Abigail Thorn – Por que eu não gosto da palavra “Disforia”

Publicado em 15 de junho de 2022.

Originalmente disponível no site Trans Writes.

Tradução por Julia Bandeira.

Por que eu não gosto da palavra “Disforia” é um ensaio encomendado pela atriz e criadora do Philosophy Tube, Abigail Thorn. Há um pequeno aviso de conteúdo devido uma referência casual ao suicídio trans, embora nada gráfico ou detalhado. Abigail pediu que sua comissão fosse doada para a Alzheimer’s Society, mais sobre isso no final.


Um cartaz na parada do Orgulho 2021, em Londres, que diz “Pergunte-nos como começar a tomar hormônios (sem a clínica de gênero)”. Fonte: https://twitter.com/itsjacksonbbz/status/1408803944789389318

Há um momento em Júlio César, de Shakespeare, em que Décio chega à casa de César e o convoca ao Senado, mas César recusa o chamado. Chocado, Décio diz: “César, muito poderoso, deixe-me saber alguma causa, para que eu não seja ridicularizado quando os contar!

César responde: “A causa está em minha vontade. Eu não irei.

É um momento revelador para o personagem de César, e acho que também revela algo sobre a natureza da liberdade política.

Eu tenho liberdade de movimento dentro do meu país. Isso significa que se eu quiser ir para Bristol, por exemplo, não preciso de permissão. Se alguém me parar e perguntar por que vou, não preciso dizer. Eu nem preciso de um motivo, eu posso simplesmente ir. Pode ser que meu carro não dê partida – nesse caso eu não sou livre no sentido prático. Mas ter Liberdade de Movimento legal e social significa que não sou responsável perante mais ninguém quando tento me mudar.

Ter esse tipo de liberdade impõe limites ao que as autoridades podem exigir de nós. Não é à toa que César se irrita tanto quando recusa a convocação: ele se coloca acima de Roma!

Podemos aplicar essa lente ao consentimento sexual: se alguém se recusa a ter relações sexuais com um parceiro em potencial, não precisa de um motivo além do fato de simplesmente não querer. Ou autonomia corporal: uma pessoa grávida que busca um aborto não precisa de um motivo – ela não quer mais estar grávida e pronto. Ou privacidade: não tenho nada a esconder, mas ainda não quero que o governo leia meus e-mails. Todos podemos ser mini-Césares: a causa está na nossa vontade.

Acho que podemos aplicar esse conceito também à transição de gênero. No início deste ano, falei do lado de fora de Downing Street, em um comício condenando a exclusão de pessoas trans pelo governo, da proposta de proibição da terapia de conversão; Eu disse: “Meu corpo não pertence ao estado, não pertence aos meus pais, não pertence a Deus – pertence a mim!”. Coincidentemente, eu estava usando brincos de coroa de louros.

No entanto, nossos esforços para centralizar a autonomia corporal quando falamos de transição são frustrados pelo conceito de “disforia de gênero”. Acho que seria benéfico ir além desse conceito – acho que está desatualizado, é profundamente prejudicial e está enraizado em um erro filosófico.

O filósofo Gilbert Ryle nos conta a história de um homem que vai a Oxford e vê as faculdades, os alunos e a biblioteca, e então se pergunta: “Sim, mas onde fica a universidade? É isso que você deve me mostrar!”. Ele cometeu o que os filósofos chamam de erro de categoria – ele achava que “a universidade” era algo extra, à parte, mas é apenas uma palavra que todas as coisas que ele já viu.

Nos meus anos de negação, antes de perceber que eu era trans, muitas vezes pensei: “Tenho ciúmes das mulheres, especialmente das mulheres trans. Eu gostaria de ter os traços X, Y e Z, e estou triste por não os ter, tão triste que muitas vezes desejo estar morta. Mas eu não sinto disforia.” Em retrospectiva, isso foi um erro de categoria: esses sentimentos – ciúme, tristeza, desejo – eram ‘disforia’.

Com isso em mente, tenho algumas perguntas. Suponhamos que uma mulher cis entre na menopausa, acorde uma manhã e pense: “Ugh! Meu corpo não parece meu! Eu me sinto ansiosa, deprimida e masculina!” Isso é disforia? Eu vasculhei fóruns de pessoas em menopausa e as descrições do desconforto mental são notavelmente semelhantes às encontradas em fóruns trans.

Se um homem cis é baixo, ou magro, ou sem barba, e deseja ser “mais viril”, isso é disforia? Se uma mulher cis com bigode pensa: “Eu pareço um homem!” isso é disforia? Se ela fizer eletrólise, cirurgia de aumento de mama, lifting de bumbum brasileiro ou rinoplastia, esses são “procedimentos de afirmação de gênero”?

Acho que a única resposta sensata é: “Sim! – na medida em que o conceito de ‘disforia de gênero’ faz sentido.” Como atriz e escritora, conheço o poder de usar as palavras certas. ‘Inveja’, ‘tristeza’ e ‘anseio’ são perfeitamente úteis.

Se a resposta for “Não”, então por quê? O que há nesses sentimentos que os torna diferentes quando uma pessoa trans os sente? O que há nessas intervenções médicas que as tornam diferentes quando uma pessoa trans precisa delas? Mais importante ainda, por que esses tratamentos são muito mais difíceis de obter para pessoas trans?

Acho importante explorar esse erro de categoria porque é a raiz da transfobia sistêmica do Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS). Se uma mulher cis quer aumentar os seios para corrigir seios irregulares ou subdesenvolvidos, ela pode apresentar ao seu médico o sintoma de “sofrimento psicológico significativo” e ser encaminhada à um cirurgião plástico, mas somente um especialista, em uma Clínica de Identidade de Gênero, pode diagnosticar “disforia de gênero”. Então, uma mulher cis que deseja aumentar os seios pode ser encaminhada à um cirurgião por seu médico, mas uma mulher trans que deseja o mesmo procedimento do mesmo cirurgião, precisa ir primeiro a uma clínica segregada, para ser diagnosticada com essa coisa extra, “disforia”.

O mesmo acontece em todos os outros aspectos: uma mulher cis na menopausa pode receber TRH de seu médico, mas uma mulher trans que quer os mesmos medicamentos para a transição tem que ir para a clínica segregada. Uma mulher cis que deseja redução de mama por causa de dor nas costas pode obter um encaminhamento de seu médico responsável; um homem trans precisa ir para a clínica segregada.

(Estou ciente, é claro, de que as mulheres cis que procuram essas intervenções muitas vezes acham o NHS recalcitrante – os médicos podem oferecer diagnósticos incorretos e os seguros saúde podem se recusar arbitrariamente a financiar cirurgias. Isso é compatível com o fato de que as pessoas trans têm que lidar tanto com os médicos que não seguem as regras quanto com o sistema sendo transfóbico).

A lista de espera para as Clínicas de Identidade de Gênero dura anos e muitos de nós nos matamos antes de sermos atendidos. (Que tal esse “sofrimento psicológico significativo!”). No entanto, não acho que o tempo de espera seja a raiz do problema. Se estou certa de que “disforia” é um erro de categoria, então um caminho clínico separado para pacientes trans é inútil: os médicos que procuram disforia são como o homem em Oxford a procura da universidade.

Mesmo que o tempo de espera nas Clínicas de Identidade de Gênero fosse medido em minutos, por que temos que ir lá quando as pessoas cis não vão? Se o NHS exigisse que pessoas grávidas recebessem um diagnóstico de “Síndrome de Aversão à Gravidez” de dois psiquiatras antes que pudessem fazer um aborto, isso seria amplamente considerado como uma violação inaceitável de sua autonomia corporal. A “Síndrome de Aversão à Gravidez” é uma ideia inerentemente depreciativa e patologizante: sugere que as pessoas que querem abortar precisam de uma razão além da sua vontade. Nega-lhes o status de seres humanos que tomam suas próprias decisões e sutilmente sugere que a manutenção de uma gravidez é uma norma moral da qual o aborto é desviante. Da mesma forma, a “disforia” mantém o poder dos gatekeepers cis. A raiz do problema continua sendo a segregação no NHS.

Não só “disforia” é usada como argumento para segregar o cuidado, mas também para justificar a retirada desse direito. Ativistas antitrans no Reino Unido enquadram suas propostas como sendo tratamentos alternativos para a disforia de gênero, promovendo “terapia exploratória” (terapia de conversão) ou “observe e espere” (terapia de conversão por omissão). O conceito de “disforia” também desempenha um papel fundamental em argumentos do tipo “Alguns transexuais são verdadeiros, MAS”, que muitas vezes precede um pedido de retirada de serviços de saúde, especialmente das crianças trans, (por exemplo, “Existem alguns transexuais genuinamente disfóricos, MAS hoje em dia as crianças são influenciadas à isso pelas grandes empresas farmacêuticas!”). Nos Estados Unidos, a recente tentativa da Flórida de retirar dos beneficiários do seguro saúde (Medicaid) a assistência médica para cuidados de afirmação de gênero, foi justificada por um relatório alegando que ela é ineficaz para o tratamento da disforia. A “disforia” permite que a transição seja enquadrada como apenas mais uma necessidade médica, que pode ser “melhor tratada” se a eliminarmos. Também ignora, convenientemente, o fato de que nossa angústia é muitas vezes causada pela estigmatização de nossos desejos por pessoas cis, e não pelos desejos em si.

Eu preferiria centrar o desejo e a vontade ao falar de transição. Para mim, a transição é mais do que atender a uma necessidade médica, assim como atravessar o Rubicão, para César, foi mais do que molhar os pés. É tomar sua vida em suas mãos e moldá-la você mesmo. E eu acho isso lindo. Eu não transicionei para “aliviar minha disforia”, eu transicionei porque eu queria. Quem é o estado, ou um médico, para me dizer que não posso?

Toda essa conversa sobre força de vontade e glória romana pode soar muito individualista, mas acho que centrar o desejo na transição tem um potencial radical. Ativistas anti-trans não querem um “tratamento mais eficaz para a disforia”; eles querem que o governo controle o que os indivíduos podem fazer com seus próprios corpos, porque a verdade que as pessoas trans representam – que o gênero não é binário nem imutável – significa que as hierarquias sexuais são construções humanas maleáveis. Assim, podemos ver claramente o movimento anti-gênero pelo o que ele é: uma cruzada profundamente patriarcal, profundamente misógina e fundamentalmente fascista. Por que deixá-los esconder essa ideologia política abominável por trás de uma linguagem médica higienizada?

Como a escritora Shon Faye diz em seu livro The Transgender Issue:

“As pessoas trans são símbolos de preocupações conceituais mais amplas sobre a autonomia do indivíduo na sociedade. A rejeição de ideias dominantes, antigas e enraizadas sobre a conexão entre características biológicas e a identidade causa um dilema para o Estado-nação: ou ele reconhece e dá credibilidade à afirmação de um indivíduo sobre sua própria identidade, no direito e na cultura; ou impõe que ele, o estado, é a autoridade final no que diz respeito à identidade, e afirma seu poder sobre o indivíduo – se necessário, através da força”.

Eu sei que nem todas as pessoas trans compartilham dos mesmos sentimentos que eu sobre isso. Alguns acreditam que precisam usar a linguagem que as pessoas cis esperam, então utilizam “disforia” como uma questão de realpolitik. Outros dizem que ser solicitado a reformular suas experiências parece os invalidar. As vezes eu mesma uso “disforia” como uma abreviação de “me sinto triste com a distância entre o que eu quero e o que eu tenho”. É importante reconhecer, também, que o termo ‘disfórico’ é ao menos melhor que ‘autoginefílico’ ou ‘degenerado’.

Mas, centralizar o desejo de transição centraliza nossa autonomia como seres humanos. Coloca sistemas cisnormativos de governo e administração em desvantagem – exige que eles justifiquem as coisas que nos fazem passar.

A causa está na minha vontade.

A comissão deste artigo foi doada, a pedido da autora, para a Alzheimer’s Society. Você pode ler mais sobre seu trabalho de apoio a indivíduos com Alzheimer e suas famílias aqui. Por favor, considere fazer uma doação aqui.

Abigail Thorn: Abigail Thorn é atriz e escritora. Ela apareceu em Django (Sky), Ladhood (BBC3) e Chivalry (Channel 4), e é a autora e protagonista de The Prince, que estreou em setembro no Southwark Playhouse. Ela é, também, a criadora do Philosophy Tube, um canal educacional com audiência de mais de um milhão de pessoas. No início de 2021, Abigail se assumiu publicamente como “uma das mulheres trans mais conhecidas da Grã-Bretanha” (Xtra Magazine) – “uma mulher que pode fazer tudo” (Diva).

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