sistema de gênero não é mero “apêndice residual” do modo de produção capitalista, mas participa de sua gênese – e dizê-lo não implica negar a determinação da classe e das relações de trabalho, mas avançar na compreensão de seu conteúdo, suas expressões e decorrências.

Corpo, gênero e sexo

O desenvolvimento do caráter privado da propriedade e da acumulação de riquezas, elementos próprios da constituição capitalista, coordenou o deslocamento também para os âmbitos privado e individual de todas as atividades relacionadas à reprodução biológica e social. A generalização da garantia privada e individual tanto da sobrevivência quanto do acúmulo de riquezas, junto à generalização da mercadoria como mediadora da satisfação das necessidades, sedimentam e parametrizam, inclusive, a efetivação social das noções modernas de indivíduo.

É também sob essas determinações e parte desse movimento histórico que as relações de parentesco se reconfiguraram em uma nova organização reprodutiva, nuclearizada na associação mínima necessária à garantia da reprodução biológica e da asseguração da hereditariedade: entre um corpo produtor de sêmen e um corpo capaz de engravidar, associação que conhecemos na forma do par homem/mulher e que se consolida como a célula menor de garantia da reprodução social. Mais: porque a reprodução social não se restringe à reprodução biológica, compreendendo um amplo leque de necessidades, trabalhos e atividades, termina, portanto, também parametrizada e formalizada nos termos dessa associação. A divisão generificada do trabalho implica, inclusive, a consolidação do gênero como caráter indispensável da mercadoria força de trabalho e característica, portanto, (1) criada pelos trabalhos que produzem esta mercadoria, e (2) inscrita na dimensão do fetiche.

Ela generaliza-se, assim, como um sistema simbólico que atravessa e participa da formalização de toda e qualquer relação dessa sociedade, naturalizando a divisão generificada da espécie com base na referida divisão do trabalho como pressuposto no pensamento dos sujeitos desse tempo. Dessa naturalização, cabe aqui destacar duas implicações.

A polarização homem/mulher, constituída pelas relações sociais derivadas da divisão do trabalho produtivo/reprodutivo, é interpretada pela ciência capitalista (dimensão ideal) no conceito dicotômico de “sexo”, como forma de sistematizar, catalogar e explicar diferenças naturais entre os corpos.

Na forma de “fato natural”, as variações biológicas da espécie, dicotomizadas na noção de “sexo”, passam a ser tratadas como produtoras das relações de gênero.

Eis uma inversão de determinações, que, consonante com o idealismo próprio da ideologia da sociedade burguesa, oculta as determinações e as mediações históricas e materiais do sistema de gênero, “subsumindo-as numa conclusividade substantiva e autônoma” [9].

Social e social

Com efeito, a noção de que relacionar sexo e gênero significa relacionar um elemento natural a um social, com o segundo sendo produto ou decorrência do primeiro, é frequentemente objeto de discussões teóricas feministas, seja por adesão ou crítica. Ganha, no entanto, na ação cotidiana dos movimentos políticos (que, como dito, organizam-se a partir das suas demandas mais concretas e imediatas) feministas, caráter secundário, uma vez que aparece diante das necessidades imediatas como uma discussão teórica de pouca aplicabilidade prática na reivindicação de direitos e combate a violências. Essa mesma noção, no entanto, impõe a impossibilidade de superar o interdito do fetiche e alcançar a compreensão das determinações sociais e econômicas do sistema capitalista de gênero.

É nesse ponto que a ação transfeminista guarda imensa potência. Ainda que na dimensão mais imediata sua busca pela legitimação implique a afirmação do sistema de gênero, a ilegitimidade combatida apoia-se justamente no caráter social-social da relação sexo-gênero. Combater a ilegitimidade do gênero reivindicado por pessoas trans implica pôr sob os holofotes o que o fetiche encobre. Para os movimentos sociais de pessoas trans, o caráter socialmente determinado do sexo, bem como a natureza da sua relação com o gênero, ocupa papel central.

A ação política transfeminista, independente de intencionalidade, impõe aos movimentos feministas e socialistas dispostos à aproximação a retomada e o destaque de uma chave teórica imprescindível para a construção de qualquer estratégia revolucionária que se pretenda anticapitalista e que esteja disposta a tratar o gênero com a seriedade que merece.

Notas de Rodapé

[1] Ver os trabalhos de Jaqueline Gomes Jesus e Hailey “Kaas” Alves.

[2] Considerando que não caberia, neste trabalho, delongar-me na diferenciação desses três conceitos, utilizarei a partir daqui o termo “pessoas trans” como termo genérico referindo-me ao grupo.

[3] Forma que Walter Mignolo, autor argentino não marxista, chama de “identidade em política”. Ver Walter D. Mignolo, “Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política”, Cadernos de Letras da UFF, Dossiê: Literatura, língua e identidade, n. 34, 2008, p. 287-324.

[4] Clara Zetkin, “Lênin e o movimento feminino”, em Vladímir Ilitch Lênin, O socialismo e a emancipação da mulher (Rio de Janeiro, Vitória, 1956.

[5] Idem, cit., grifos meus.

[6] Última pesquisa realizada em 18 de agosto de 2019.

[7] Ver Sérgio Lessa, Abaixo a família monogâmica! (São Paulo, Instituto Lukács, 2012), p. 8.

[8] Judith Butler, “O parentesco é sempre tido como heterossexual?”, trad. Valter Arcanjo da Ponte, Cadernos Pagu, n. 21, 2003, p. 219-60

[9] Ver José Paulo Netto, Capitalismo e reificação (São Paulo, Instituto Caio Prado Jr., 2015), p. 74, referindo-se ao conceito de fetichismo em Marx.

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