Quatro artigos retirados do livro “Ideias para a luta” de Marta Hernecker.
Publicado pela Editora Expressão Popular, compre o livro aqui.
A seguir estão disponíveis os artigos: “Não impor, mas convencer”, “Colocar-se à disposição dos movimentos populares, não suplantá-los”, “A esquerda deve evitar que a direita defina o calendário de suas lutas” e “Respeitar as diferenças e flexibilizar a militância”.
Não impor, mas convencer.
1. Os movimentos populares e, em geral, os diferentes atores sociais que hoje estão nas principais trincheiras de luta para construir uma sociedade alternativa à sociedade capitalista, tanto em nível internacional como em seus próprios países, repudiam, com razão, as condutas hegemonizantes. Não aceitam que as decisões sejam impostas de cima para baixo de forma autoritária; que se pretenda conduzir o movimento dando ordens, por mais corretas que elas sejam.
2. Uma atitude de preponderância, em vez de somar forças, produz o efeito contrário. Por um lado, cria mal-estar nas outras organizações, que se sentem manipuladas e obrigadas a aceitar decisões nas quais não tiveram nenhuma participação e, por outro lado, reduz o campo dos aliados, já que uma organização que assume uma posição deste tipo é incapaz de captar os reais interesses de todos os setores populares e cria em muitos deles desconfiança e ceticismo.
3. Porém, lutar contra o hegemonismo não significa renunciar a luta por hegemonia, que é apenas tratar de conquistar, de persuadir os demais da correção dos nossos critérios e da legitimidade de nossas propostas.
4. Para se conquistar a hegemonia não é necessário, inicialmente, muitos integrantes. Há exemplos históricos que demonstram que um pequeno grupo com ideias claras, que analisa corretamente a correlação de forças em luta, que elabora uma estratégia e uma tática corretas, e está dotado de uma grande paixão e decidido a pôr suas ideias em prática, pode se transformar, em curto prazo, em um grande movimento que move milhares de pessoas.
5. Mais importante do que criar um poderoso partido com grande número de militantes é construir um projeto político que reflita as aspirações mais sentidas do povo e, por isso mesmo, conquiste sua mente e seu coração. O importante é que sua política seja respaldada pelas massas, que busque o consenso na maioria da sociedade.
6. Há partidos que se vangloriam do grande número de militantes que têm, mas, de fato, apenas conduzem seus filiados. O importante não é, então, que o partido seja grande ou pequeno, o que interessa é que a maioria das pessoas se sinta identificada com as propostas.
7. Em vez de impor e instrumentalizar, se deve convencer e somar todos os que se sintam atraídos pelo projeto que se pretende realizar. E só se soma respeitando os demais, se for capaz de compartilhar responsabilidades com outras forças.
8. Hoje, setores importantes da esquerda chegaram à compreensão de que sua hegemonia será maior quando conseguirem que mais pessoas sigam suas propostas, embora estas não apareçam com o seu carimbo. Deve-se abandonar a antiga prática equivocada de pretender cobrar direitos autorais das organizações que ousam levantar as suas bandeiras.
9. Conseguindo-se conquistar para essas ideias um número importante de líderes naturais, assegura-se com isso que elas cheguem de forma mais efetiva aos diversos movimentos populares. É importante também conquistar para o projeto personalidades importantes em âmbito nacional, porque elas são formadoras de opinião pública
10. Pensamos que uma boa maneira de medir a hegemonia alcançada por uma organização é examinar quantos líderes naturais e personalidades assumiram suas ideias e, em geral, quantas pessoas se sentem identificadas com elas.
11. O grau de hegemonia alcançado por uma organização política não pode ser medido, então, pela quantidade de cargos que se possa conquistar. O fundamental é que aqueles que estão em cargos de direção nas diversas organizações e movimentos assumam como suas e realizem as propostas elaboradas por essa organização, embora não sejam militantes dela.
12. Uma prova da consequência de um grupo político que se declara não hegemonista é justamente ser capaz de propor os melhores homens e mulheres para os diferentes cargos, sejam esses de seu próprio partido, ou sejam independentes, ou de outros partidos. Das figuras que a esquerda seja capaz de levantar dependerá em grande medida a credibilidade que o povo tenha em seu projeto.
13. É claro que isso é mais fácil de dizer do que praticar. Costuma ocorrer que, quando uma organização é forte, tenha a tendência a subvalorizar a contribuição que outras organizações possam fazer e que tenha a tendência a impor suas ideias. É mais fácil fazer isto do que se arriscar ao desafio que significa ganhar a consciência das pessoas. Quanto mais cargos se têm, mais atento há de estar para não cair em preocupações hegemonistas.
14. Por outro lado, o conceito de hegemonia é um conceito dinâmico, a hegemonia não se ganha de uma vez e para sempre. Mantê-la é um processo que tem de ser recriado permanentemente. A vida segue seu curso, aparecem novos problemas e com eles, novos desafios.
Colocar-se à disposição dos movimentos populares, não suplantá-los
1. Dissemos em um artigo anterior que a política é a arte de construir a força social e política que permita mudar a correlação de forças para tornar possível no futuro o que aparece como impossível no imediato. Mas para conseguir construir força social é necessário que as organizações políticas expressem um grande respeito pelo movimento popular; que contribuam para seu desenvolvimento autônomo, abandonando toda tentativa de manipulação. Devem partir do princípio de que elas não são as únicas que têm ideias e propostas e que, pelo contrário, o movimento popular tem muito o que lhes oferecer, porque em sua prática cotidiana de luta também vai aprendendo, descobrindo caminhos, encontrando respostas, inventando métodos, que podem ser muito enriquecedores.
2. As organizações políticas têm que tirar da cabeça que só elas produzem ideias criadoras, originais, revolucionárias, transformadoras. E, por isso, seu papel não é apenas de fazer eco às reivindicações e demandas que vêm dos movimentos sociais, mas também devem estar dispostas a recolher ideias e conceitos que irão enriquecer seu próprio arsenal conceitual.
3. Tanto os dirigentes políticos como sociais devem abandonar o método de chegar com esquemas ou respostas pré-elaboradas. Deve-se lutar para eliminar todo verticalismo que anule a iniciativa das pessoas. O papel dos dirigentes deve ser o de contribuir com suas ideias e experiências para fazer crescer e fortalecer o movimento popular, e não pretender superá-lo.
4. Sua função é empurrar o movimento de massas, ou talvez mais que empurrar, facilitar as condições para que ele possa desenvolver sua capacidade de enfrentar aqueles que o oprimem e o exploram. Mas só se pode empurrar trabalhando ombro a ombro nas lutas locais, regionais, nacionais e internacionais do povo.
5. A relação das organizações políticas com os movimentos populares deveria ser, então, um circuito em duas direções: da organização política ao movimento popular e desta à organização política. Infelizmente, ainda costuma funcionar só no primeiro sentido.
6. Deve-se aprender a escutar e a falar com as pessoas; deve-se colocar o ouvido atento a todas as soluções que o próprio povo gesta para defender suas conquistas ou para lutar por suas reivindicações e, a partir de toda a informação que seja recolhida, devemos ser capazes de fazer um diagnóstico correto de seu estado de ânimo e captar aquilo que possa unir e gerar ação, combatendo o pensamento pessimista, derrotista que também existe.
7. Onde seja possível devemos incorporar as bases ao processo de tomada de decisões, isso quer dizer que se devem abrir espaços à participação popular, mas a participação popular não é algo que possa ser decretado de cima para baixo. Somente partindo-se das motivações das pessoas, somente fazendo-as descobrir, elas mesmas, a necessidade de realizar determinadas tarefas, somente ganhando consciência e coração essas pessoas estarão dispostas a se comprometer plenamente com as ações que sejam empreendidas.
8. Somente assim as orientações lançadas não serão sentidas como diretrizes externas ao movimento, e permitirão construir um processo organizativo capaz de levar a se incorporar na luta, se não todo povo, pelo menos uma parte importante dele. A partir daí, se poderá ganhar os setores mais pessimistas. Quando esses últimos setores sentirem que os objetivos pelos quais se luta não são apenas necessários, mas são possíveis de se conseguir – como dizia Che –, se unirão à luta.
9. Quando as pessoas comprovarem que são suas ideias, suas iniciativas que estão sendo implementadas, se sentirão protagonistas dos fatos, e sua capacidade de luta crescerá enormemente.
10. Pelo exposto, deduz-se que os quadros políticos e sociais que necessitamos para cumprir estas tarefas não devem ser quadros com mentalidade militar. Hoje não se trata de conduzir um exército, o que não quer dizer que em algumas conjunturas críticas se possa, e deva, se fazer, uma virada neste sentido. Também não trata de demagogos populistas, porque não estão a conduzir um rebanho de ovelhas. Os quadros políticos devem ser fundamentalmente – como já dizíamos – pedagogos populares, capazes de despertar e valorizar as ideias e iniciativas que surgem no próprio movimento popular.
11. Infelizmente, muitos dos atuais dirigentes se educaram na escola de conduzir as massas por meio de ordens, e não é fácil de mudar esse estilo de um dia para outro. Por isso não quero criar uma sensação de excessivo otimismo. A correta relação dos dirigentes com as bases está longe de ser resolvida.
A esquerda deve evitar que a direita defina o calendário de suas lutas
1. No artigo anterior dizíamos que uma grande parte da esquerda partidária, nas últimas décadas, tem tido muitas dificuldades para trabalhar com os movimentos sociais e aproximar-se dos novos atores sociais. No meu entender, isso se deve a vários fatores.
2. Enquanto a direita tem demonstrado uma grande iniciativa política, a esquerda costuma estar na defensiva. Enquanto a primeira usa seu controle das instituições do Estado e dos meios de comunicação de massas e sua influência econômica para impor o novo modelo, servil ao capital financeiro e aos monopólios, precipitando as privatizações, a desregulamentação do trabalho e todos os demais aspectos do programa econômico neoliberal, a fragmentação social e o aumento do antipartidarismo, a esquerda partidária, ao contrário, ao limitar o trabalho político quase que exclusivamente ao uso da institucionalidade vigente, submetendo-se às regras do jogo do inimigo, quase nunca a surpreende. Cai-se no absurdo de que o calendário de lutas de esquerda é determinado pela direita.
3. Quantas vezes não temos escutado queixas da esquerda contra as condições adversas em que ocorreu a disputa eleitoral, depois de constatar que não conseguiu os resultados eleitorais esperados nas urnas? No entanto, essa mesma esquerda muito poucas vezes denuncia em sua campanha eleitoral as regras do jogo que lhe são impostas, e propõe como parte dessa campanha uma proposta de reforma eleitoral. Pelo contrário, costuma ocorrer que na busca dos votos – em vez de fazer uma campanha educativa, pedagógica, que sirva para que o povo cresça em organização e consciência – utilizam-se as mesmas técnicas das classes dominantes para vender seus candidatos.
4. Em contrapartida, as próprias regras do jogo impostas pelas classes dominantes dificultam a unidade da esquerda e aumentam o personalismo. Obrigam, em alguns países, a trabalhar pelo próprio partido em vez de por uma frente mais ampla, porque se não fizer isso esse partido tende a desaparecer do cenário político.
5. E isso determina que, em caso de uma derrota eleitoral, além da frustração, do desgaste e do endividamento resultante da campanha, o esforço eleitoral não se traduza em um crescimento político daqueles que foram receptores e atores, deixando a amarga sensação de que tudo tenha sido em vão. Muito diferente seria a situação se a campanha fosse pensada fundamentalmente do ângulo pedagógico, usando o espaço eleitoral para fortalecer a consciência e a organização popular. Então, embora os resultados nas urnas não sejam dos melhores, o tempo e os esforços investidos na campanha não seriam algo perdido.
6. Com razão alguns afirmam que o culto à instituição tem sido o cavalo de Troia que o sistema dominante conseguiu introduzir na própria fortaleza da esquerda transformadora, conseguindo miná-la por dentro.
7. O trabalho da militância é delegado progressivamente às pessoas que detenham cargos públicos e administrativos. O esforço prioritário deixa de ser a ação coletiva para se transformar em ação parlamentar ou na presença midiática.
8. Tem havido uma tendência de a ação militante se reduzir ao período eleitoral, com colagem de cartazes e algum outro ato público.
9. E o que é ainda pior, o financiamento dos partidos provém cada vez mais da participação de seus quadros nas instituições do Estado: parlamento, governos locais, tribunais de controle eleitoral etc. com tudo o que isso envolve de dependência e de pressões.10. A atividade política da esquerda não pode se reduzir à conquista das instituições, mas deve estar direcionada a mudá-las para poder transformar a realidade. Deve-se criar correlações de forças que permitam realizar as mudanças requeridas. Deve-se entender que não se pode construir força política sem construir força social.
11. Do mesmo modo, deve-se evitar “partidarizar” todas as iniciativas e os movimentos sociais com os quais se relaciona, pelo contrário deve se esforçar para articular suas práticas em um projeto político único.
12. Também tem sido muito difícil para a esquerda partidária abrir-se a novas realidades. Muitas vezes tem se mantido aferrada a esquemas conceituais que lhe impede de apreciar a potencialidade dos novos sujeitos sociais, centrando sua visão exclusivamente nos atores que tradicionalmente se mobilizavam, como os sindicatos, hoje muito debilitados em decorrência de diversos fatores.
13. Por último, uma das maiores dificuldades da esquerda política para trabalhar com a esquerda social tem sido a concepção dos movimentos sociais como correias de transmissão do partido. A direção do movimento, os cargos nos organismos de direção, a plataforma de luta, enfim, tudo se resolvia nas direções partidárias e, em seguida, se baixava a linha a seguir pelo movimento social em questão, sem que esse pudesse participar na formulação de nenhum dos assuntos que mais lhe diziam respeito.
14. Sintetizando, para que a esquerda partidária consiga se aproximar da esquerda social é necessário que se renove ideologicamente, mude sua cultura política e estilos de trabalho e incorpore a seu arsenal as formas de luta e de resistência inovadoras implementadas pela esquerda social.
Respeitar as diferenças e flexibilizar a militância
1. Ainda existe na esquerda uma dificuldade para trabalhar com as diferenças. As organizações políticas do passado, especialmente dos partidos que se autodenominavam partidos da classe trabalhadora, tinham sempre a tendência de tentar homogeneizar a base social em que atuavam. Se alguma vez essa atitude se justificou dada a identidade e homogeneidade da classe trabalhadora de épocas passadas, neste momento é anacrônica frente à presença de uma classe trabalhadora muito diferenciada e ao surgimento de outros atores sociais muito diversos entre si. Hoje se trata, cada vez mais, da unidade na diversidade, do respeito às diferenças étnicas, culturais, de gênero e de sentimento de pertencer a coletivos específicos.
2. Faz-se necessário realizar um esforço para canalizar os compromissos militantes partindo das potencialidades próprias de cada setor e mesmo de cada pessoa que esteja disposta a se comprometer na luta, sem buscar homogeneizar os atores. É importante ter uma espécie de sensibilidade para perceber também todos aqueles pontos de encontro que podem permitir construir, levando em consideração as diferenças, uma plataforma de luta comum.
3. Este respeito às diferenças deve se refletir também na linguagem. É fundamental que se rompa com o velho estilo de pretender levar mensagens uniformes a pessoas com interesses muito diferentes. Não se pode estar pensando em massas amorfas, o que existe são indivíduos, homens e mulheres que estão em diferentes lugares, fazendo coisas diferentes e submetidos a influências ideológicas diferentes; a mensagem tem que adotar formas flexíveis para chegar a esse homem e a essa mulher concretos.
4. Quando todos os discursos e as mensagens vêm feitos do mesmo material e são transmitidos da mesma forma e com as mesmas palavras, pronunciadas no mesmo tom e pelo mesmo megafone, quando passam os anos e a propaganda e as palavras de ordem não mudam, a palavra se desvaloriza. Essa moeda já não compra a imaginação de ninguém.
5. Deve-se individualizar a mensagem, mas sem perder de vista os objetivos comuns.
6. Em contrapartida, é do conhecimento de todos que durante esses últimos anos aconteceu uma crise de militância bastante generalizada, não apenas nos partidos de esquerda, mas também nos movimentos sociais e nas comunidades cristãs de base, que não são alheias às mudanças ocorridas no mundo. No entanto, junto a essa crise de militância, em muitos de nossos países, paralelamente, tem ocorrido um crescimento da influência da esquerda na sociedade, e tem aumentado a sensibilidade de esquerda nos setores populares.
7. Isto faz pensar que um dos fatores que poderia estar na origem dessa crise é o tipo de exigências que são colocadas para a pessoa que queira se incorporar a uma prática militante organizada. Haveria que examinar se a esquerda tem sabido abrir canais de militância para tornar fértil essa crescente sensibilidade de esquerda na sociedade, porque nem todas as pessoas têm a mesma vocação militante nem se sentem inclinadas a militar de forma permanente. Isso flutua dependendo muito dos momentos políticos que se vivem. Não estar atentos a isso e exigir uma militância uniforme é limitar e enfraquecer a organização política.
8. Há, por exemplo, aqueles que estão dispostos a militar em uma área temática: saúde, educação, cultura, e não em um núcleo de seu centro de trabalho ou em uma estrutura territorial. Há outros que se sentem chamados a militar apenas em determinadas conjunturas (eleitorais ou outras) e não estão dispostos a fazê-lo durante todo o ano, embora em momentos-chave da luta política sempre se conta com eles, e em sua vida cotidiana promovem o projeto e os valores da esquerda.
9. Tentar enquadrar as pessoas dispostas a militar em um único padrão, igual para todos, em uma militância de vinte e quatro horas por dia e sete dias por semana, é deixar de fora todo esse potencial militante.
10. Temos que criar um tipo de organização que acomode os mais diferentes tipos de militância, onde se admitam diversos graus de formalização. As estruturas orgânicas devem abandonar sua rigidez e flexibilizar-se para otimizar este compromisso militante diferenciado, sem que se estabeleça um valor hierárquico entre os diferentes níveis de compromisso.
11. Para facilitar esta militância diferenciada torna-se necessário então adaptar a estrutura e os organismos de base à natureza do meio em que se desenvolve a atividade militante.