Texto escrito por Rebeka Refuse, transcomunista e trabalhadora sexual.
Publicado originalmente no site Tits and Sass.
Tradução por Nico Moura.
“[…] a grande indústria dissolveu, juntamente com a base econômica do antigo sistema familiar e do trabalho familiar a ele correspondente, também as próprias relações familiares antigas.” Karl Marx, Capital.
Abro meu navegador e digito “pornhub.com” na barra de pesquisa. Assim que a página carrega, passo o cursor sobre “vídeos” e clico em “mais vistos”. Este é um tipo de pesquisa ocupacional para uma trabalhadora sexual como eu. O anúncio no lado direito da página diz “novinhas pequenas sendo comidas!”. É um gif animado: o ator envolve suas mãos completamente em torno da circunferência do torso da atriz, demonstrando o quão novinha e pequena a adolescente sendo comida é.
Dos quatro vídeos exibidos na parte superior, apenas dois deles apresentam cinematografia em terceira pessoa mostrando o corpo inteiro de ambos os atores. Um deles é um vídeo de “fantasia de incesto” lésbico, o outro é um vídeo inter-racial, cujo título se refere ao ator branco como “inocente” e à atriz negra como “sua primeira princesa africana”. Os outros dois vídeos apresentam uma mistura de cenas em primeira pessoa, ou “POV”, e cenas em terceira pessoa que mal mostram mais do ator do que seu pau. Um desses vídeos é um vídeo de ejaculação interna, ou “creampie”; o outro é um vídeo de “fantasia de incesto”. Ambos apresentam um elenco totalmente branco e sexo heterossexual. Naturalmente, o homem branco é o Sujeito absoluto e todo o resto são o Outro.
De acordo com um estudo apresentado em uma edição do início de 2016 da publicação de sexologia The Journal of Sex Research, os espectadores de pornografia têm visões mais igualitárias sobre gênero do que quem não assiste pornografia. As métricas específicas usadas pelo estudo para avaliar se os participantes têm “visões igualitárias de gênero” são uma série de questões que avaliam até que ponto eles concordam com o status quo liberal contemporâneo com respeito ao gênero e à família. O estudo mostra que o consumo da pornografia está positivamente correlacionado com as crenças de que o aborto deve ser legal e que as mulheres devem ter permissão para trabalhar fora de casa e ocupar cargos de poder na sociedade. Outros estudos mostraram que a exposição à pornografia está relacionada a atitudes positivas sobre sexo antes do casamento entre adultos mais jovens e que as mulheres que veem pornografia são mais propensas a manter atitudes sexualmente liberais, bem como a se envolver em trabalho sexual. Vários frequentadores do Pornhub.com apoiam Bernie Sanders; a maioria apoia a legalização da maconha e o financiamento federal para a Planned Parenthood.
A pornografia é uma forma de mídia que normalmente fornece imagens de objetificação sexual feminina – a câmera focaliza no corpo da mulher e em sua performance afetiva, enquanto o ator raramente existe mais do que alguns centímetros acima do umbigo ou abaixo dos joelhos – e em que os nichos comumente atendem a propensões sexuais exploratórias (incesto, “novinhas”, gangbangs, exploração de trabalhadoras domésticas, como empregadas domésticas e babás, e assim por diante). Pode parecer contra-intuitivo que o consumo dessa mídia se correlacione com ideias liberais.
A Revolução Industrial deu início a uma explosão do trabalho sexual. A família da classe trabalhadora, não mais capaz de manter a mesma divisão generificada do trabalho das indústrias caseiras do campesinato rural, enfrentou uma crise de trabalho. As mulheres da classe trabalhadora tiveram de recorrer com mais frequência ao trabalho sexual para sobrevivência. Durante a era vitoriana, Marx e Engels escreveram: “A família, na sua plenitude, só existe para a burguesia, encontrando seu complemento na ausência forçada da família entre os proletários e na prostituição pública.” Eventualmente, o movimento operário conquistou um “salário mínimo familiar” para muitos homens da classe trabalhadora, criando uma classe profissional de “donas de casa”. As mulheres na força de trabalho também passaram a ter acesso ampliado a empregos com melhor remuneração. O trabalho sexual, no entanto, continuou a ser onipresente nas margens da sociedade capitalista, onde os salários são mais baixos e as relações familiares mais instáveis.
A pornografia era ilegal na maioria das sociedades ocidentais até recentemente. As primeiras sociedades a legalizar totalmente a pornografia foram as nações do norte da Europa conhecidas por suas relações de gênero liberais: a Dinamarca legalizou a pornografia em 1969, seguida pela Suécia e a Holanda em 1971. A jurisprudência de obscenidade nos Estados Unidos tem sido mais complicada; uma definição coerente de obscenidade (contra discurso protegido) só existe em nível federal desde 1973, com o Miller-test. Os juristas abriram a possibilidade de considerar a pornografia um direito constitucional. Isso abriu espaço para o surgimento da chamada “Era de Ouro da Pornografia”, quando grandes produções pornôs como Deep Throat (Garganta Profunda) e The Devil in Miss Jones (O Diabo na Carne de Miss Jones) tiveram amplo lançamento nos cinemas e foram levadas a sério como filme pelos críticos – um fenômeno chamado pela New York Times Magazine de “porno chic”.
Mas o vídeocassete encerrou a Era de Ouro da Pornografia: nos anos 80, novas tecnologias como o VHS tornaram a mediação de excitação na pornografia muito mais direta e as produções de cinema erótico de grande orçamento tornaram-se muito menos lucrativas em comparação. Naturalmente, isso afetou o tipo de conteúdo sendo produzido – uma combinação de custos de produção mais baixos e audiência doméstica mais difundida permitiu que mais nichos eróticos fossem atendidos. Essa tendência explodiu desde os anos 90. A democratização da produção e distribuição de mídia digital significa que muito mais pessoas podem ser produtoras, consumidoras e intérpretes de pornografia do que nunca.
A internet forneceu uma plataforma para a proliferação de incontáveis novos nichos e fetiches. POV, um estilo “gonzo” filmado da perspectiva do ator, foi uma das 20 principais pesquisas do Pornhub.com em 2015. É um estilo muito popular de cinematografia pornográfica, aparecendo em muitos gêneros diferentes. E isso não teria sido possível sem a onipresença de câmeras manuais digitais de alta qualidade. Não é surpreendente que nas mãos de uma indústria que recebe de homens 98% de sua renda, essa tecnologia seja usada para construir imagens da subjetividade sexual masculina. A subjetividade masculina é tão absoluta na indústria do sexo que, quando a pornografia com sexo heterossexual retrata o homem como um objeto de desejo erótico, ela é comercializada para homens gays.
É de se esperar que o processo histórico que criou uma indústria dedicada a propagar a ideologia da subjetividade sexual masculina branca também pareça ter criado uma indústria que propaga ideias liberais sobre gênero. Em O Capital, Marx escreveu que, “A subordinação técnica do trabalhador ao andamento uniforme do meio de trabalho e a composição peculiar do corpo de trabalho, constituído de indivíduos de ambos os sexos e pertencentes às mais diversas faixas etárias, criam uma disciplina de quartel[…]” A ideologia da democracia liberal – do capital – tende a igualar todo o trabalho. Para que os lucros sejam acumulados com a troca de mercadorias (que são o produto da força de trabalho aplicada), a força de trabalho em abstrato deve necessariamente ter a capacidade de ser livremente comprada e vendida – ser comandada pelo capital. Os tipos de restrições arbitrárias aos direitos civis opostas pelos espectadores de pornografia – como impedir algumas mulheres de trabalhar fora de casa – não seguem a lógica de longo prazo de acumulação de capital. Os espectadores de pornografia, que consomem uma mídia que é um produto tecnologicamente avançado de trabalho sexual, tendem, portanto, a adotar ideologias mais avançadas do ponto de vista da capacidade do capital de extrair valor do trabalho generificado.
É bem sabido que o capitalismo tem sido uma força liberalizante com respeito ao gênero – ele acabou trazendo consigo o sufrágio e a igualdade civil. O capital falhou, entretanto, em alterar substancialmente as relações de gênero, na medida em que as pessoas com corpos sexualmente mercantilizáveis não são aliviadas da pressão, através da desestabilização das relações familiares e econômicas, para vender seu trabalho sexual aos homens. Foi o que aconteceu quando Friedrich Engels escreveu sobre o trabalho sexual no contexto da terrível situação do proletariado urbano na época da Revolução Industrial em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. É o que acontece atualmente quando pessoas negras trans e gênero-dissidentes têm 47 vezes mais chances de fazer trabalho sexual do que as mulheres em geral. Na medida em que a mídia é um reflexo ideológico das forças sociais que a produzem, a mídia que retrata o trabalho sexual promulgará o igualitarismo liberal de gênero exatamente pelo que é – uma ideologia que permite a igualdade apenas na medida em que a igualdade civil reifica uma troca eficiente da força de trabalho como mercadoria, em abstrato.
De acordo com o artigo de Jörg Metelmann, “Dialectic of Pornographic Enlightenment“, a proliferação da mídia erótica tornou-se inextricavelmente ligada à modernidade e ao liberalismo burguês na época da Revolução Francesa. A dialética do iluminismo pornográfico é a tensão entre a construção do prazer erótico transcendentalmente mecânico (ou seja, aparentemente separado das relações sociais integradas na reprodução da força de trabalho) e a tendência de tal transcendência de aniquilar a capacidade de prazer do sujeito. Metelmann cita a leitura de Horkheimer e Adorno de “Juliette” do Marquês de Sade, em que a personagem epônima obtém gratificação erótica pela profanação do Sacramento – ironicamente, dependendo das tensões em um esquema ideológico que ela rejeita (catolicismo feudal-aristocrático) para sentir prazer: “A crítica de Juliette é dissonante, como o próprio Iluminismo o é. Na medida em que a flagrante violação do tabu… não se ajustou com proficiência à nova realidade, ela continua a viver com amor sublime como fé naquela utopia agora próxima que torna o prazer sexual gratuito para todos.” Ao destruir a ideia que lhe confere seu poder sexual, a profanação erótica do Sacramento é uma espécie de asfixia autoerótica: a liberação sexual acaba por aniquilar a capacidade do sujeito de experimentar o prazer que busca.
Associando literatura erótica como a de Sade com a mídia que é produto de trabalho sexual sob o termo “pornografia”, Metelmann observa que a pornografia deixou de ser uma forma de propaganda liberal clandestina para se tornar um gênero estabelecido e orientado para o consumidor nas sociedades “porno-democráticas” contemporâneas. “Mantendo essa função crítica e bastante política da pornografia emergente como um elemento central da dialética do iluminismo, nós podemos descrever os processos culturais do prazer e da modernidade enquanto a alternância entre sexo desintegrado (= pornografia enquanto ficção de que sexo simplesmente existe) e sexo re-integrado.” O prazer mecanizado, ou “sexo desintegrado”, só é desintegrado na medida em que é realmente separado das relações sociais integradas na reprodução. A pornografia moderna não é apenas mídia erótica, mas também trabalho sexual mediado. Para a pessoa comum que trabalha com pornografia, seu trabalho não é um “discurso”. Para as muitas intérpretes de pornografia que trabalham como acompanhantes, a pornografia é na prática outra forma deste mesmo trabalho- que também serve como um anúncio para seus serviços de acompanhante. O trabalho sexual nunca está desintegrado (“disembedded”) dos regimes ideológicos que estruturam o trabalho reprodutivo, embora o ato de seu consumo pareça estar cada vez mais.
A Era de Ouro da Pornografia nos Estados Unidos e na Europa Ocidental ocorreu em um cenário de redefinição das liberdades civis na sociedade liberal vis-à-vis os estados socialistas na Eurásia e no Sul Global. A propaganda erótica tem sido uma característica do conflito social desde os dias do Marquês de Sade. Até hoje, o consumo de pornografia é político e tem um efeito ideológico mensurável. Em “The East is Blue”, o autor Salman Rushdie defende o uso da pornografia para propagar o liberalismo em nações asiáticas de maioria muçulmana. Richard Dawkins fez sugestões semelhantes. Como uma estrutura ideológica da pós-modernidade liberal, no entanto, a cultura de pornografia na verdade não dissemina a igualdade de gênero, mas promove as armadilhas da igualdade que tratam o trabalho de homens e mulheres como tendo um valor monetário igualmente abstrato. A subjetividade sexual masculina – e, por extensão, a objetificação sexual feminina – torna-se tão parte da abordagem partidária progressista quanto da conservadora para administrar as estruturas do estado liberal. Não deveria surpreender ninguém que as pessoas que acessam sites onde os vídeos mais populares geralmente mostram mulheres nuas realizando atos sexuais pagos em homens brancos segurando câmeras digitais – construindo-se tecnologicamente como Sujeitos – são, em média, mais liberais. Na França pré-revolucionária, panfletos subversivos foram disseminados retratando explicitamente Maria Antonieta em orgias e outras situações sexuais humilhantes. Hoje, a mulher em um vídeo de gangbang é uma efígie de Maria Antonieta: Sua humilhação sexual pública indica a dissolução dos laços sociais tradicionais, junto com seus ideais místicos feudais-aristocráticos. Isso conduz ao triunfo subsequente do poder racional e de comando do capital sobre o trabalho – e seu fetiche da forma-mercadoria.