Originalmente publicado em Nuestra America XXI #68.
Tradução por Antonio Ugá.

“Os rendimentos globais são os mais baixos em 500 anos de história registrada. $10 trilhões de dólares em títulos de rendimento negativo. Esta supernova explodirá um dia” — tweet de Bill Gross, o ‘rei dos títulos’, em 2016.[1]
Desta vez é mundial
Existem três grandes diferenças entre a crise da dívida que se desenrola na década de 2020 e a crise da dívida do Terceiro Mundo na década de 1980.
- A crise da dívida dos anos 1980 causou devastação econômica em países “em desenvolvimento” na África, Ásia e América Latina, obrigando seus governos a renunciar ao seu mínimo de soberania e se submeter à ditadura do capital financeiro imperialista (também conhecido como “neoliberalismo”). A crise da dívida da década de 2020, no entanto, é verdadeiramente global em alcance – os países “em desenvolvimento” estão mais uma vez na mira, mas essa crise também ameaça infligir devastação econômica nas economias e cidadãos dos países imperialistas da América do Norte, Europa e Japão – e rasgar a fachada esfarrapada da soberania democrática que mascara a ditadura do capital nesses países.
- A crise da dívida da década de 1980 teve como foco a “dívida soberana” — dinheiro devido por governos de países “em desenvolvimento” a governos imperialistas e investidores privados. Na crise da dívida da década de 2020, a dívida pública – enorme como é – agora é superada pela dívida de corporações privadas, enquanto em muitos países as famílias também são esmagadas por montanhas de dívidas agravadas por taxas de juros exorbitantes. O montante total de dívidas das empresas privadas nos chamados mercados emergentes (ME) aumentou 30 vezes entre 1991 e 2014, dez vezes mais rápido que o crescimento do PIB no mesmo período[2] — e, em 2020, mais de 55% desta era propriedade de investidores locais.[3]
- As montanhas de dívida da década de 1980 assumiram principalmente a forma de dívida externa em moeda forte. Embora estes continuem a ser extremamente importantes, os mercados de dívida interna nos países “em desenvolvimento” cresceram enormemente, e as dívidas em suas moedas nacionais – a maior parte para credores nesses países, embora os investidores imperialistas também tenham uma grande parte – enquanto diminuíram dívida em moeda forte. Isso significa que, na crise da dívida dos anos 2020, os trabalhadores dos países “em desenvolvimento” estão sendo desapropriados por seus próprios sanguessugas capitalistas, não apenas aqueles residentes nos EUA e outros países imperialistas.
Este artigo, a primeira parte de um estudo maior, analisa a crise da dívida dos anos 2020 em uma perspectiva global. Os artigos seguintes examinarão a economia política da crise da dívida nos países imperialistas; nos países “em desenvolvimento”; e no caso muito especial da China, onde a dívida corporativa e das famílias aumentou, ao mesmo tempo em que o país é também um grande credor de países de renda baixa e média; e, por fim, no enorme crescimento da dívida corporativa e como isso se relaciona com as profundas transformações na produção capitalista globalizada.
A explosão da dívida global
A dívida global — das famílias, empresas privadas e governos — atingiu impressionantes $305 trilhões de dólares em 2021, acima dos $83 trilhões de dólares em 2000. A dívida global agora equivale a 355% do PIB, acima dos 120% do PIB em 1980 e dos 230% em 2000.[4] Em 2021, devedores de todos os tipos entregaram $10.2 trilhões de dólares — 12% do PIB Global— em pagamentos de juros a seus credores.[5] Isto é quase o dobro da renda anual total dos 50% mais pobres da população mundial e equivale a $1.250 dólares para cada ser humano na Terra![6] A dívida global cresceu duas vezes mais rápido que o PIB global ao longo desses anos – e está acelerando, enquanto o PIB global está desacelerando e ameaçando reverter.
Enquanto a dívida global disparou para as estrelas, as taxas de juros globais estão em declínio quase contínuo desde 1980. O gráfico acima mostra a taxa de juros dos títulos de 10 anos emitidos pelo governo dos EUA. A dívida do governo dos EUA é considerada livre de risco, pois a inadimplência do governo mais rico e poderoso do mundo é inimaginável (embora até isso acontecerá um dia). A taxa de juros da dívida do governo dos EUA é, portanto, uma referência para todas as outras taxas de juros. A diferença, ou “spread”[7], entre a taxa de juros dos EUA e o que você, ou um governo na África ou América Latina, ou uma empresa privada em algum lugar do mundo, tem que pagar em juros é uma medida do “prêmio de risco” exigido pelos credores. Apenas a ameaça de crise econômica faz com que os “prêmios de risco” subam acentuadamente, ampliando o efeito dos aumentos das taxas de juros sobre a dívida do governo dos EUA.
A taxa de juros real é obtida subtraindo-se a taxa de inflação da taxa de juros nominal – portanto, se esta for de 5%, mas a inflação estiver em 5%, os juros do empréstimo são cancelados pela erosão do valor da dívida. As taxas de juros caíram tão baixas desde a crise financeira global que, em 2021, $17 trilhões de dólares em títulos estavam sendo negociados a taxas de juros negativas, mesmo antes de se levar em conta a inflação – $7 trilhões de dólares a mais do que aqueles que surpreenderam Bill Gross em 2016 (veja citação no início deste artigo)! Como resultado, os juros da dívida, como parcela do PIB, estão bem abaixo de seu pico no início da era neoliberal. A The Economist calcula, por exemplo, que 27% do PIB dos EUA foi engolido por pagamentos de juros em 1989, mas “apenas” 12% em 2021, apesar do crescimento maciço da dívida dos EUA.
Mas o mundo das taxas de juros cada vez mais baixas chegou ao fim. De meados de dezembro de 2021 a meados de abril de 2022, os títulos negociados com rendimento inferior a zero caíram de $17 trilhões para $2,7 trilhões de dólares, e todas as outras taxas de juros começaram a subir. Uma supernova se aproxima.
Por que os mercados de títulos são tão assustadores
Para entender por que Bill Gross comparou os mercados globais de títulos a uma estrela prestes a explodir, para entender por que crescem as chances de que sua previsão se concretize e para ter uma ideia do que um evento tão cataclísmico realmente significaria na prática, precisamos de duas coisas: aprender um pouco sobre títulos; e também precisamos compreender por que as taxas de juros caíram por tanto tempo e tanto, e por que a dívida cresceu tão enorme e implacavelmente.
A segunda delas pode ser iluminada pela metáfora da supernova. Uma estrela é uma explosão contínua, e é exatamente isso que temos em relação à dívida global desde o início da era neoliberal. A vida de uma estrela termina em uma supernova, cujo primeiro estágio é uma contração que rapidamente desenvolve um impulso imparável e se torna uma implosão, e ocorre quando o combustível que dispara a explosão é insuficiente para contrariar a força gravitacional exercida, neste caso, pelo peso crescente de dívida. Os bancos centrais cortam as taxas de juros e criam cada vez mais dívidas para estimular a demanda e manter o crescimento precisamente porque temem que uma recessão e as ondas de falências e inadimplências que se seguem possam desenvolver rapidamente um impulso irrefreável. Os cientistas nos dizem que nosso sol não é massivo o suficiente para morrer em uma supernova, mas tanta dívida foi acumulada na economia global que não podemos supor que a próxima depressão global apenas repetirá, em maior escala, a depressão da década de 1930. Ainda não descobrimos uma vez que políticas monetárias extremas, incluindo taxas de juros reais negativas e criação de dívida colossal, adiaram o dia do juízo final.
Tendo explicado por que as taxas de juros caíram e a dívida aumentou, podemos agora voltar nossa atenção para o mistério e a magia dos títulos.
Com a dívida global em 355% do PIB global, cada aumento de 1% nas taxas de juros aumenta a parcela do PIB usada para pagar juros em 3,5% – uma enorme mudança de poder de compra de famílias, empresas e governos endividados para seus credores. Esse efeito não é imediato, uma vez que as taxas de juros dos títulos são fixas durante a vida do título, que varia muito, mas normalmente é de 2 anos no caso de empresas privadas e de 5 anos para dívida do governo. Quando o título atinge seu prazo, ele deve ser pago ou substituído por um novo título com a nova taxa de juros mais alta. Levando em conta esse efeito retardado, The Economist calcula que um aumento de 2% nas taxas de juros dos EUA em 2021 duplicaria, até 2026, a parcela do PIB global absorvida pelo pagamento de juros.[8]
No entanto, isso está longe de ser o fim da história. Se as taxas de juros forem de 5%, o preço de um título que rende uma renda anual de $10 dólares é $200 dólares. Se as taxas de juros não mudassem e não houvesse inflação, alguém que investisse $200 dólares em um título de dez anos com rendimento de $10 dólares por ano poderia vender esse título depois de, digamos, 5 anos, por $200 dólares. Seu novo proprietário receberia $10 dólares para cada ano restante e, no final da vida do título, $100 dólares seriam devolvidos ao proprietário. Mas se as taxas de juros subirem para 10%, a quantia então necessária para investir para receber $10 dólares por ano cai de $200 para $100 dólares. Assim, os aumentos das taxas de juros fazem com que o valor de todos os títulos existentes caia. E a recíproca é verdadeira. A queda das taxas de juros faz com que o valor dos títulos existentes aumente. A queda constante das taxas de juros é um fator importante pelo qual a riqueza capitalista cresceu tão vertiginosamente durante a era neoliberal, e porque o aumento das taxas de juros pode fazer com que grande parte dela seja anulada.
Como disse recentemente Nouriel Roubini, um dos poucos economistas a prever a crise financeira global: “O grau de arrocho da política monetária necessário [para acabar com a inflação] inevitavelmente causará um pouso forçado, na forma de uma recessão e aumento do desemprego…. Como há tanta dívida pública e privada no sistema, os aumentos das taxas de juros podem desencadear uma queda ainda mais acentuada nos mercados de títulos, ações e crédito. Simplificando, o esforço para combater a inflação pode facilmente derrubar a economia, os mercados ou ambos.”[9]
[1] Bill Gross warns over $10tn negative-yield bond pile. Disponível em: <https://www.ft.com/content/995da266-2e62-11e6-bf8d-26294ad519fc>
[2] Este crescimento da dívida corporativa dos mercados emergentes (ME) e do PIB dos SE ME mede em dólares constantes, razão pela qual esta explosão da dívida não se amplia artificialmente pela inflação. Juan J. Cortina, Tatiana Didier, and Sergio L. Schmukler, 2018, “Corporate Borrowing in Emerging Markets: Fairly Long Term, but Only for a Few”, Research & Policy Briefs No. 18, October 2018, p1. Disponível em: <http://documents1.worldbank.org/curated/en/363821539842744052/pdf/130976-RPB-18-Corporate-Borrowing-in-Emerging-Markets.pdf>.
[3] Steve Cook, Jonathan Davis, 2020, Emerging Market Corporate Debt: Distinguishing Opportunity From Vulnerability. PineBridge Investments 17 April 2020. Disponível em <https://www.pinebridge.com/en/investor-types/default/insights/emerging-market-corporate-debt-distinguishing-opportunity-from-vulnerability>.
[4] International Institute of Finance, May 2022, Global Debt Monitor. Disponível em: <https://www.iif.com/Research/Capital-Flows-and-Debt/Global-Debt-Monitor>; The Economist, 2022, The global interest bill is about to jump Feb 5th 2022. Disponível em <https://www-economist-com.sheffield.idm.oclc.org/finance-and-economics/the-global-interest-bill-is-about-to-jump/21807488>.
[5] Este total corresponde unicamente ao pagamento dos juros e não inclui amortização do capital principal. O crescimento da dívida total significa que os novos empréstimos estão aumentando mais rapidamente do que as amortizações de empréstimo. Os pagamentos de juros vencidos, mas não pagos são adicionados à dívida pendente e contados como novos empréstimos.
[6] O World Inequality Database 2018 (Banco de Dados da Desigualdade Mundial) informa que, medidos pela taxa de câmbio de mercado, os 50 % mais pobres da população mundial recebem aproximadamente 6,5% da renda mundial total, ou 8 % se ajustado pela paridade do poder de compra (PPC). Como a medida da dívida global da The Economist não é ajustada pela paridade do poder de compra, usei a medida não ajustada da participação dos 50% mais pobres na renda global.
[7] Spread refere-se à diferença entre o preço de compra e venda de uma ação, título ou transação monetária. Analogamente, quando o banco empresta dinheiro a alguém, cobra uma taxa pelo empréstimo ― uma taxa que será certamente superior à taxa de captação. A diferença entre as duas taxas é o chamado spread bancário. (NT)
[8] The Economist, 2022, The global interest bill is about to jump Feb 5th 2022. Disponível em: <https://www-economist-com.sheffield.idm.oclc.org/finance-and-economics/the-global-interest-bill-is-about-to-jump/21807488>
[9] Nouriel Roubini, 2022, Don’t Bet on a Soft Landing. Disponível em: <https://www.project-syndicate.org/commentary/reducing-inflation-likely-to-cause-recession-by-nouriel-roubini-2022-05>.