Artigo de João Quartim de Moraes.
Publicado na revista Crítica Marxista, nº 40, em 2015.
A destruição da União Soviética teria sido provocada pelo fracasso da planificação central, como pretendem os inimigos do socialismo? Os estudos aqui comentados mostram que não. O êxito da contrarrevolução capitalista deve ser explicado por outros fatores, antes de mais nada pelo fracasso da malfadada perestroika de Gorbachev, que levou à deterioração dos serviços públicos, à desorganização da produção, à especulação sobre estoques e ao descontrole orçamentário
Lo que pretenden los nuevos izquierdistas, y desde luego la burguesía, es enterrar todo un legado histórico que como clase nos pertenece, y del que podemos y debemos sentirnos orgullosos e incluso imitar hoy muchos de sus pasos.
Camarada X, em El Camino de Hierro
No Brasil, a primeira contribuição para compreender a derrocada soviética é URSS, ascensão e queda: a economia política das relações da União Soviética com o mundo capitalista, livro publicado por Luís Fernandes em 1991. O autor se apoia na tese de mestrado que defendeu em 1989, à qual, como esclarece em artigo posterior, consagrou quase uma década de estudos e pesquisas (Fernandes, 1992, p.74). O período coberto pela pesquisa se estende até as reformas de Gorbachev; no tempo transcorrido entre a defesa da tese e a preparação do livro, precipitou–se o desmanche do socialismo, mas os efeitos perversos da contrarrevolução capitalista ainda não tinham se consumado inteiramente. Os subsídios analíticos que o livro oferece são úteis na medida em que expõem a situação em que o remédio venenoso da perestroika foi aplicado, mas faltava-lhe recuo histórico para reconstituir o processo concreto que conduziu ao grande desastre.
Em seu primeiro número (1994), Crítica Marxista montou o dossiê “O marxismo e a desagregação da União Soviética”. A iniciativa correspondia ao mesmo empenho que tinha presidido à fundação da revista: resposta intelectual e moral à capitulação perante o neoliberalismo, luta pela reativação do marxismo vivo, crítico e revolucionário. Aproximações iniciais a um tema complexo e carregado de duras controvérsias, as contribuições que integram o dossiê são inevitavelmente esquemáticas. Algumas expõem somente as tomadas de posição dos articulistas. Outras apontam para as questões a serem aprofundadas, mas apenas delineiam os principais temas e problemas a serem analisados.
Fracasso da planificação central?
Naqueles anos infames em que se consumou a contrarrevolução capitalista, Serguei Kara-Murza, [1] acadêmico russo de mérito internacionalmente reconhecido, professor na URSS e na Espanha, publicou na revista Gerónimo de Uztariz o ensaio “Qué le ocurrió a la Unión Soviética?”, no qual sustenta categoricamente que não havia crise na economia soviética quando Gorbachev lançou sua malfadada “perestroika” (Kara-Murza, 1994). [2] Vale notar que longe de ser um defensor dogmático do regime, o autor sequer se apresenta como marxista. Refere-se ao marxismo de modo demasiado sumário e simplificador, o que confirma, de resto, os males que sofre uma teoria quando é transformada em doutrina de Estado. A referência filosófica que ele reivindica é o materialismo; sua ideologia é socialista e sua posição política é de combate ao neoliberalismo. Defende o legado da URSS com veemência, mas também com argumentos convincentes e sólida documentação.
Apoiado em estatísticas básicas, ele mostra que diferentemente do que ocorre em crises, quando o ritmo dos investimentos desacelera e cai, na URSS eles cresciam regularmente, como mostra abaixo a Tabela 1:

Ao alegar, em 1988, que era preciso mudar o sistema econômico da URSS porque o ritmo de crescimento anual era de “apenas” 3,5%, Gorbachev estava apenas (sem aspas) buscando um pretexto para levar adiante sua obra liquidacionista. Quantos países do Ocidente liberal tiveram crescimento comparável? Sem esquecer que a periferia do imperialismo ainda chafurdava na estagnação e hiperinflação provocadas pela chamada “crise da dívida”. A conclusão se impõe: o desmantelamento da URSS não foi provocado pelo fracasso da planificação econômica, como apregoam os neoliberais e os reacionários. No máximo, pode-se falar em declínio da taxa de crescimento, mas muito menor do que o das potências liberal-imperialistas.
As análises desenvolvidas por sovietólogos ligados a Problems of Comunism, publicação do Departamento de Estado norte-americano, não desmentem essa avaliação. Obviamente, vistos de Washington e de Wall Street, todos os problemas decorrem do caráter centralmente planificado da economia soviética. Poder-se-ia esperar que ao menos os artigos aparentemente menos ideológicos levassem em conta o colossal desenvolvimento da URSS ao longo dos oito primeiros planos quinquenais (1928-1960). Mas guerra é guerra, mesmo se fria: os articulistas concentram a crítica nos três últimos planos posteriores, que registram nítido decréscimo do crescimento, sem contudo configurar uma crise da planificação. É o que mostra a Tabela 2:

Os gargalos, disfunções e limitações da planificação central já tinham sido amplamente discutidos por teóricos comunistas dentro e fora do bloco soviético. Os mais críticos (o tcheco Ota Sik, nomeadamente) combatendo o que consideravam a eliminação artificial dos mecanismos de mercado, preconizavam medidas inspiradas na experiência soviética da Nova Política Econômica (NEP). No final dos anos 1970, a convicção de que “não é possível administrar a demanda” [3] era partilhada abertamente por muitos dirigentes políticos das democracias populares do Leste Europeu. Com efeito, os preços centralmente administrados não respondem imediata e diretamente às flutuações da demanda e às aspirações dos consumidores. Mas essa constatação não afeta em nada o princípio da planificação central. Nada impede que as empresas produtoras de bens de consumo e de serviços disponham de autonomia para responder à demanda, o que de resto estava ocorrendo de maneira crescente no bloco do Leste.
Ao comentar a derrocada da URSS em entrevista com o jornalista Ignacio Ramonet, Fidel Castro mencionou os desperdícios suscitados pelos preços muito baixos dos transportes públicos e do pão. Atribuiu essas disfunções à longa estabilidade não somente dos preços dos produtos básicos, mas também do caviar, que “tinha o mesmo preço desde a época de Stalin”. O pão estava tão barato que os camponeses alimentavam frangos com ele (Ramonet, 2006, p.360-361). Mas não é fácil distinguir claramente entre os desperdícios provenientes de erros de cálculo dos planejadores e os que decorrem de abusos dos próprios consumidores. Não escapa ao senso comum que tarifas muito baixas de água e energia estimulam gastos excessivos. Mas o controle do desperdício é facilmente planificável: basta fixar um limite razoável, acima do qual as tarifas sobem mais que proporcionalmente ao consumo. O expediente é utilizado por países espessamente capitalistas em situações de penúria.
Os agentes do capital estão cansados de saber que a maneira mais fácil de aumentar a rentabilidade de uma empresa consiste em reduzir os custos salariais por unidade de produto. Do ponto de vista da lógica capitalista, a garantia de emprego para todos os trabalhadores era a maior disfunção econômica do socialismo soviético. Do ponto de vista deste, ela era um princípio irrenunciável. Evidentemente, o grau de desenvolvimento das forças produtivas determina, em cada ramo produtivo, o número ótimo de operários. Mas esse ótimo é sobredeterminado pela contradição dos interesses de classe: o do capitalista consiste em prolongar e intensificar o processo de trabalho; o do operário em mantê-lo dentro de limites de um dispêndio normal de suas forças físicas e intelectuais. Num país como a França, onde desde 1936 se acumularam conquistas democráticas do movimento sindical, mesmo durante os anos mais prósperos do hoje extinto “capitalismo de bem-estar social”, era recorrente a denúncia das “cadences infernales”, isto é da aceleração do ritmo do trabalho nas linhas de montagem das fábricas. Significativamente, no inventário das falhas da economia soviética que os articulistas de Problems of Comunism compilaram zelosamente, não há alusões à intensificação do ritmo de trabalho. Essa é uma especialidade do “mundo livre” e do “mercado”. Sem dúvida, a URSS conheceu os campos de trabalho nos períodos mais sombrios de sua história. Mas se for para trocar o tema da economia pelo da teratologia política, qual potência capitalista não recorreu a atrozes modalidades de trabalho coercitivo? Um crime não justifica o outro. Por isso mesmo, condenar os crimes alheios ocultando os próprios é falsificar a história.
Não é preciso ser marxista nem defensor da Revolução de Outubro, basta não ser intelectualmente desonesto, para formular objetivamente os termos do debate sobre a planificação, como fez o economista brasileiro Carlos Aguiar de Medeiros:
A tese da intrínseca inferioridade do planejamento centralizado deve explicar como a URSS passou de uma economia atrasada e arrasada pela guerra para a segunda economia industrial do mundo em um espaço de trinta anos. O atraso soviético na tecnologia da informação (TI) nas décadas de 1970 e 1980, um fato inegável, poderia explicar uma desaceleração no crescimento, mas não um colapso. (Medeiros, 2011, p.14)
Caracterizando como “assombroso” o caminho percorrido pela URSS em seu desenvolvimento industrial e científico, Kara-Murza reconheceu que “a entrada na informática atrasou-se”, mas ponderou que “isso não tem nada de extraordinário: o desenvolvimento tecnológico não é efetivamente linear” (Kara-Murza, 1994, p.84). Vale notar que outros países de alta tecnologia, a Alemanha notadamente, também se atrasaram em relação à aplicação da informática à microeletrônica: os Estados Unidos postergaram em algumas décadas sua decadência econômica graças a seu pioneirismo na promoção dessa enorme revolução técnica. Por mais que detestemos o imperialismo, somos todos clientes da Microsoft, do Google, da internet etc. A França bem que tentou, com seu Minitel, competir com os estadunidenses. Sem sucesso algum.
Crise fabricada
No passivo do regime soviético pesou muito a catástrofe de Chernobyl. A propaganda neoliberal, com sua torpeza costumeira, utilizou “cinicamente” o acidente nuclear para “difundir através do mundo o mito do desastroso estado da tecnologia na URSS”. Mas poderia ser tão frouxa a base tecnológica de um “corpo industrial que proporcionava segura paridade com todo o Ocidente em armamentos?”. Claro que não, sobretudo considerando que a construção de sistemas aerocósmicos de alta complexidade (em alguns dos quais a URSS levava sérias vantagens sobre os EUA) envolvia “todo o tecido industrial”, não podendo pois ser assumida por um “pequeno enclave tecnológico” (Kara-Murza, 1994, p.84). Um quarto de século depois de Chernobyl, um acidente de proporções comparáveis ocorreu na usina nuclear japonesa de Fukushima. Quantos cães de guarda mediáticos uivaram contra o desastroso estado da tecnologia japonesa?
O grau de eficiência (gasto de combustível por unidade de energia elétrica produzida) do setor energético, que também envolve um vasto sistema de tecnologias complexas, é um bom indicador do nível de desenvolvimento das forças produtivas. Na URSS o setor funcionava com eficácia aceitável, que gradualmente melhorava, como mostra a Tabela 3:

Havia muitas deficiências na URSS, mas de nenhum modo se poderia qualificar a situação de desastrosa. A indústria e a agricultura estavam sendo reestruturadas sem maiores transtornos e os índices básicos do bem-estar social progrediram até 1989, como mostra a Tabela 4: [4]

Infelizmente, os dados relativos a 1988-89 brilham como luzes de uma estrela moribunda. Para minar a resistência, por parte dos que eles chamavam mistificadoramente de “conservadores”, às duvidosas reformas que estavam promovendo, Gorbachev e parceiros difundiram com certo êxito, por meio de uma insistente campanha de imprensa e TV, a ideia de que a situação se deteriorava em todos os setores. A profecia não tardou muito para se autorrealizar. Em 1988, três anos depois de ter sido lançada, a perestroika tinha levado à deterioração dos serviços públicos, à desorganização da produção, à especulação sobre estoques e ao descontrole orçamentário. O forte grau de incerteza sobre o rumo da sociedade soviética afetou a coesão dos conselheiros reformistas. Alguns queriam acelerar medidas rumo à “economia de mercado”; outros queriam mudanças no âmbito do socialismo. Em julho de 1989, Leonid Abalkin, um dos mais proeminentes economistas do governo, foi nomeado presidente da Comissão de reforma econômica e presidente adjunto do Conselho de ministros. Assumiu esses cargos com um diagnóstico implacável:
a situação econômica atual não decorre das dificuldades herdadas por Gorbachev […] nem de Chernobyl, nem do terremoto na Armênia, mas de uma série de graves erros de cálculo econômico cometidos em 1986-1989. […] antes de 1985, as rendas do Estado soviético tinham sempre superado suas despesas; donde a responsabilidade da recente alta aguda das despesas relativamente às rendas deve ser atribuída diretamente a Gorbachev. (Rumer, 1990, p.75)
Partindo da constatação de que para salvar as reformas urgia antes salvar do caos a própria economia, Abalkin adotou um complexo de medidas de estabilização orçamentária e monetária. Mas era tarde demais. Da cúpula do PCURSS e dos grandes conglomerados estatais, ao lado de vasta gama de mafiosos, saíram bandos de abutres sedentos de saqueio, que montaram uma colossal “privataria”, despedaçando o pujante aparelho industrial soviético, o segundo maior do mundo. Os mais audaciosos tornaram-se megamilionários num piscar de olhos. Entre eles, Boris Ieltsin, o aventureiro ébrio que consolidou a contrarrevolução liberal bombardeando o Congresso russo.
Notas
[1] Não confundi-lo com Vladimir Kara-Murza Jr, jornalista e político neoliberal.
[2] Não conseguimos localizar o original russo do texto; nem mesmo estamos seguros de que ele exista. É possível que Kara-Murza o tenha escrito em espanhol, língua que conhecia muito bem. Formado em química pela Universidade Estatal de Moscou em 1961, entre 1966 e 1972 ele trabalhou em Cuba nessa especialidade como cooperante soviético. Em 1983, defendeu sua tese de doutorado em história da ciência e da tecnologia.
[3] A afirmação é de Andrei Lukanov, vice-presidente do Conselho de Ministros da República popular da Bulgária, que entrevistamos em 1979. (Quartim, 1980, p.XX).
[4] No estudo de Kara-Murza, do qual tiramos essa tabela, ela tem n.2
Referências bibliográficas
FERNANDES, L. URSS ascensão e queda: a economia política das relações da União Soviética com o mundo capitalista . Rio de Janeiro: Mauad, 1991. ______. Ascenção e queda. Princípios, 24, fev.-abr. 1992.
KARA-MURZA, S. Qué le ocurrió a la Unión Soviética? Gerónimo de Uztariz, n.9/10, 1994, p.77-118.
KEBLAY, B. L’URSS piétine. L’Expansion, Paris, 20 fev. a 5 mar. 1981.
MEDEIROS, C. A. A economia política da transição na Rússia. In: PINELI ALVES A. (org.). Uma longa transição: vinte anos de transformações na Rússia. Brasília: Ipea, 2011. p.13-37.
QUARTIM, J. Développement économique: des formes originales de gestion. Afrique-Asie, n.210, 31/3/1980, suplemento Bulgarie. p.XIX-XXI.
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RUMER, B. The ‘Abalkanization’ of soviet economic reform. Problems of communism (XXXIX), 74-82, jan.-fev. 1990.