Texto retirado do livro “Ser ou Não Ser Feminista” de Ana Montenegro, disponível neste link.
Transcrição de Paulo Menezes.
Poucas questões dentre as que compreendem a questão feminina, surgidas e ressurgidas como o neofeminismo, têm sido tão mistificadas como a da sexualidade, a qual vem sendo apresentada fora e acima da opressão histórica à mulher e sem uma correta relação com a situação material, social, política e cultural decorrente dessa opressão.
Essa mistificação diz respeito à consideração a priori de uma sexualidade feminina isolada da sexualidade em geral. No entanto, para fazer com que a sexualidade se manifeste, é necessário uma transformação do conjunto das causas que dão origem às formações sociais. E a prova disso é que existe uma história das relações sexuais, das formas amorosas, uma história da paixão, e, portanto, da sexualidade feminina. Aliás, a etnologia registra variantes da sexualidade, no tempo e no espaço: não se ama da mesma forma, por toda a parte; os homens não têm no mundo inteiro o mesmo comportamento amoroso, as mulheres também não; as posições do ato sexual são diferentes, as exterioridades, os gestos de carinho, as palavras, os ritos variam.
Toda a sexualidade está inscrita em uma cultura e essa cultura, marcada pela história. Para dar somente um exemplo, no Museu Rafael Larco Herrera, em Lima, Peru, há peças das civilizações pré-incaicas, datando de 700 a 3000 anos, que mostram variações de atividades sexuais de tal forma eróticas, que às salas onde estão expostas é proibido o acesso de menores de 18 anos. Portanto, nada de novo!
As importações de modismos sexuais, que foram da guerra dos sutiã a outras guerras, reivindicando o conhecimento do corpo, mas só das mulheres (por que não dos homens?), não são também novos e nos fazem voltar à Idade Média, a um período que daí se estende até o século XVII, quando era oferecido o espetáculo de mulheres, chamadas “feiticeiras”, a um público masculino – um equivalente orgasmo feminino, que hoje é uma espécie de bandeira de certos grupos.
E como suporte a esses modelos, fazem um apelo a Freud com sua misoginia, colocando a sexualidade feminina no contexto de seu destino anatômico, que, segundo ele, condiciona o comportamento específico da mulher. Ainda com referência a Freud, carregado em andor nos anos 60, posto em alguns altares até hoje, e em nome de quem os países socialistas foram tão criticados, por não aceitarem suas teorias do “destino anatômico da mulher”, é bom lembrar que ele pretendia impedir as lutas da “massa ignara”, pelo caráter elitista de suas pesquisas. E tal como Malthus que pretendia dizimar os pobres, antes de nascerem, para não estorvarem as classes dominantes, Freud em vez de cama oferecia divãs, onde só os ricos se deitam até hoje, considerando-se que a nascente burguesia industrial não desejava sequer oferecer camas a esses pobres. Hoje, já são vendidas à prestação…
A “explicação” que se oferece da sexualidade, como a primeira causa da inferioridade da mulher sobre todos os planos, não é mais do que um mito que legitima a ordem social (o complexo da castração).
No entanto, grupos feministas se referem contraditoriamente a esta e a outras correntes da psicanálise, assim como a certos orientadores ideológicos, para justificar a sexualidade como o último fundamento da inteligência das diversas formas de vida social e de sua evolução, a última e principal realidade à qual tudo se liga e se desliga. Trata-se realmente de usar a psicanálise para buscar os caminhos da libertação ou para dirigi-la. Mas qual psicanálise?
Quanto à igualdade, não há razões de preocupação, já que desde o ponto de vista anatômico e fisiológico os corpos de todos os seres humanos são similares; têm uma estrutura análoga (cabeça, vísceras, etc.). Todos os seres estão sob as mesmas leis naturais (físicas, químicas e biológicas). não só quanto aos seus próprios corpos, mas também em relação à natureza circundante. Todos os seres experimentam as mesmas necessidades orgânicas, como beber, comer, etc.
Desde o ponto de vista psicológico, acontece o mesmo, porque possuem mecanismos análogos: percepção, memória, imaginação, generalização, abstração, raciocínio, sentimentos de amor, de aversão, impulsos, etc., e todos realizam as funções próprias de tais mecanismos.
Então, de que se trata?
Em geral e através dos tempos, o sexo foi utilizado para oprimir as mulheres, como instrumento de uma moral feita para dominá-las e, ao mesmo tempo, usá-las como agentes de dominação.
No estágio atual, o sistema de regras que regem a relação das mulheres em função de seus corpos evolui até o direito de exigir uma sexualidade consciente, responsável e autônoma, já que os anticoncepcionais permitem tornar a procriação independente do prazer. Por isso mesmo, é estranho que o sexo apareça como fator único e fundamental da libertação da mulher, até o extremo de colocá-lo como causa da repressão histórica e não como consequência dessa repressão. Seria, nesse caso, uma libertação limitada ao prazer, ao sexo. Será que a libertação da mulher se faz através da masturbação, do orgasmo em si mesmo?
Esses mesmos grupos tentam responder essa questão utilizando o Relatório Hite, que se tornou uma espécie de evangelho (ou será testamento?) de tal doutrina. Esse relatório, carecendo de metodologia científica, é um estudo do depoimento de mulheres sobre a sexualidade.
Acontece que a prática da masturbação é tão velha como o homem, falando genericamente. E, como a exportação do conhecimento dessa forma de usar o sexo não seria necessária, já que os desenvolvidos e os subdesenvolvidos a conhecem, resta-nos pensar que se trata de publicidade do manipulador elétrico. Será que os Estados Unidos desejam faturar também cobrando o preço da tecnologia sexual?
No caso da realidade brasileira, o que nos preocupa é que se tente se pretenda colocar a repressão sexual como causa de todos os males sociais: o analfabetismo, da fome e da miséria no campo e nas cidades, da falta de oportunidades de trabalho, da falta de equipamentos sociais para as famílias; da falta de escolas, dos salários mais baixos para as mulheres; da situação de inferioridade na família; da não participação da mulher na vida pública etc. Seria concentrar a discriminação às mulheres em suas zonas erógenas, como se ela não tivessem nem rosto, nem mãos, nem consciência. Nada! Como se não necessitassem comer, morar, estudar, progredir, participar, lutar.
Essa tentativa de excluir a mulher das lutas sociais, limitando-as e isolando-as dentro do círculo estreito de uma chamada libertação sexual é falsa, mesmo em termos desse tipo de libertação, pois um ser tem necessidade do outro, sexualmente. Assim também o ato sexual é social (do latim socius, companheiro)e socialização, em sua essência e em seu exercício, a não ser que seja levado à prática o programa de organização SCUM dos EUA que clama pela castração maciça dos homens.
E o mais grave é que sendo a questão feminina colocada nesses termos, não atinge as grandes massas femininas, mas somente grupos de mulheres da pequena-burguesia, intelectuais, universitárias, profissionais, o que limita o movimento de mulheres e encerra-o no círculo das crises: crise de educação, crise de cultura, crise dos valores morais, crise da família, sujas soluções são buscadas de maneira individual e, deliberadamente ou não, dissociadas do seu contexto social e político.
Uma das soluções apresentadas é a do orgasmo. Se realmente o orgasmo solucionasse todas as crises, terminando com a opressão que pesa sobre a mulher, milenar e historicamente, essa opressão nunca teria havido, porque não vamos pensar no desconhecimento dessa possibilidade. Muitas etnias africanas, por motivos religiosos e culturais, faziam – e fazem – a ablação do clitórios para evitar o prazer, sinal de que o conheciam e o conhecem.
Não é o caso de negar-se a influência dos fatores biológicos e naturais, mas sim de verificar à medida que foi – e se vai – desenvolvendo a biologia, a psicologia, a antropologia, a sociologia e outras ciências, aparece através desses mesmos estudos o mecanismo de interação entre o biológico e o social.
É por isso que, quando se fala da necessidade de conhecer o corpo, a referência não deveria ser apenas ao sexo, mas também aos estômagos famintos das mulheres do Nordeste, às camponesas que trabalham de sol a sol, às operárias que depois de oito horas de trabalho em uma fábrica recomeçam a segunda jornada.
Aliás já se importaram tantas teorias e modismos que nada mais instrutivo – e permitimo-nos fazê-lo – do que recolher o que diz a escritora italiana Maria-Antonietta Macciocchi, em seu livro As mulheres e seus donos: “[…] há um vácuo insuportável no pensamento teórico sobre o sexo” […] “Será o corpo da mulher um todo ou útero somente?” […] Sou por feminismo de cara humana, que não começa abaixo da cintura.”
Essa mistificação que coloca a questão feminina abaixo da cintura não responde a um dos fatores essenciais da mesma, que é a divisão social do trabalho. Quando se estuda essa divisão, universalizando o fato historicamente, verifica-se que, na realidade, como diziam Marx e Engels na refutação a Feuerbach, a divisão apareceu, em sua origem, em relação ao ato sexual, ao ato da procriação. Apresentaram, naquela refutação, como intervindo nesse processo, “relação entre homem e mulher, entre pais e filhos – a família -, cuja relação é de uma parte natural e de outra social”. De onde se concluí que uma determinada forma de produção ou uma determinada fase industrial condiciona essa relação natural a essa relação social, em cujo centro se encontro a mulher.
Por isso mesmo é que a mulher é ponte de disputa ideológica e interessa ao sistema que, ao tratar dessa questão, e para evitar que as mulheres lutem para solucioná-la no contexto de uma sociedade de classes, a referida questão é enunciada, artificialmente, em termos do “antagonismo sexual”, a fim de desviar as massas femininas das lutas por sua igualdade econômica e política.
Por outro lado, são utilizados instrumentos próprios da sociedade de consumo, para fechar, cada vez mais, o mundo espiritual da mulher, tentando neutralizá-la, para justificar a velha tese da “inferioridade biológica”. Não existe uma fatal determinação biológica que condene o sexo feminino a um segundo plano intelectual e social. Trata-se de condicionamentos histórico-culturais que uma sociedade nova e superior deve valorizar criticamente, eliminando tudo quanto possa significar a supervivência de preconceitos e barreiras à libertação integral da mulher.
Essa sociedade de consumo, ao lado do que ela considera a massa consumidora e a maioria silenciosa, faz da mulher mais um produto de consumo: o sexo é uma grande fonte de lucro do capitalismo, daí a erotização da moda, da nudez, para vender produtos de beleza para a pele, para os cabelos, roupas de cama, toalhinhas higiênicas, e até produtos alimentícios. Abrem espaço, mas não dentro do envelopes de plástico proibidos a menores de 18 anos (será?), para o faturamento do erotismo, tendo a mulher (claro) como objeto sexual.
Embora seja normal que surja, na onda da questão feminina, o tema da libertação sexual, é falso e prejudicial ao movimento de mulheres, em termos de consumismo também político, inseri-lo prioritariamente na realidade feminina, dando-lhe status de causa. E quando se fala na articulação das mulheres, para as lutas por sua libertação como parte das lutas sociais, surge então uma teoria fragmentada, através do casuísmo, elaborada segundo experiências pessoais.
E nessa linha de pesquisa se apresenta, como tese, a supervalorização de situações pessoais, psicológicas e sexuais da opressão feminina (uma nova ética sexual?), com a redução dessa expressão aos problemas de mulheres de determinados setores. Essa atitude é inspirada, como mencionamos anteriormente, em ideólogos como Wilhelm Reich, que situam essa problemática humana nos comportamentos autoritários das relações sexuais e não na opressão das classes dominantes que lhes dá origem.
Paradoxalmente, as mulheres que assumem tais posições, ao mesmo tempo que reivindicam seus direitos, na prática, pregando esses direitos – o de usar o corpo livremente -, alimentam os restos de poligamia herdado de formações históricas anteriores.
Enquanto vão descobrindo e redescobrindo o corpo, não dão muita preocupação ao sistema; mas quando saem às ruas em manifestações exigindo justiça, terra e pão, contra o fascismo e a repressão, exigindo direitos iguais em todos os sentidos, sem excluir o sexo – mas colocando-o na lista de suas reivindicações-, aí então se acaba a tolerância com a “massa ignara”.
Seria bom visitar os ex-campos de concentração nazistas para conhecer a tragédia de milhões de mulheres assassinadas por suas ideias ou por suas raças, por resistência ao fascismo e à ocupação de seus países. Seria interessante conhecer e relembrar a participação das mulheres na guerra civil espanhola, seus sofrimentos e sua coragem, que podemos simbolizar na pessoa de Dolores Ibarrui, “La Pasionaria”. Seria útil saber como os soldados do colonialismo português abriram os ventres das mulheres e matavam os fetos com as suas botas fornecidas pela UTAN, queimavam as aldeias, e, no entanto, elas continuavam resistindo nas guerrilhas e mesmo comandando-as na Guiné Bissau, em Angola e Moçambique.
Pensamos que essas trágicas lembranças poderiam dar uma visão mais ampla da participação da mulher em um grande elenco de atividades, já que a situação de inferioridade a que foi relegada, historicamente, está ligada – e o que foi expressamente – para perpetuar a propriedade, a herança e, portanto, a dominação de alguns poucos sobre as maiorias, nas diversas etapas vividas pela humanidade. E a mulher continuou sendo objeto passivo, mesmo quando, através de formas de produção, iam desaparecendo os vínculos escravagistas e finalmente eram liquidados os regimes de escravidão, na acepção literal da palavra. Os usos e costumes nos vários estágios de uma dependência forçada acabaram por transformar as mesas em dependência “espontânea” – mas não só sexual -, por força dos estatutos jurídicos, das religiões, da organização familiar, das tradições.
Em resumo, a opressão sexual da mulher coloca duas questões: suas origens e suas determinantes biológicas, históricas, culturais, políticas, sócio-econômicas. E mesmo quando há grupos e pessoas que usam o rótulo do sexismo para mudar o conteúdo da questão não o conseguem, porque a dialética da vida se impõe e nenhuma teoria que se oponha a essa dialética, como é o caso de pretender subordinar e limitar a discriminação da mulher à repressão sexual, não encontrará resposta ponderável, em termos de conscientização e de luta para modificar a condição da mulher. E é justamente por isso que essas concepções são absorvidas e aproveitadas pelo sistema, pois não oferecem perigo. São todas postas à venda em envelopes de plástico…