Publicado em francês no jornal Liberation, em 21 de novembro de 2014.
Originalmente disponível no livro “Transfeminismo” da Editora N1.
Transcrição por Nay.
Quando eu recebi este convite para falar da coragem de ser eu mesmo, meu ego ronronou, como se estivessem propondo a ele uma página de publicidade da qual ele seria ao mesmo tempo objeto e consumidor. Eu já me via condecorado, heroico… mas não tardou para que a lembrança dos subalternos me invadisse e defizesse qualquer concessão.
Hoje vocês me concedem o privilégio de evocar a “minha” coragem de ser eu mesmo, depois de me terem feito carregar o fardo da exclusão e da vergonha por toda a infância. Vocês me oferecem esse privilégio como quem dá um trago a um cirrótico, negando ao mesmo tempo meus direitos fundamentais em nome da natureza e da nação, confiscando minhas células e meus órgãos para a sua gestão política delirante. Vocês me concedem essa coragem como quem dá umas fichas de cassino a um viciado em jogo, mas continuam se recusando a me chamar pelo meu nome masculino ou a concordar meu nome com os adjetivos não femininos, simplesmente porque eu não tenho os documentos oficiais necessários nem a barba.
Vocês nos reúnem aqui como a um grupo de escravos que souberam esticar seus grilhões, mas que continuam mais ou menos dóceis, que obtiveram seus diplomas e aceitam falar a língua dos senhores: aqui estamos nós, diante de vocês, corpos declarados mulheres no nascimento, Catherine Millet, Cécile Guibert, Hélène Cixous, as vagabundas, as bissexuais, as mulheres de voz rouca, as argelinas, as judias, as estereotipadas, as machonas, as espanholas. Quando vocês vão se cansar de assistir à nossa “coragem” como quem se posta diante de uma atração? Quando vocês vão se cansar de nos tratar como alteridade para se tornar vocês mesmos?
Vocês me concedem a coragem, imagino, porque militei ao lado das putas, dos aidéticos e dos deficientes, porque falei nos meus livros das minhas práticas sexuais com dildos e próteses, contei sobre minha relação com a testosterona. Esse é o meu mundo. Essa é a minha vida, e eu não a vivi com coragem, se não com entusiasmo e júbilo. Mas vocês não sabem nada da minha alegria. Vocês preferem lamentar por mim e me conceder a coragem porque no nosso regime político-sexual, no capitalismo farmacopornográfico reinante, negar a diferença do sexo equivale a negar a encarnação de Cristo na Idade Média. Vocês me oferecem uma bela e grande coragem porque, diante dos teoremas genéticos e dos documentos administrativos, negar a diferença sexual hoje é comparável a cuspir na cara do rei no século XV.
E vocês me dizem: “Fale-nos da coragem de ser você”, como os juízes do tribunal da Inquisição disseram a Giordano Bruno durante oito anos: “Fale-nos do heliocentrismo, da impossibilidade da Santíssima Trindade”, preparando a lenha para fazer uma grande fogueira. De fato, como Giordano Bruno, ainda que eu já veja as chamas, acredito que uma pequena mudança de opinião não bastará. Será necessário destruir tudo. Explodir o campo semântico e o domínio pragmático. Abandonar o sonho coletivo da verdade do sexo, como foi necessário abandonar a ideia de que o Sol girava em torno da Terra. Para falar de sexo, de gênero e de sexualidade, é necessário começar por um ato de ruptura epistemológica, uma negação categórica, a quebra de um pilar conceitual, dando lugar às premissas de uma emancipação cognitiva: é necessário abandonar totalmente a linguagem da diferença sexual e da identidade sexual (até mesmo a linguagem da identidade estratégica, proposta por Spivak, ou da identidade nômade, proposta por Rossi Braidotti). O sexo e a sexualidade não são propriedade essencial do sujeito, mas, sim, produto de diversas tecnologias sociais e discursivas, de práticas políticas de gestão da verdade e da vida. O produto da coragem de vocês. Não há sexos e sexualidades, mas usos dos corpos reconhecidos como naturais ou taxados de desviantes. E não vale a pena sacar sua última carta transcendental: a maternidade como diferença essencial. A maternidade não é nada mais que um uso possível do corpo, dentre outros, não é garantia de diferença sexual nem de feminilidade.
Portanto, fiquem com a coragem para vocês. Para os seus casamentos e divórcios, para suas traições e mentiras, para as suas famílias, sua maternidade, seus filhos e seus netos. Fiquem com a coragem de que vocês precisam para manter a norma. O sangue-frio de prestar seus corpos ao processo incessante de repetição regulada. A coragem, como a violência e o silêncio, como a força e a ordem, estão do seu lado. Eu, ao contrário, reivindico hoje a lendária falta de coragem de Virginia Woolf e de Klaus Mann, de Audre Lorde e de Adrienne Rich, de Angela Davis e de Fred Moten, de Kathy Acker e de Annie Sprinkle, de June Jordan e de Pedro Lemebel, de Eve Kosofsky Sedgwick e de Gregg Bordowitz, de Guillaume Dustan e de Amelia Baggs, de Judith Butler e de Dean Spade.
Mas porque eu amo vocês, meus pares corajosos, desejo que lhes falte a coragem. Desejo que vocês não tenham mais força para reproduzir a norma, que não tenham mais energia para fabricar a identidade, que percam a fé no que os seus documentos dizem sobre vocês. E uma vez perdida toda a sua coragem, frouxos de alegria, eu desejo que vocês inventem um modo de usar para seus corpos. Porque eu os amo, desejo-os fracos e desprezíveis. Pois é pela fragilidade que a revolução opera.