Lélia Gonzalez – Racismo por Omissão

Artigo publicado na Folha de S. Paulo 51, em 13 de agosto de 1983. No texto, Lélia Gonzalez critica o programa de TV veiculado pelo PT, que foi apresentado em rede nacional e que não mencionava a questão racial. Entre os dez temas abordados pelo PT, não houve menção à situação da população negra e ao racismo. Lélia considerou a atitude como “racismo por omissão”, um dos aspectos da ideologia do branqueamento.

Originalmente disponível no livro “A radical imaginação política das mulheres negras brasileiras” organizado por Ana Carolina Lourenço e Anielle Franco, publicado pela Fundação Rosa Luxemburgo e Oralituras em 2021.

Arte da capa disponível no site Primeiros Negros.

Transcrição por Andrey Santiago.


O programa do Partido dos Trabalhadores, ao qual pertenço, levado ao ar em cadeia nacional de televisão, no dia 5 de agosto passado, decepcionou pelo menos 44% da população brasileira: os negros (pretos, pardos ou mestiços). Com o devido desconto das “jabuticabas” e acréscimos dos brancos que efetivamente estão aí, na luta conosco. A abertura leve e simpática, com Irene Ravache falando da “história de um sonho”, aumentou a expectativa de quem já vinha aguardando com certa ansiedade a tão rara oportunidade em que aqueles que “não tem vez nem voz” pudessem se expressar. Mas o que foi que se viu?

Uma pesada sucessão de oradores que, com maior ou menos habilidade, discorreram sobre os dez temas selecionados. Apesar dos esforços, faltou jogo de cintura, inclusive por parte daqueles que tentaram falar numa linguagem popular. A impressão que se tinha era de que, com perdão da má palavra, havia “gringo no samba”. E o samba atravessou, e a escola desfilou mal, devagar quase parando. De acordo com o enredo, “Da economia à mulher”, a escola desfilou com dez alas, o que foi uma pena. Duas alas ficaram excluídas, embora pudessem ter sido enxertadas nas outras. A dos favelados (32 milhões, mais ou menos) poderia ter sido enxertada na da habitação, por exemplo. A dos Crioulos, em várias outras: Desemprego, Saúde e Educação, Mulher, Habitação (de novo), Reforma Agrária, Democracia, etc. Embora as alas excluídas só saibam cantar coisas do tipo “belezas mil do meu Brasil”, continuo achando que podiam ter participado do desfile sem prejudicar a escola. Pelo contrário. Teriam dado o molho, o sal, o tempero ao desfile, demonstrado a força, o pique, a ginga e o caráter inovador da nossa escola. Sem elas, apesar da beleza do abre-alas, nossa escola não ficou melhor, nem pior, nem diferente das velhas escolas de sempre…

Crioulices à parte, considero importante reproduzir aqui uma afirmação de Carlos Hasenbaíg, num pequeno livro que escrevemos em coautoria: “No registro do Brasil tem de si mesmo negro o negro tende à condição de invisibilidade.” Para não fugir à regra, o PT na TV não deixou por menos: tratou dos mais graves problemas do País, exceto um, que foi “esquecido”, “tirado de cena”, “invisibilizado”, recalcado. É a isto, justamente, que se chama de racismo por omissão. E este nada mais é do que uns dos aspectos da ideologia do branqueamento que, colonizadamente, nos quer fazer crer que somos um país racialmente branco e culturalmente ocidental, europocêntrico. Ao lado da noção de “democracia racial”, ela ai está, não só definindo a identidade do negro, como determinando seu lugar na hierarquia social; não só “fazendo a cabeça” das elites ditas pensantes, quanto das lideranças políticas que se querem populares, revolucionárias.

Isso não quer dizer que dentro do Partido dos Trabalhadores não existam companheiros empenhados na luta contra o racismo e suas práticas, entendendo o quanto ele implica em desigualdade, em inferiorização de amplos setores das classes trabalhadoras. As denúncias de um Eduardo Suplicy, as eleições de uma Benedita da Silva, de uma Lúcia Arruda, de um Lizt Vieira não se fizeram a partir do nada. “É muito comum reproduzir-se o racismo a uma questão meramente de classe, o que não é verdadeiramente, embora haja pontos de contato” dizia um companheiro africano, por ocasião do 3º Congresso Internacional da Associação Latino-Americana de estudos Afro-Asiáticos (Rio De Janeiro, 1 a 5/8 de 1983), do qual participávamos. E acrescentava: “Se o racismo decorre de uma situação de exploração econômica, ele acaba por assumir uma autonomia própria” (Manoel Faustino). E, nesse sentido, passo adiante uma sugestão de literatura que nos foi dito no decorrer do congresso. Trata-se de uma dissertação de mestrado, de Suely Alves de Souza (Unicamp), cujo título é bastante sugestivo: “Entre nós os pobres, eles os pretos”.

Para concluir, direi que o ato falho com relação ao negro e que marcou a apresentação do PT, pareceu-me de extrema gravidade, não só porque alguns dos oradores que ali estiveram possuem nítida ascendência negra, mas porque se falou de um sonho; um sonho que se pretende igualitário, democrático etc., mas exclusivo e excludente. Um sonho europeizantemente europeu. E isso é muito grave, companheiros. Afinal, a questão do racismo está intimamente ligada à suposta superioridade cultural. De quem? Ora… Crioléu, mulherio e indiada deste País: se cuida, moçada!

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