Décimo capítulo do livro “Tudo sobre o amor” de bell hooks, publicado pela Editora Elefante.
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Tradução por Stephanie Borges.
Doce amor, diz
Onde, como e quando
O que queres tu de mim?
[…]
Sou tua, para ti nasci:
O que queres tu de mim?
– Santa Teresa d’Ávila
Para regressar ao amor, para alcançar o amor que sempre quisemos mas nunca tivemos, para ter o amor que queremos mas não estamos preparados para dar, procuramos relacionamentos românticos. Nós acreditamos que esses relacionamentos, mais que quaisquer outros, vão nos resgatar e nos redimir. O amor verdadeiro de fato tem o poder de redimir, mas só se estivermos prontos para a redenção. O amor nos salva apenas se quisermos ser salvos. Muitas pessoas que buscam o amor foram ensinadas na infância a se sentirem indignas, a sentir que ninguém poderia amá-las como realmente eram, e construíram um falso self. Na vida adulta, elas conhecem pessoas que se apaixonam por esse falso self No entanto, esse amor não dura. Em algum ponto, relances do verdadeiro self emergem e a decepção vem. Com a rejeição pela pessoa amada, a mensagem recebida na infância se confirma: ninguém poderia amá-las como realmente são.
Poucos de nós entram em relacionamentos românticos tendo capacidade de receber amor. Criamos envolvimentos amorosos condenados a repetir nossos dramas familiares. Geralmente não sabemos que isso vai acontecer, precisamente porque crescemos numa cultura que nos diz que não importa o que experimentamos ou vivemos em nossa infância, não importa a dor, a tristeza, a alienação, o vazio, pouco importa a extensão de nossa desumanização, o amor romântico será nosso. Acreditamos que vamos encontrar a garota dos nossos sonhos. Acreditamos que “um dia o nosso príncipe chegará”. Eles aparecem do jeito como imaginamos que seria. Queríamos que a pessoa amada aparecesse, mas a maioria de nós não tinha realmente clareza do que fazer com ela — o que era o amor, o que queríamos fazer e como faríamos. Não estávamos prontos para abrir completamente nosso coração.
Em seu primeiro livro, O olho mais azul, a romancista Toni Morrison identifica a ideia do amor romântico como uma “das ideias mais destrutivas na história do pensamento humano”. Sua destrutividade habita na noção de que alcançamos o amor sem vontade e sem capacidade de escolher. Essa ilusão, perpetuada por tantas narrativas românticas, se mantém como uma barreira que nos impede de aprender a amar. Para preservar nossa fantasia, substituímos o amor pelo romance.
Quando a relação romântica é representada como um projeto — ou, pelo menos, assim a mídia, especialmente o cinema, gostaria que acreditássemos —, mulheres são as arquitetas e projetistas. Todo mundo gosta de imaginar que mulheres são românticas, sentimentais em relação ao amor, e que os homens as acompanham até onde elas querem chegar. Mesmo em relações não heterossexuais, o paradigma de líder e seguidor frequentemente prevalece, com uma pessoa assumindo o papel considerado feminino e a outra, o papel designado como masculino. Sem dúvida foi alguém desempenhando o papel de líder que surgiu com a ideia de que “caímos de amor” ao nos apaixonarmos, de que não temos escolha e decisão quando escolhemos um parceiro porque, quando existe química, quando há um dique, simplesmente acontece — somos subjugados —, perdemos o controle. Essa forma de pensar o amor parece ser especialmente útil para homens que são socializados por meio de ideias patriarcais de masculinidade para não entrar em contato com o que sentem. No ensaio “Love and Need”, Thomas Merton argumenta: “A expressão ‘cair de amores’ reflete uma atitude peculiar em relação ao amor e à própria vida — uma mistura de medo, espanto, fascinação e confusão. Ela implica suspeita, dúvida, hesitação na presença de algo inevitável, embora não de todo confiável”. Se você não sabe o que sente, é difícil escolher amar; é melhor cair. Assim você não precisa ser responsável por suas ações.
Ainda que psicanalistas — de Fromm, nos anos 1950, a Peck, nos dias de hoje — critiquem a ideia de que “caímos de amores”, continuamos a reforçar a fantasia de uma união sem esforço. Seguimos acreditando que somos arrastados, arrebatados, que não temos escolha nem vontade. Em A arte de amar, Fromm fala diversas vezes do amor como uma ação, “essencialmente um ato da vontade”. Ele afirma: “Amar alguém não é apenas um sentimento forte: é uma decisão, um julgamento, uma promessa. Se o amor fosse apenas um sentimento, não haveria base para a promessa de amar um ao outro para sempre. O sentimento vem e pode ir-se”. Peck trabalha a partir da definição de Fromm quando descreve o amor como a vontade de se empenhar para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa, acrescentando: “O desejo de amar não é amor. O amor se expressa amando. É um ato da vontade — isto é, tanto uma intenção quanto uma ação. A vontade também implica escolha. Nós não temos de amar. Escolhemos amar”. Apesar desses insights brilhantes e dos conselhos sábios que oferecem, a maioria das pessoas continua relutante em abraçar a ideia de que é mais verdadeiro, mais real, pensar em escolher amar que se apaixonar.
Ao descrever nossos desejos românticos em Life Preservers [Preservadores da vida], a terapeuta Harriet Lerner observa que a maioria das pessoas quer um parceiro “que seja maduro e inteligente, leal e confiável, amoroso e atento, sensível e franco, gentil e estimulante, competente e responsável”. Independentemente da intensidade desse desejo, ela conclui: “Poucos de nós avaliamos um possível parceiro com a mesma objetividade e clareza que podemos usar para avaliar um eletrodoméstico ou um carro”. Para sermos capazes de avaliar criticamente um parceiro, precisaríamos dar um passo atrás e olhar criticamente para nós mesmos, nossas necessidades, desejos e anseios. Para mim, foi difícil pegar de fato um pedaço de papel e me avaliar para saber se eu era capaz de dar o amor que eu queria receber. E ainda mais difícil foi fazer uma lista das qualidades que gostaria de encontrar num parceiro. Listei dez itens. E então, quando apliquei essa lista a homens que eu tinha escolhido como parceiros em potencial, me confrontei dolorosamente com a discrepância entre o que eu queria e o que eu havia escolhido aceitar. Ao avaliar nossas necessidades e então escolher nossos parceiros cuidadosamente, tememos descobrir que não há ninguém para amar. A maioria de nós prefere ter um parceiro em quem falte algo a não ter parceiro algum. Pode-se concluir que talvez estejamos mais interessadas em encontrar companhia que em conhecer o amor.
Várias vezes, quando falo com alguém sobre abordar o amor com vontade e intencionalidade, ouço a manifestação do medo de que isso acabe com o romance. Simplesmente não vai. Abordar o amor romântico a partir de uma base de cuidado, conhecimento e respeito na verdade intensifica o romance. Ao dedicarmos tempo para nos comunicarmos com um parceiro em potencial, não ficamos mais aprisionados pelo medo e pela ansiedade subjacentes às interações românticas que acontecem sem conversa ou compartilhamento de intenções e desejos. Conversei com uma amiga que declarou que sempre teve medo extremo de relações sexuais, mesmo com alguém que conhecia bem e a quem desejava. Seu medo se enraizava na vergonha que ela sentia de seu corpo, aprendida na infância. Anteriormente, seus encontros com homens só intensificaram tal vergonha. Geralmente, os homens não levavam a ansiedade dela a sério. Sugeri que ela poderia tentar convidar o novo homem em sua vida para um almoço, com a intenção de conversar com ele sobre prazer sexual, do que gostavam e do que não gostavam, de suas esperanças e medos. Depois, ela me contou que o almoço foi incrivelmente erótico; estabeleceu um terreno comum para que os dois se sentissem sexualmente à vontade um com o outro quando finalmente alcançaram esse estágio em seu relacionamento.
***
A atração erótica frequentemente serve como catalisador para uma conexão íntima entre duas pessoas, mas não é um sinal de amor. O sexo excitante e prazeroso pode acontecer entre duas pessoas que nem sequer se conhecem. No entanto, a vasta maioria dos homens em nossa sociedade está convencida de que seus desejos eróticos indicam quem eles deveriam e poderiam amar. Guiados pelo pênis, seduzidos pelo desejo erótico, eles frequentemente acabam em relacionamentos com parceiras com quem não compartilham interesses ou valores em comum. Na sociedade patriarcal, a pressão sobre os homens para apresentarem uma boa “performance” sexual é tão grande que eles frequentemente se sentem satisfeitos por estar com alguém com quem têm prazer no sexo, ignorando todo o resto. Eles encobrem esses erros ao trabalhar demais, ou encontrando colegas de quem gostam fora do casamento ou do compromisso romântico. É comum que levem muito tempo para identificar o desamor que podem sentir. E esse reconhecimento geralmente precisa ser ocultado para resguardar a insistência machista de que homens nunca admitem fracasso.
Mulheres raramente escolhem homens apenas com base na conexão erótica. Embora a maioria das mulheres reconheça a importância do prazer sexual, elas consideram que não é o único ingrediente necessário para construir relacionamentos fortes. E, vamos encarar a realidade, o fato de o machismo estereotipar as mulheres como cuidadoras torna aceitável que elas articulem necessidades emocionais. Então, as mulheres são socializadas para se preocupar mais com a conexão emocional. Mulheres que só passaram a nomear seus anseios eróticos na esteira da permissão concedida pelo movimento feminista e pela libertação sexual sempre puderam falar de sua fome de amor. Isso não significa que encontramos o amor que desejamos. Como os homens, nós geralmente nos conformamos com o desamor porque somos atraídas por outros aspectos que compõem um parceiro. Compartilhar a paixão sexual pode ser uma força que une e sustenta um relacionamento problemático, mas não é o campo de testes para o amor.
Essa é uma das grandes tristezas da vida. Com muita frequência, mulheres e alguns homens têm seus prazeres eróticos mais intensos com parceiros que os ferem de outras maneiras. A intensidade da intimidade sexual não serve de catalisador para o respeito, o carinho, a confiança, a compreensão e o compromisso. Casais que raramente ou nunca fazem sexo podem conhecer o amor duradouro. O prazer sexual fortalece os laços do amor, mas eles podem existir e ser satisfatórios quando o desejo sexual está ausente. No fim, a maioria de nós escolheria um grande amor em vez de paixão sexual constante, se tivéssemos de optar. Por sorte, não temos que fazer essa escolha, porque geralmente temos prazer erótico satisfatório com quem amamos.
O melhor sexo e o sexo mais satisfatório não são a mesma coisa. Tive ótimas relações sexuais com homens que eram terroristas íntimos, homens que seduzem e atraem dando justamente o que você sente que o seu coração precisa e então, gradual ou abruptamente, param quando percebem ter conquistado a sua confiança. E eu me senti intensamente realizada sexualmente em vínculos com parceiros amorosos que tinham menos habilidade e experiência. Por causa da socialização machista, mulheres tendem a pôr a satisfação numa perspectiva adequada. Reconhecemos seu valor sem permitir que se torne a régua absoluta para uma conexão íntima. Mulheres esclarecidas querem encontros eróticos prazerosos tanto quanto os homens, mas, no limite, preferimos a satisfação erótica dentro de um contexto em que exista conexão íntima, amorosa. Se os homens fossem socializados para desejar amor tanto quanto são ensinados a desejar sexo, veríamos uma revolução cultural. Na situação atual, a maioria dos homens tende a se preocupar mais com a performance e a satisfação sexual do que com a capacidade de dar e receber amor.
Ainda que o sexo seja importante, a maioria de nós não é mais hábil em articular nossas necessidades e desejos sexuais do que em verbalizar o desejo pelo amor. Ironicamente, a presença de uma doença sexualmente transmissível que põe a vida das pessoas em risco se tornou o motivo pelo qual mais casais passaram a se comunicar a respeito de seu comportamento erótico. As mesmas pessoas (em especial, homens) que até agora declaravam que “muita conversa” tornava as coisas menos românticas descobrem que falar não ameaça o prazer de modo algum; apenas altera a sua natureza. Onde antes o desconhecido era a base para a excitação e a intensidade erótica, agora esse papel é desempenhado pelo conhecimento. Muitas pessoas que temiam a perda da intensidade romântica e/ou erótica fizeram essa mudança radical em sua forma de pensar e se surpreenderam ao descobrir que suas suposições anteriores de que a conversa matava o romance estavam erradas.
A aceitação cultural dessa mudança mostra que todos somos capazes de alterar nossos paradigmas, as formas estruturais de pensar e fazer as coisas que se tornam habituais. Somos todos capazes de mudar nossas atitudes em relação a “cair de amores”. Podemos reconhecer o “dique” que sentimos quando conhecemos alguém novo apenas como isso — uma sensação misteriosa de conexão que pode ter ou não a ver com amor. Podemos vivê-la ou não como sendo a conexão primeva e ao mesmo tempo reconhecer que ela nos levará ao amor. Como as coisas poderiam ser diferentes se, em vez de dizer “acho que me apaixonei”, disséssemos “tenho uma conexão com alguém de um jeito que me faz achar que estou a caminho de conhecer o amor”. Ou se, em vez de dizermos “estou apaixonada”, disséssemos “estou amando” ou “vou amar”. Nossos padrões em torno do amor romântico dificilmente mudarão se não mudarmos a nossa linguagem.
Nós todos estamos desconfortáveis com as expressões convencionais que usamos para falar do amor romântico. Todos sentimos que essas expressões e o pensamento por trás delas estão entre os motivos pelos quais entramos em relacionamentos que não funcionaram. Quando olhamos para trás, vemos que, em larga medida, a maneira como falávamos desses laços antecipava o que aconteceria no relacionamento. Eu certamente mudei a maneira como falo e penso a respeito do amor em resposta à deficiência emocional que eu sentia em mim e nos meus relacionamentos. Começando com definições claras de amor, sentimento, intenção e vontade, não entro mais em relacionamentos com a falta de consciência que me levou a fazer com que todos os vínculos fossem pontos de repetição de antigos padrões.
Embora eu tenha experimentado muitas decepções em minha jornada para amar e ser amada, ainda acredito no poder transformador do amor. A decepção não fez com que eu fechasse meu coração. Entretanto, quanto mais falo com as pessoas ao meu redor, descubro que a decepção está difundida e que isso leva muitas pessoas a serem profundamente cínicas em relação ao amor. Muitas simplesmente pensam que o valorizamos demais. Nossa cultura pode até dar um valor exagerado ao amor como fantasia comovente ou mito, mas não faz muito em relação à arte de amar. Nossa decepção é direcionada ao amor romântico. Nós fracassamos com o amor romântico quando não aprendemos a arte de amar. É comum confundirmos uma paixão perfeita com um amor perfeito. Uma paixão perfeita acontece quando encontramos alguém que parece ter tudo o que queríamos ver em um parceiro. Digo “parece” porque a intensidade da conexão geralmente nos cega. Vemos aquilo que queremos ver. Em Soul Mates [Almas gêmeas], Thomas Moore argumenta que o encantamento da ilusão romântica tem seu lugar e que “a alma floresce em fantasias efêmeras”. Enquanto a paixão perfeita nos oferece seus prazeres e perigos particulares, para quem está em busca do amor perfeito isso só pode ser um estágio preliminar do processo.
Nós só podemos ir da paixão perfeita ao amor perfeito quando as ilusões passam e somos capazes de usar as energias e a intensidade criadas por um laço erótico intenso e irresistível para aumentar a autodescoberta. Paixões perfeitas geralmente acabam quando despertamos de nosso encantamento e descobrimos que apenas nos deixamos levar para longe de nós mesmos. As paixões se tornam amor perfeito quando nos dão coragem de encarar a realidade, de abraçar nosso verdadeiro self. Reconhecer essa relação significativa entre a paixão perfeita e o amor perfeito desde o início de um relacionamento pode ser a inspiração necessária que nos empodera para escolher o amor. Quando amamos com intenção e vontade, demonstrando carinho, respeito, conhecimento e responsabilidade, nosso amor nos satisfaz. Indivíduos que querem acreditar que não há satisfação no amor, que o verdadeiro amor não existe, se apegam a tais presunções porque esse desespero é realmente mais fácil de encarar do que o fato de que o amor é real, mas está ausente de sua vida.
Nos últimos dois anos, falei muito sobre o amor. Meu tema tem sido “amor verdadeiro”. Tudo começou quando passei a falar do desejo do meu coração, a dizer para amigos, plateias, pessoas sentadas ao meu lado em ônibus e aviões que eu “estava procurando o amor verdadeiro”. Com cinismo, quase todos os meus interlocutores me informavam que eu estava procurando por um mito. Os poucos que ainda acreditavam no amor verdadeiro compartilhavam a profunda convicção de que “você não pode procurar por ele”, de que, se você estiver destinada a isso, “simplesmente vai acontecer”. Eu não apenas acredito de todo o meu coração que o amor verdadeiro existe como abraço a ideia de que seu acontecimento é um mistério — que se dá sem qualquer esforço da vontade humana. E, se esse é o caso, ele vai acontecer se procurarmos por ele ou não. No entanto, não perdemos o amor ao procurar por ele. De fato, aqueles de nós que fomos magoados, decepcionados, desiludidos devemos abrir nosso coração se quisermos que o amor entre. O ato de se abrir é uma maneira de buscar o amor.
Eu experimentei o amor verdadeiro. Essa experiência intensifica meu anseio e meu desejo pela busca. O amor verdadeiro em minha vida me apareceu pela primeira vez num sonho. Eu tinha sido convidada para uma conferência sobre cinema e estava hesitante em participar. Detesto ser bombardeada por um monte de novas ideias de uma vez; eu me sinto como se tivesse comido demais. No entanto, sonhei que me diziam que, se eu fosse à conferência, conheceria o homem dos meus sonhos. As imagens oníricas eram tão vívidas que acordei com a sensação de necessidade. Liguei para uma amiga e lhe contei a história. Ela concordou em ir à conferência comigo, como minha testemunha. Poucas semanas depois, chegamos ao evento, no meio de uma sessão em que os debatedores estavam no palco. Apontei para o homem cuja imagem tinha aparecido no meu sonho. Depois da sessão, eu o conheci e conversamos. Conhecê-lo foi como ver um parente ou um amigo que não encontrava havia anos. Fomos jantar. Havia um sentimento de reconhecimento mútuo entre nós, desde o início. Era como se nos conhecêssemos. Conforme nossa conversa avançou, ele me contou que estava comprometido em um relacionamento. Fiquei intrigada e confusa. Eu não podia acreditar que as forças divinas do universo me levariam ao homem dos meus sonhos quando não havia possibilidade concreta de realizar esses sonhos completamente. É claro, aqueles sonhos eram sobre estar em uma relação romântica. Esse era o começo de uma lição difícil a respeito do amor verdadeiro.
***
Aprendi que podemos encontrar um amor verdadeiro e que nossa vida pode ser transformada por tal encontro, mesmo que ele não leve ao prazer sexual, a um vínculo de compromisso ou mesmo a um contato constante. O mito do amor verdadeiro — aquela visão de contos de fadas em que duas almas se encontram, se juntam e vivem felizes depois disso — é coisa de fantasias infantis. Entretanto, muitos de nós, mulheres e homens, carregam essas fantasias para a vida adulta e são incapazes de lidar com a realidade do que significa ter uma conexão intensa, que altera nossa vida, mas que não levará a um relacionamento duradouro ou sequer a um relacionamento. O amor verdadeiro nem sempre nos leva ao “viveram felizes para sempre” e, mesmo quando leva, sustentar o amor ainda dá trabalho.
Todas as relações têm altos e baixos. Frequentemente, a fantasia romântica alimenta a crença de que dificuldades e momentos difíceis são uma indicação de falta de amor, em vez de parte do processo. A base do amor é o pressuposto de que queremos crescer e nos expandir, nos tornar quem somos completamente. Não há mudança que não traga consigo um sentimento de desafio e perda. Quando experimentamos o amor verdadeiro, pode parecer que nossa vida está em risco; podemos nos sentir ameaçados.
O amor verdadeiro é diferente do amor que está baseado no cuidado básico, na boa vontade e na velha e conhecida atração diária. Nós todos somos atraídos continuamente pelas pessoas (por seu estilo, pelo que pensam, por sua aparência etc.) que conhecemos e que, se tivéssemos a chance, poderíamos amar de uma hora para outra. No livro Love and Awakening, John Welwood faz uma distinção útil entre esse tipo de atração, com a qual todos estamos familiarizados, que ele chama de “conexão do coração”, e um outro tipo, que ele chama de “conexão da alma”. Ele a define assim:
Uma conexão da alma é uma ressonância entre duas pessoas que reagem à beleza essencial da natureza individual uma da outra, por trás das fachadas, e se conectam num nível mais profundo. Esse tipo de reconhecimento mútuo oferece o catalisador para uma alquimia potente. É uma aliança sagrada cujo propósito é ajudar ambos os parceiros a descobrir e realizar seus potenciais mais profundos. Enquanto uma conexão do coração nos permite apreciar as pessoas que amamos do jeito como são, uma conexão da alma abre uma dimensão mais ampla — vê-las e amá-las pelo que elas poderiam ser, e pelo que nós podemos nos tornar influenciados por elas.
Criar uma conexão de coração com alguém geralmente não é um processo difícil.
Ao longo de nossa vida, encontramos muitas pessoas pelas quais sentimos aquele dique especial que poderia nos levar para o caminho do amor. No entanto, esse dique não é a mesma coisa que uma conexão da alma. Frequentemente, um vínculo mais profundo com outra pessoa, uma conexão da alma, acontece quer desejemos ou não. Na verdade, às vezes somos atraídos por alguém sem nem saber por quê, mesmo quando não desejamos contato. Muitos casais com os quais conversei e que encontraram o amor verdadeiro se divertiam contando que, quando se conheceram, um deles não tinha achado o outro nem um pouco atraente, embora se sentisse misteriosamente interessado por aquele indivíduo. Em todos os casos em que as pessoas sentiam que tinham encontrado o amor verdadeiro, todas afirmaram que o laço não foi simples ou fácil. Para muita gente, isso parece confuso, precisamente porque nossa fantasia do amor verdadeiro é de que ele será assim: simples e fácil.
Geralmente imaginamos que o amor verdadeiro será intensamente prazeroso e romântico, cheio de amor e luz. Na verdade, o amor verdadeiro está totalmente relacionado ao trabalho. O poeta Rainer Maria Rilke observou sabiamente:
Como em muitos outros casos, as pessoas também confundiram o papel do amor na vida, transformaram-no em diversão e prazer, porque pensaram que diversão e prazer seriam algo mais feliz que o trabalho; mas não há nada mais feliz que o trabalho, e o amor, por ser a felicidade extrema, não pode ser outra coisa a não ser trabalho.
A essência do amor verdadeiro é o reconhecimento mútuo — dois indivíduos que veem um ao outro como realmente são. Todos nós sabemos que a abordagem comum é conhecer alguém de quem gostamos e mostrar a melhor versão de nós, ou até mesmo um falso self, que acreditamos ser mais simpático para a pessoa que queremos atrair. Quando nosso verdadeiro self aparece em sua inteireza, quando o bom comportamento se torna demais para sustentarmos e as máscaras são retiradas, a decepção vem. Com muita frequência, indivíduos sentem, depois desse momento — quando os sentimentos estão feridos e o coração, partido —, que era um caso de identidade trocada, que a pessoa amada era um estranho. Eles viram o que queriam ver, em vez do que estava realmente ali.
O amor verdadeiro é uma história diferente. Quando acontece, os indivíduos geralmente se sentem em contato com a identidade mais profunda um do outro. Embarcar nesse tipo de relacionamento é assustador precisamente porque sentimos que não há lugar para nos escondermos. Nós somos conhecidos. Todo o êxtase que sentimos emerge conforme esse amor nos nutre e nos desafia a crescer e a nos transformar. Descrevendo o amor verdadeiro, Eric Butterworth afirma:
O amor verdadeiro é um tipo peculiar de revelação por meio da qual vemos a pessoa em sua inteireza — ao mesmo tempo que aceitamos totalmente o nível em que ela se expressa agora — sem qualquer ilusão de que o potencial é uma história presente. O amor verdadeiro aceita a pessoa que agora não tem qualificações, mas mantendo um compromisso sincero e constante de ajudá-la a alcançar seus objetivos de autodesdobramento — os quais nós poderíamos ver melhor que ela.
Na maior parte do tempo, pensamos que amor significa apenas aceitar a outra pessoa como ela é. Quem de nós não aprendeu do jeito mais difícil que não podemos mudar uma pessoa, moldá-la no ser amado ideal que gostaríamos que fosse. Contudo, quando nos comprometemos com o amor verdadeiro, estamos comprometidos a sermos mudados, a sermos afetados pela pessoa amada de uma maneira que nos permite ser mais autorrealizados. Esse compromisso com a mudança é uma escolha. Acontece como um acordo mútuo. Repetidamente, as declarações mais comuns que ouço serem reafirmadas a respeito do amor verdadeiro são de que ele é “incondicional”. O amor verdadeiro é incondicional, mas, para desabrochar verdadeiramente, demanda um compromisso constante com a luta e a transformação construtivas.
A pulsação do amor verdadeiro é a disposição de refletir sobre as próprias ações, processar e comunicar essa reflexão à pessoa amada. Como Welwood observa: “Dois seres que têm uma conexão de almas querem se engajar num diálogo proveitoso, de amplo espectro, e comungar um com o outro da maneira mais profunda possível”. Honestidade e abertura são sempre a base do diálogo que desperta reflexões. A maioria de nós não foi criada em lares onde víamos dois adultos que se amavam profundamente conversarem. Nós não vemos isso na televisão e nos filmes. Assim, como é que qualquer uma de nós pode se comunicar com homens que ouviram durante toda a sua vida que não podem expressar como se sentem? Homens que querem amar, mas não sabem que, antes, devem aprender a verbalizar, devem aprender a deixar seu coração falar — e então a falar a verdade. Escolher ser totalmente honesto, revelar quem somos, é arriscado. A experiência do amor verdadeiro nos dá coragem para correr riscos.
Enquanto estivermos com medo de arriscar, não podemos conhecer o amor. Por isso, o truísmo: “Amar é se desapegar do medo”. Nosso coração nos conecta a muitas pessoas ao longo de nossa vida, mas a maioria de nós vai para a sepultura sem ter a experiência do amor verdadeiro. Isso não é de forma alguma trágico, já que a maioria de nós foge quando o verdadeiro amor se aproxima. Uma vez que o verdadeiro amor lança luz sobre aqueles aspectos de nós que queremos negar ou esconder, permitindo que vejamos quem somos claramente e sem vergonha, não é surpreendente que tantos indivíduos que dizem querer conhecer o amor se afastem quando esse amor lhes acena.
***
Não importa com que frequência desviemos nossa mente e coração — ou quanto teimemos na recusa em acreditar em sua magia —, o amor verdadeiro existe. Todos o desejam, mesmo aqueles que dizem que perderam a esperança. Mas nem todo mundo está pronto. O amor verdadeiro aparece apenas quando nosso coração está pronto. Há alguns anos, fiquei doente e levei um daqueles sustos do câncer em que o médico diz que, se seus exames derem positivo, você não terá muito tempo de vida. Ao ouvir suas palavras, fiquei deitada, pensando: não era possível que eu morresse, porque não estava pronta, ainda não havia conhecido o amor verdadeiro. Foi então que me comprometi comigo mesma a abrir meu coração; eu estava pronta para receber esse amor. E ele veio.
Esse relacionamento não durou para sempre, e foi difícil encarar isso. Todas as narrativas românticas da nossa cultura dizem que, quando encontramos o amor verdadeiro com um parceiro, a relação vai persistir. Mas essa parceria só dura se as duas partes se mantiverem comprometidas em amar. Nem todo mundo pode suportar o peso do amor verdadeiro. Corações feridos se afastam do amor porque não querem fazer o trabalho de cura necessário para sustentar e nutrir o amor. Muitos homens, em especial, frequentemente se afastam do verdadeiro amor e escolhem relacionamentos em que podem se conter emocionalmente quando querem, mas ainda assim receberem o amor de outro alguém. No fim, escolhem o poder, em vez do amor. Para conhecer e manter o amor verdadeiro, temos de estar dispostos a abrir mão do desejo de poder.
Quando alguém conhece o amor verdadeiro, a força transformadora desse amor perdura, mesmo quando não temos mais a companhia da pessoa com quem experimentamos cuidado mútuo e crescimento profundo. Tomas Merton escreve: “Nós descobrimos quem somos de verdade no amor”. Muitos de nós não estamos prontos para abraçar nosso verdadeiro self, principalmente quando viver com integridade nos afasta de nossos mundos familiares. Com frequência, quando passamos por um processo de autodescoberta, por um tempo, podemos nos perceber mais sozinhos. Ao escrever sobre escolher estar só em vez de ter uma companhia que não alimenta a alma, Maya Angelou nos lembra de que “nunca é solitário na Babilônia”. O medo de encarar o amor verdadeiro pode realmente levar alguns indivíduos a permanecer em situações de escassez e frustração. Lá, eles não estão sozinhos, não correm riscos. Amar de forma total e profunda nos coloca em risco. Quando amamos, somos completamente transformados. Merton afirma:
O amor afeta mais que nosso pensamento e nosso comportamento em relação a quem amamos. Ele transforma nossa vida inteira. O amor verdadeiro é uma revolução pessoal. O amor pega suas ideias, seus desejos e suas ações e os funde numa experiência e numa realidade vivida que é um novo você.
Nós frequentemente estamos em fuga do “novo você”. Em Illusions: The Adventures of a Reluctant Messiah [Ilusões: as aventuras de um messias relutante], história de amor autobiográfica de Richard Bach, o autor descreve tanto sua fuga do amor quanto seu regresso. Para regressar ao amor, ele teve de estar disposto a se sacrificar e se render, a abandonar a fantasia de ser alguém sem necessidades emocionais constantes e reconhecer sua necessidade de amar e ser amado. Nós sacrificamos nosso antigo self para sermos transformados pelo amor, e nos entregamos ao poder do novo self.
No contexto dos vínculos românticos, o amor nos oferece uma chance única de sermos transformados dentro de uma atmosfera celebratória e acolhedora. Sem “cair de amores”, podemos reconhecer aquele momento de conexão misteriosa entre a nossa alma e a de outra pessoa como a tentativa do amor de nos chamar de volta para o nosso verdadeiro self. Intensamente conectados com outra alma, nos tornamos ousados e corajosos. Ao usar esse desejo destemido de conexão como um catalisador para escolher o amor e nos comprometermos com ele, somos capazes de amar de verdade e profundamente, de dar e receber um amor que perdura, um amor que é “mais forte que a morte”.