Sobre a lógica, a tendência e a natureza do movimento “Nenhuma Extradição à China” em Hong Kong

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Cerimônia de abertura do ano legislativo de 2019 em Hong Kong.

Comitê Editorial da “International”, 6 de Agosto de 2019
Tradução do inglês por Pedro Côrtes

Comitê Editorial da International: esta é a nossa tradução de um artigo em língua chinesa originalmente publicado em 13 de Junho de 2019.


Contradição entre propaganda e realidade

As justificativas ulteriores para o movimento “Nenhuma Extradição à China” (No Extradition to China, NE2C) são a intensa desconfiança e o medo em relação ao regime do Partido Comunista Chinês (PCCh) e seu sistema judicial.

Ainda assim, esse movimento não se limita só a causar medo. A rejeição integral e indiscriminada por parte dos líderes do movimento à lei emendada “Criminosos Fugitivos” do governo de Hong Kong na verdade também é voltada diretamente aos componentes centrais [do conceito] de “Um País, Dois Sistemas”.

Participantes do movimento geralmente acreditam que, visto que o Chefe do Executivo de Hong Kong é eleito por um pequeno grupo e indicado por Beijing, ele jamais recusaria qualquer pedido de extradição vinda de Beijing, e ademais não poderia jamais exercer o devido escrutínio em casos politicamente sensíveis.

A preocupação é compreensível, mas desvia-se completamente dos pontos-chave da lei emendada.

As emendas propuseram um sistema de dois níveis de chancela. Após a decisão do Chefe do Executivo de iniciar o processo de extradição, as cortes terão o poder de determinar a legalidade do pedido de extradição. Este poder inclui a rejeição de pedidos baseada na prevenção à perseguição política, uma das oito condições a partir das quais as cortes podem negar pedidos de rendição de suspeitos fugitivos.

O poder do judiciário de Hong Kong poderia se manifestar de duas formas: 1) ele poderia determinar se há evidências prima facie o suficiente para justificar a detenção de um suspeito fugitivo; e 2) um suspeito fugitivo teria o direito de solicitar habeas corpus (com o direito de a apelar até o Tribunal de Apelações Finais) ou revisão judicial, onde a corte determinaria a legalidade do pedido de extradição e a ordem de compromisso. Apenas após estes processos judiciais terminarem o Chefe do Executivo poderia então decidir se consentiria aos pedidos de rendição de suspeitos fugitivos.

A fundação do sistema judicial de Hong Kong é a proteção da propriedade privada e dos direitos individuais sem os quais o capitalismo não pode funcionar adequadamente. Para os pan-democratas, localistas, independentistas, e até mesmo para o governo de Hong Kong, os aspectos “progressistas” e “seguros” do sistema judicial se baseia no fato de que é controlado pela comunidade pró-Ocidente e não pelo PCCh. O sistema judicial da China continental, controlado pelo Comitê para Assuntos Políticos e Legais do PCCh com sua ênfase na defesa do poder estatal, está em claro contraste com o sistema judicial de Hong Kong.

Um sistema legal capitalista controlado por elementos pró-Ocidente é um dos componentes-chave do [princípio constitucional] “Um País, Dois Sistemas” em Hong Kong. Ademais, a essência do “Um País, Dois Sistemas” está em um comprometimento entre o regime burocrático do PCCh e a burguesia doméstica e estrangeira. A forma legal deste comprometimento é a Lei Básica de Hong Kong, redigida sob as provisões da Constituição da República Popular da China[1].

Em outras palavras, o movimento NE2C não apenas expressa desconfiança ao regime do PCCh e ao Chefe Executivo por ele apontado; o NE2C também nega as habilidades guardiãs das cortes de Hong Kong. Os métodos para causar medo e para tratar a lei emendada como retórica vazia só podem se sustentar sobre esta premissa.

Se este é de fato o caso, então por que não tratar também a Lei Básica como um documento sem significado, ou até mesmo como só uma cobertura aos ultrajes violentos do PCCh? Disto se induz que, visto que o regime do PCCh não se direciona por quaisquer noções de legalidade ou moralidade, “Estado de Direito”, “Liberdade” e “Democracia” podem ser alcançados apenas pela completa separação do continente.

Portanto, apesar do movimento NE2C ter inscrito ostensivamente em seus cartazes “Defenda o Estado de Direito de HK” e “Defenda Um País, Dois Sistemas”, na realidade direciona as pontas afiadas de seus golpes ao próprio princípio de “Um País, Dois Sistemas”. O repúdio ao princípio “Um País, Dois Sistemas” sob o atual balanço de forças prevalentes pode levar apenas a um destes dois resultados: 1) “Um País, Um Sistema”, onde o regime do PCCh implementa diretamente o sistema continental em Hong Kong; 2) “Independência de Hong Kong”. A tendência objetiva do movimento NE2C está no segundo resultado, mas provavelmente deve terminar no primeiro.

Sobre as escalas que medem essa disputa de poder estão não apenas os pesos que representam o governo de HK e o acampamento do NE2C: todas as forças que o regime do PCCh e as potências imperialistas ocidentais podem colocar em ação também serão contadas. Os atuais eventos em Hong Kong nunca foram determinados apenas por fatores internos de Hong Kong.

Quem são os alvos da lei Criminosos Fugitivos?

  1. Ativistas políticos anti-comunistas?

É de conhecimento geral que muitos dos principais ativistas pan-democráticos, localistas e independentistas não têm nem mesmo uma Permissão para Viagem ao continente, e não tinham chance de “cometer crimes” por lá. Para os ativistas que operam no continente, o regime do PCCh pode prendê-los em flagrante e poupar-se do trabalho de requisitar extradição ao governo de Hong Kong. Albert Chen Hung-yee, uma autoridade legal pro-Establishment, demonstrou[2] que o regime PCCh não poderia utilizar a lei de Criminosos Fugitivos para lidar com casos politicamente sensíveis e arriscar ser declarada como culpada de repressão política pelas cortes de Hong Kong. De fato, o regime do PCCh sempre utilizou seus “próprios” métodos para lidar com oponentes políticos e nunca se preocupou com a fachada do Estado de Direito ocidental.

Isto certamente não é o mesmo que dizer que o PCCh não efetua repressão política, mas apenas apontar para o fato de que a lei de Criminosos Fugitivos proposta pelo governo de Hong Kong, com seu mecanismo envolvendo diretamente o Chefe Executivo, incorporando o direito à revisão judicial e à expressão de provisões contra perseguição política etc, seria provavelmente o meio de repressão mais esquisito e prejudicial a si mesmo que se possa imaginar.

Se o regime do PCCh quer acabar com as liberdades políticas de Hong Kong, há uma forma muito mais simples: acabar com “Um País, Dois Sistemas”, ab-rogar a Lei Básica e implementar diretamente o sistema político do continente sobre Hong Kong. Sob quais condições o regime do PCCh iria recorrer a estas medidas extremas? Apenas quando ele acreditar que “Um País, Dois Sistemas” não pode mais funcionar enquanto a sociedade decai em turbulência de larga escala

Os líderes do movimento NE2C dizem aos seus apoiadores que apenas ao intensificar suas ações, até o ponto de paralisar o governo de Hong Kong, eles poderão “manter Um País, Dois Sistemas”. Entretanto, o real resultado poderia ser o contrário.

  • A grande burguesia de Hong Kong?

O bilionário Joseph Lau Lue Hung, sentenciado in absentia para pouco mais que cinco anos de prisão em Macau por suborno e lavagem de dinheiro, retirou sua aplicação para revisão judicial através da lei de Criminosos Fugitivos após o governo de HK ter anunciado o aumento do limite da sentença para sete anos ou mais e outras condições pelas quais requerimentos de rendição seriam rejeitados. Além disso, o governo de HK respondeu a representantes de organizações da burguesia doméstica e estrangeira isentando nove ofensas que estes alegaram não serem capazes de evitar cometer no continente. Deve-se notar que o governo de HK não removeu corrupção, suborno, posse ou lavagem de dinheiro desviado da lista de ofensas, por serem parte da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. Isto nos leva a…

  • Os herdeiros da burocracia continental e de bilionários vivendo em Hong Kong?


Na sua denúncia à Chefe do Executivo Carrie Lam durante uma sessão do Conselho Legislativo, o legislador pan-democrático Au Nok-hin disseque a aprovação da lei de Criminosos Fugitivos forçaria este grupo a levar sua riqueza para fora de Hong Kong, causando um sério dano aos setores financeiros e imobiliários e portanto prejudicar toda a economia.

Sob a lei emendada, apenas grandes nomes que cometeram sérios crimes de corrupção, suborno, posse ou lavagem de dinheiro desviado, puníveis com prisão por sete anos ou mais, foram extraditados para o continente. Uma onda de fuga de capital que poderia desestabilizar os mercados financeiros e imobiliários de Hong Kong? Imagine só uma escala absoluta de riquezas injustas.

  • Cidadãos ocidentais e taiwaneses que residem ou visitam Hong Kong?

Altas representações das potências imperialistas ocidentais e o governo de Taiwan emitiram declarações ou de séria consternação ou de oposição determinada à lei. Elas alegaram que sua aprovação afetaria a liberdade e segurança de seus cidadãos que estão viajando ou vivendo em Hong Kong.

Não se esqueça: centenas de milhares de cidadãos de países ocidentais e aproximadamente dois milhões de taiwaneses vivem no continente, e muitos mais entram e saem da China continental ano após ano. Se as autoridades do Ocidentes e de Taiwan acreditam que o sistema judicial do PCCh representa um perigo claro e presente aos seus cidadãos, eles deveriam emitir alertas de viagem ou até mesmo organizar uma evacuação integral de seus cidadãos vivendo na China continental, ao invés de expressar suas preocupações sobre a possibilidade de seus cidadãos serem extraditados para o continente via lei de Criminosos Fugitivos.

Note bem: Apenas aqueles que são suspeitos de terem cometido uma ou mais das 37 ofensas listadas e puníveis com sete anos ou mais de prisão poderiam ser considerados para extradição. Podemos deduzir que, dentro desta demografia, uma porção daqueles que possuem cidadania ocidental ou taiwanesa se encaixa no perfil C acima.

Conclusões

A menos que “hongkongueses” e suas crianças sejam todos criminosos que poderiam ser sentenciados a sete anos ou mais de prisão, a lei Criminosos Fugitivos dificilmente tocaria 99% das pessoas de Hong Kong. Entretanto, o medo genuíno do 1% (ou até menos) se tornou um verdadeiro pavor, apesar de simulado, para a população inteira.

Por um lado, isso demonstra a destreza do aparato de propaganda ideológica do campo pan-democrático e a completa falência do establishment pro-Beijing em comparação.

Por outro lado, o movimento NE2C exibe sua patologia social: na sociedade extremamente capitalista de Hong Kong, as massas da juventude parecem estar menos preocupadas com serem exploradas e oprimidas por seus patrões e acabar quebradas e falidas do que com serem pessoalmente miradas pelo regime do PCCh: um por um, passando por um processo de litígio por todo o caminho até a Corte de Apelações Finais, e eventualmente rendidas por uma masmorra Vermelha pela Chefe Executiva. (Desde quando o judiciário tem dado tais “privilégios” para a prole comum?) De fato, este é um movimento que muitos patrões aprovaram ao garantir licença anual para os empregados que desejassem participar.

A extrema exploração capitalista em Hong Kong não deu origem a um movimento de resistência socialista. Pelo contrário, deu origem a um movimento de massa barulhento que reclama sobre a potencial injustiça que os herdeiros dos burocratas e bilionários que fugiram para o continente talvez sofram, não obstante a ironia de que estes refugiados são os resultados colaterais esquisitíssimos do capitalismo extremo à la Hong Kong na China continental.

Os líderes da “esquerda” pan-democrática que de forma barulhenta equacionam a rotação ocidental de facções endinheiradas via eleições por sufrágio universal com “democracia”, e promovem a ideia de que esta é a base de todo progresso social, devem arcar com a responsabilidade direta da situação. Entretanto, aqueles “esquerdistas patrióticos” que há muito tempo abandonaram qualquer perspectiva socialista, que recusam qualquer discussão sobre reformas, que aprovam o capitalismo extremo, que só são capazes de apontar para pessoas que ficam ricas no continente e que fantasiam sobre esmagar a “juventude perdida” com o Exército e a Polícia; assim como o regime burocrático do PCCh que prescreve às massas trabalhadoras de Hong Kong um papel subserviente aos interesses da “burguesia nacional”, devem arcar com a maior e mais importante parte da responsabilidade política.

Na ausência dos métodos, posicionamento e visão de mundo do socialismo científico e sua expressão organizada, as massas da juventude carecem de conhecimento e habilidade para lutar contra sua própria exploração e opressão. Como resultado, elas projetaram sua repressão e frustração sem nome em uma imaginada comunidade “hongkonguesa” que os pan-democratas, localistas e independentistas prepararam para elas, e que então cristalizaram em um movimento de rua pela “autodeterminação” anti-comunista.

Este movimento não tem nada a ver como liberdade e democracia, e tem tudo a ver com empurrar Hong Kong para o fim da linha, tal qual ocorreu na Ucrânia, Síria e Líbia.

Nosso tempo está clamando por um movimento socialista pelo qual os trabalhadores possam se livrar da dominação ideológica de todas as classes proprietárias, e pelo qual os trabalhadores do mundo se unam para acabar com o capitalismo.


[1] Link para a constituição em inglês: http://english.www.gov.cn/archive/lawsregulations/201911/20/content_WS5ed8856ec6d0b3f0e9499913.html

[2] Este link leva a uma página que expirou. Um comentário deste autor foi encontrado no seguinte link: http://researchblog.law.hku.hk/2019/05/albert-chens-commentary-on-proposed.html

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