Trechos retirados do sétimo capítulo do livro “A Destruição da Razão” de György Lukács, traduzido por Bernard Herman Hess, Rainer Patriota e Ronaldo Vielmi Fortes, publicado pelo Instituto Lukács.
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O darwinismo social (Gumplowicz, Ratzenhofer, Woltmann)
Para poder se converter na ideologia dominante da reação extrema, a teoria das raças precisava se despojar de suas vestes abertamente feudais e assumir o disfarce e a máscara da mais moderna “cientificidade”. Porém, não se tratava simplesmente de uma mudança de vestimenta. Isso era apenas a expressão da mudança decisiva do caráter de classe da nova teoria das raças. Claro está que também aqui ela é, em sua forma mais moderna, a defesa pseudobiológica dos privilégios de classe. Agora, porém, não se trata mais simplesmente da nobreza histórica –como ainda era o caso, predominantemente, em Gobineau –, mas sim, de um lado, dos privilégios das raças europeias frente às raças de cor (e isso já existia em Gobineau) e, além disso, dos povos germânicos, e principalmente do povo alemão, sobre os demais povos da Europa (ou seja, de uma ideologia da dominação mundial alemã); e, de outro lado, dos direitos senhoriais da classe capitalista de cada nação específica, ou seja, do nascimento de uma “nova nobreza” e não simplesmente da conservação da aristocracia histórico feudal.
Essa mudança de rumo vai sendo preparada gradualmente. É preciso meio século para que a nova teoria das raças encontre em Chamberlain um teórico tão relevante como a antiga teoria em seu período final havia encontrado em Gobineau.
Como fase intermediária entre essas duas etapas da teoria das raças, o chamado darwinismo social desempenha um papel decisivo. A teoria de Darwin exerce uma influência extraordinária sobre todos os desenvolvimentos da ciência e da concepção de mundo na segunda metade do século XIX. As obras de Darwin fecundaram e estimularam extraordinariamente a ciência progressista. Sempre que cientistas e filósofos autênticos deram-se ao trabalho de assimilar e desenvolver o conteúdo real da obra de Darwin, foram feitos grandes progressos científicos. Eis o que Engels escreve a Marx: “Ademais, te direi que Darwin, que estou lendo no momento, é verdadeiramente magnífico. A teleologia, que ainda não havia sido abalada em um de seus pilares, cai agora por terra. Fora isso, jamais havíamos assistido a uma tentativa tão grandiosa de demonstrar o desenvolvimento histórico da natureza, quanto mais não seja, com tanto êxito”.E Marx, por sua vez, em termos parecidos se expressa em carta a Engels: “Embora escrito em inglês tosco, este é o livro em que se encontram os fundamentos de nossa concepção no terreno da história natural”.
É preciso ter em conta que a influência de Darwin se produz numa época de crise geral das ciências sociais e entrelaçada com essa crise. De um modo geral, os ideólogos burgueses e reacionários combatem o darwinismo, sobretudo as consequências que dele se derivam no terreno filosófico e no da visão de mundo, mas também sua metodologia e seus resultados no campo das ciências naturais. A luta da ideologia burguesa reacionária é travada, antes de tudo, contra a teoria da evolução, portanto, precisamente contra o ponto que Engels destacava com razão como o maior progresso alcançado pela obra de Darwin. Assim, pois, a linha fundamental das ciências burguesas e, sobretudo, da filosofia burguesa, é uma linha antidarwinista.
Mas isso não é obstáculo para que o darwinismo puramente fraseológico desempenhasse um papel, provisoriamente, nada desprezível nas ciências sociais. Criticando um livro de F. A. Lange, Marx denuncia com traços muito enérgicos essa nova tendência incipiente que se entrevê nas ciências sociais: “O senhor Lange, com efeito, fez uma grande descoberta. Toda a história deve se reduzir, segundo ele, a uma grande lei natural única. Essa lei natural é a frase (pois a expressão de Darwin se torna aqui uma mera frase) – “struggle for life”, a “luta pela existência”, frase cujo conteúdo não é outro que a lei malthusiana da população ou, melhor dito, da superpopulação. Portanto, ao invés de analisar struggle for life tal como esta se apresenta historicamente sobre as diferentes e determinadas formas sociais, nada melhor do que enquadrar toda luta concreta na frase struggle for life e converter essa frase na malthusiana „fantasia da população”. É preciso reconhecer que esse é um método muito insinuante para a cultura e para a preguiça mental que se dão ares de grandeza e querem se fazer passar por ciência”.
Detenhamo-nos, por um momento, no exame de quais são as condições gerais que determinam o nascimento do chamado darwinismo no campo da sociologia. A economia clássica se dissolveu, sobretudo na Inglaterra, em consequência das lutas de classes. Sua conversão em economia vulgar acarreta consequências que não se limitam ao campo econômico no sentido estrito. Não é casual que precisamente nessa época a sociologia se separe da economia para se constituir como disciplina autônoma. (E nada muda decisivamente a situação o fato de que, em Comte, essa separação tenha se dado em relação ao utopismo de Saint-Simon; Comte separa a sociologia de seus fundamentos econômicos da mesma forma como mais tarde faria Spencer na Inglaterra). A nova sociologia, que renuncia ao seu fundamento econômico metodologicamente necessário, busca encontrar o fundamento nas ciências da natureza para sua suposta objetividade e legalidade. Evidentemente, tal fundamentação da sociologia por meio da química, da biologia etc. só pode ser implementada daquele modo como, conforme explicou Marx, Lange faz com Darwin, quer dizer, convertendo-se os resultados das ciências da natureza em frases abstratas. Esse é o procedimento de Comte, Spencer e, na Alemanha, o da chamada sociologia orgânica. É óbvio que, com semelhante orientação, a sociologia não poderia permanecer imune à influência profunda da ação mundial da teoria darwinista.
Essa influência responde evidentemente a motivos mais profundos que meras demandas metodológicas da sociologia burguesa. No último quarto do século XIX, a ideologia burguesa entra em uma nova fase da apologética do capitalismo. A teoria da harmonia da economia vulgar, assim como a teoria do crescimento orgânico na sociologia, que se dava ares de ciência biológica, revelaram-se insuficientes, sobretudo para lutar contra as ideias socialistas, mostrando-se ineficazes entre aqueles vastos círculos de público a que apelava a sociologia burguesa. A razão desse fracasso da teoria da harmonia da economia vulgar e da sociologia orgânica é preciso buscar no recrudescimento das contradições do capitalismo e, juntamente com isso, no recrudescimento das lutas de classes que se revelam cada vez mais violentas e evidenciam a nulidade da teoria da harmonia. De modo que, caso se queira justificar o capitalismo como o melhor sistema econômico e social possível, caso a sociologia –como está obrigada a fazer enquanto ciência apologética burguesa –tenha de conduzir à reconciliação com o sistema capitalista e convencer os indecisos de sua superioridade, então as contradições e sobretudo os lados desumanos do capitalismo não devem ser negados nem apagados, mas, pelo contrário, devem se tornar o ponto de partida da apologética. Dito em poucas palavras, ao passo que até agora a apologética do capitalismo negava os aspectos perversos desse sistema, a nova apologética parte precisamente deles, propondo-se a levar a intelectualidade burguesa a afirmá-los ou, pelo menos, a se irmanar com eles como aspectos supostamente imutáveis, naturais e “eternos”.
Não há dúvida de que o darwinismo fraseológico estava destinado a ser um ponto de apoio extraordinariamente adequado a essa nova forma da apologética. Já vimos como aproximadamente pela mesma época Friederich Nietzsche também se valia de jargões do darwinismo nessa mesma direção. Dada a demanda ideológica tão fortemente sentida, não seria de estranhar que surgissem diversas escolas sociológicas dedicadas a levar a cabo essa nova forma da apologética do capitalismo sobre tais bases pseudodarwinistas. Para esse fim, o darwinismo social oferece as mais diversas possibilidades. Em primeiro lugar, lança as bases para uma concepção “monista”, “científico-natural” da sociologia. A sociedade, vista desse modo, aparece como uma parte perfeitamente homogênea da legalidade cósmica geral. Enquanto Engels abraça o darwinismo por considerá-lo um estímulo à concepção histórica da natureza, essa sociologia se vale de Darwin convertido em frase para desmontar o historicismo nas ciências sociais. Em segundo lugar, por esse caminho se apagam da sociologia não só todas as categorias econômicas, mas também as classes. A “luta pela existência” das raças passa a ocupar seu lugar. Em terceiro, a opressão, a desigualdade, a exploração etc. aparecem aqui como “fatos naturais”, como “legalidades naturais”, e, como tais, inevitáveis e insuperáveis. Com isso se justifica como condizente com a natureza tudo o que o capitalismo tem de terrível. Em quarto lugar, tal sociologia sujeita à legalidade natural torna os homens mais resignados diante do destino capitalista. Gumplowicz formula com grande decisão esse aspecto do darwinismo social. A última palavra da sociologia é, para ele, a concepção da história humana como um processo natural. Essa concepção é a “coroação de toda moral humana, porque predica do modo mais persuasivo possível a necessidade de que o homem se submeta resignadamente às leis naturais, que são as únicas que governam a história”; porque ela é “a moral da resignação racional”. Por fim, essa teoria se apresenta como elevada, objetiva e imparcial, ou seja, suprapartidária, ainda que seus principais ataques sejam dirigidos claramente contra o socialismo e seus partidários. Assim, diz Ratzenhofer, discípulo de Gumplowicz, referindo-se à posição dos diversos partidos ante a sociologia, que os homens de condição privilegiada, assim como os homens oprimidos, veem a sociologia defendida por ele com hostilidade porque “ela necessariamente rouba suas ilusões acerca da possibilidade de que seus desejos se realizem plenamente”.
Esse darwinismo social é um fenômeno internacional e vai muito além da sociologia em sentido estrito. Basta mencionar, por exemplo, a teoria lombrosiana do “criminoso nato”. É certo que essa orientação não chegou nunca a se tornar a única dominante na sociologia burguesa. Os sociólogos burgueses mais capazes e melhor formados metodologicamente não tardaram a se dar conta de tudo o que havia de insustentável e fraseológico nesse sensacional método novo. Houve muita polêmica no debate internacional. O darwinismo social não foi combatido somente pelos representantes do velho pensamento liberal, que, fiéis à teoria da harmonia, tentavam evitar, ao menos no campo da ideologia, todo tipo de violência e se manifestavam categoricamente contra o “maquiavelismo” do darwinismo social. Assim, por exemplo, Novicow repudiava tanto o “banditismo” “de cima” (Bismarck) como o “de baixo” (Marx e a luta de classes). Em última instância, ele caminha junto com seus adversários darwinistas, com a diferença de que combate o marxismo por outros métodos.
Também repudiam veementemente o darwinismo social alguns sociólogos que fomentam em outros aspectos o desenvolvimento ideológico do período imperialista. É o caso sobretudo de F. Toennies, que escreve: “Nenhum argumento a favor ou contra a livre concorrência, a favor ou contra os cartéis e os trustes, a favor ou contra as estatais e os monopólios, a favor ou contra o capitalismo ou o socialismo, existe latente entre os princípios da teoria da descendência como em um saco de desejos; de sua aplicação, não se deve temer nem esperar nada de excepcional… Há nesses esforços uma nítida cor de ridículo, designando um baixo nível de pensamento científico, igual aos argumentos falsos dos negros com seus adornos”.
Gumplowicz é, em língua alemã, o representante típico do darwinismo social que fez escola. Esse sociólogo, e mais ainda seu discípulo Ratzenhofer, parte da absoluta identidade e coincidência qualitativa dos processos operados na natureza e na sociedade. Gumplowicz define a sociologia como a história natural da humanidade e comenta esse ponto de partida metodológico dizendo que a missão da ciência da natureza é “explicar os processos da história mediante a ação de leis naturais imutáveis”.1Ratzenhofer não nos diz claramente como se deve interpretar isto. Vamos dar apenas alguns exemplos para ilustrar o método. “As leis mais elevadas da química devem ser consideradas como concepções adequadas também para leis sociológicas…A maior ou menor afinidade mútua dos elementos ou sua repugnância a certas combinações são fenômenos casualmente idênticos e não simplesmente parecidos com as paixões na vida social, como o amor e o ódio”.
Gumplowicz e Ratzenhofer são em todos os modos fenomênicos e exteriores de suas tendências a oposição polar de Gobineau: cientistas fecundos que se dedicam a um campo particular por oposição à fantasia estéril de Gobineau, rigorosos monistas com fundamento nas ciências da natureza em oposição à ortodoxia católica deste etc. No entanto, há um traço fundamental comum entre o método “biológico” daqueles e o deste: o fenômeno social com a ajuda da analogia pseudocientífica natural resulta numa legalidade aparente. Pode-se ver aqui uma determinada tendência que mais tarde se tornará visível no fascismo: a apoditicidade das conclusões baseadas exclusivamente em analogias, muitas vezes de tipo absolutamente superficial, que nada dizem, nem nada demonstram, e que não encerram de modo algum força realmente probante.
Com esse suposto método científico-natural, o darwinismo social suprime a história. O homem nunca mudou no decurso histórico. “É preciso abandonar – diz Gumplowicz – a vã ilusão de que o homem de hoje, –o civilizado!! –, seja, por sua natureza, impulsos e demandas, por suas capacidades e qualidades espirituais, distinto de sua situação originária”. Desse modo, a sociologia tornada darwinista não só elimina todo fator econômico do conhecimento da sociedade, mas também todo fator social. Isto é metodologicamente necessário. Se a sociologia se baseia na biologia ou na antropologia, ela não pode admitir nenhuma mudança essencial, menos ainda um progresso. As mudanças que conhecemos ocorridas no homem ao longo da história não são mudanças de tipo biológico, mas social. A colocação biológica do problema implica, portanto, que aquilo que se declara essencial não se encontra sujeito a nenhuma mudança, a nenhum desenvolvimento. Também isso constitui um importante trabalho preparatório para a concepção fascista da história.
Com ajuda da lei da conservação de energia, também convertida em mera frase, Gumplowicz converte esse anti-historicismo numa “lei cósmica”. Nas suas palavras: “Pois do mesmo modo que nunca podem se dissipar as forças que operam no resto da natureza, cuja soma se transforma talvez em forças de outro tipo, mas que nem por isso diminuem quantitativamente, assim também ocorre no campo do processo da natureza social. A soma das forças sociais que operam no âmbito da humanidade desde os tempos mais remotos provavelmente não diminui nunca. Em épocas passadas, essas forças se manifestavam nas inúmeras guerras entre as hordas e nas rivalidades entre as tribos –com o desenvolvimento do processo social em diferentes campos, com o progresso dos amalgamentos sociais e do crescimento da cultura, aquelas forças não se perdem, apenas se manifestam sob outras formas. A soma das explorações mútuas levadas a cabo em cada comunidade social específica talvez não se reduza nunca, ainda que se realizem às vezes de outras formas. Assim, vemos que na Europa de hoje se travam, quanto ao número, menos guerras que em séculos anteriores, mas a magnitude e a importância de cada uma delas (como a guerra franco-alemã, a russo-turca ou a russo-japonesa) compensam o número de guerras do passado”. E, dessa suposta sujeição à legalidade, segue-se, para Gumplowicz, o fato de que “a massa dos organismos que vivem sobre a terra é sempre e necessariamente a mesma e está condicionada pelas relações cósmicas de nosso planeta…Se aumenta aqui, diminui ali necessariamente”. De modo que a sociologia monista desse pseudodarwinismo acaba desembocando num malthusianismo interpretado em termos cósmicos.
Daí se segue, para o darwinismo social, em primeiro lugar, que não existe nenhum progresso para a humanidade com um todo, no máximo no interior de um determinado mundo cultural. Gumplowicz é, nesse ponto, o precursor da teoria dos ciclos culturais de Spengler. Segundo ele, “o progresso só é concebível dentro da trajetória de um mundo cultural à parte que a cada vez se inicia novamente e é levada até o fim”.1Não existe, portanto, uma história unitária da humanidade. Como se pode ver, a rejeição da história universal operada por Spengler e Chamberlain tem raízes profundas nas demandas ideológicas da burguesia imperialista. A negação da história universal surge em sistemas exteriormente muito distintos e até metodologicamente contrapostos. Gumplowicz ensina “que não podemos chegar a ter a menor ideia do desenvolvimento da humanidade como um todo unitário, na medida em que não temos uma representação coerente sobre o sujeito de tal desenvolvimento”. O desenvolvimento no interior de cada mundo cultural é, em Gumplowicz, como o será mais tarde em Spengler e na teoria das raças desenvolvida, um ciclo: “toda nação, ao chegar a sua fase cultural mais elevada, marcha para a decadência, cujo caminho é aberto pelos primeiros bárbaros”. Não é difícil perceber que, também aqui, estamos diante de meras analogias, a despeito da pretensão de se conferir apoditicidade a elas. Gumplowicz, como mais tarde Spengler, aplica as fases da vida biológica (juventude, maturidade, velhice) aos mundos culturais, respectivamente aos ciclos da cultura. Sua base para isso é a analogia pura e simplesmente. Vemos aqui a oposição aguda entre a influência progressista e a influência reacionária do darwinismo. Enquanto as descobertas de Darwin ajudaram Marx e Engels a compreender a natureza e a sociedade como um grande processo histórico unitário, o darwinismo social destrói teoricamente a concepção de uma história geral unitária da humanidade conquistada pela ciência burguesa progressista.
Esse método místico, com uma máscara monista que joga com analogias, conduz a conclusões totalmente falsas, mesmo onde seu ponto de partida originário seja um fato da observação social que corresponde à realidade. Assim, por exemplo, Gumplowicz observa que o nascimento do Estado guarda uma relação íntima com a desigualdade social entre os homens, mas na medida em que não busca para essa desigualdade causas econômicas e sim causas cósmicas tomadas de uma pseudociência da natureza, deduz-se uma mística reacionária de uma observação certeira. E assim surge a afinidade estreita do darwinismo social com a teoria das raças reacionária, uma vez que, para Gumplowicz, assim como para Gobineau, a “desigualdade originária” dos homens constitui o ponto de partida. Ratzenhofer diz, não menos categoricamente que Gobineau, bem como a teoria das raças posterior, que “a desigualdade é… o natural, a igualdade, o antinatural e o impossível”.
E da mesma forma como em Gobineau, essa mistificação dos dados fatuais econômicos baseada em pseudofundamentos tomados das ciências naturais responde a uma tendência geral antidemocrática. A grande diferença consiste em que Gobineau renova o velho antidemocratismo da aristocracia feudal, ao passo que o darwinismo social expressa já o antidemocratismo da burguesia, do capitalismo vitorioso, e que ganha sua maior força, como é natural, em países como a Alemanha e o Império austro-húngaro, nos quais essa dominação econômica não fora precedida poruma revolução burguesa vitoriosa. Daí que Gumplowicz se detenha na investigação do destino que tiveram as doutrinas da igualdade ao longo da história, identificando de um modo muito característico como tendências absolutamente iguais, tal como o fará mais tarde a teoria das raças com o judaísmo, o maometismo, a Igreja cristã e a Revolução Francesa. Tendências que, segundo ele, estavam todas condenadas ao fracasso “pela simples razão de que tais doutrinas são contrárias à natureza humana, de modo que seu domínio não deixa de ser no melhor dos casos puramente nominal…O que de modo efetivo e duradouro domina com supremacia o mundo são outras teorias e outros princípios, completamente distintos, em sintonia maior com a natureza elementar das massas. Não são as doutrinas de Buda, nem as palavras de Cristo, nem os “princípios” da Revolução Francesa que ressoam acima do alarido da luta dos povos –o grito que prevalece é este: aqui os arianos, aqui os judeus, aqui os mongóis, aqui os europeus, aqui os asiáticos, aqui os brancos, aqui as pessoas de cor, aqui os cristãos, aqui os muçulmanos, aqui os germânicos, aqui os eslavos e assim sucessivamente, em mil variações distintas. Sob tais gritos de guerra se faz a história, derrama-se a torrente de sangue dos homens, de modo a se cumprir uma lei natural histórico-universal, que, no entanto, estamos muito distantes de compreender”.
Gumplowicz ainda está muito distante, como se pode perceber, da afirmação entusiasta desse “processo natural”; pelo contrário, ele recomenda, como vimos, uma “resignação racional”. Porém, com sua construção biologicista primitiva da história, com sua mistificação dos fatos da luta de classe, pela qual esta é convertida numa luta de raças regida por uma “lei natural”, com o propósito antidemocrático que determina toda essa concepção, ele prepara a concepção fascista da história. Não é por acaso, pois, que ele reiteradamente teça grandes elogios, apesar de certas reservas, a reacionários renomados que sustentam semelhante concepção, a exemplo de Haller, Lombroso ou Gobineau. Essa intenção antidemocrática se manifesta, no entanto, com maior força em seu discípulo Ratzenhofer: “as palavras de ordem: liberdade, igualdade e internacionalismo são apenas fantasmas enganosos…A ideia de revolução é anticientífica”.
Partindo desses pressupostos compreende-se facilmente porque o problema do Estado ocupa o centro na sociologia de Gumplowicz e de sua escola. O Estado é, sobre o fundamento da desigualdade “natural” dos homens, o demiurgo da divisão social do trabalho. Essa concepção dirige-se em primeiro lugar contra as pretensões da classe trabalhadora. Trata-se de demonstrar “que o Estado, como a ordenação da desigualdade, é a única organização possível entre os homens”.2Com essas teorias Gumplowicz não só separa totalmente a sociologia da economia, como também procura, ademais, apequenar essa disciplina que ele naturalmente só conhece na forma da economia vulgarizada de seu tempo, convertendo-a numa ciência particular específica por oposição à sociologia universal. Também nessa tendência de depreciação da economia o darwinismo social é um precursor da ideologia reacionária do período imperialista. A economia, segundo Gumplowicz, de modo algum pode ter a pretensão de chegar a compreender a sociedade. Ela se ocupa apenas dos fenômenos econômicos. Nas suas palavras, “a essência e a vida de uma sociedade não se reduzem às suas atividades econômicas, do mesmo modo que o homem singular não se limita a suas atividades econômicas. Com muito maior razão a sociologia poderia reivindicar a economia política como uma de suas partes”.
Esse pôr de cabeça para baixo das relações entre o Estado e a economia guarda relação com o problema central do darwinismo social, qual seja, com a tendência de compreender e, com isso, eliminar desde o ponto de vista biológico toda diferenciação social, toda divisão de classes e toda luta de classes. Surge assim em Gumplowicz, que era subjetivamente um intelectual honrado, um profundo conflito pessoal, mas de interesse geral, na medida em que reflete a desorientação teórica e metodológica dessa fase de transição. Ao mesmo tempo revela o quão vulnerável se encontrava a intelectualidade germanófona diante da corrente geral do desenvolvimento reacionário. Dos pressupostos que esboçamos aqui, depreende-se obrigatoriamente a consequência de que a sociologia deve substituir a classe pela raça, especialmente porque a violência é vista como o elemento primário do desenvolvimento do Estado, de modo que a divisão em classes se revela como a dominação de uma raça sobre outra.
Com efeito, em seu primeiro livro, intitulado Raça e Estado, de 1875, que produziu certa comoção, Gumplowicz formula o problema de tal modo que identifica pura e simplesmente raças e classes. No entanto, ao longo de seus trabalhos científicos posteriores, ele percebe cada vez mais claramente que esse pressuposto é insustentável. Ele confessa isso já em sua segunda obra importante, A Luta das Raças, de 1883. Referindo-se ao problema da raça, ele diz: “Tudo é aqui arbitrariedade, aparências e opiniões subjetivas; não se encontra em parte alguma terreno seguro, ponto de apoio firme, resultados positivos”. E como é obrigado a buscar, enquanto monista baseado nas ciências naturais, um mínimo de características objetivas para explicar as diferenças raciais, ele chega às seguintes consequências: “Todas essas medições de crânios dos antropólogos e outras coisas mais fazem um triste papel; disso pode-se convencer todo aquele que já tenha tratado de buscar em semelhantes investigações elementos de juízo sobre os diferentes tipos da humanidade. Tudo aqui se mostra revolto e confuso e as cifras e medidas médias não mostram nenhum resultado tangível. Aquilo que um antropólogo considera como o tipo germânico, se encaixa, segundo outro antropólogo, no tipo eslavo. Existem, entre os “arianos”, tipos mongóis, e a todo momento corre-se o risco de, a partir dos critérios “antropológicos”, confundir os “arianos” com os „judeus‟ e vice-versa”. E até mesmo Ratzenhofer, que, em muitos aspectos reacionários, vai mais além que o mestre e vê nos negros, por exemplo, concordando com Gobineau, escravos inatos, é obrigado a reconhecer nesse terreno a ausência de fundamentos científicos: “As características raciais –diz ele –oferecem evidentemente um fundamento para a conduta social, mas só em casos muito raros é possível mostrá-las em indivíduos singulares”.
No entanto, como Gumplowicz e sua escola repudiam a base econômica da luta de classes, o conhecimento de que a problemática das determinações das raças é algo muito problemático tem necessariamente que levá-los a um ecletismo confuso e obscuro, sobre o qual o desenvolvimento da ideologia reacionária do período imperialista simplesmente ignora depois de ter sido fecundada pelas sugestões do darwinismo social. Revelador do caráter de transição do fenômeno Gumplowicz na teoria racial é a conversação sustentada por um representante juvenil do darwinismo social, chamado Woltmann, e que o próprio Gumplowicz reproduz numa edição posterior de sua Luta das Raças. Woltmann reprova o mestre de ter se desviado do caminho correto, aquele trilhado em sua primeira obra, na medida em que diluiu o conceito correto de raça. Gumplowicz se defende nos seguintes termos: “Surpreendia-me… já em minha pátria de origem, com o fato de que as diferentes classes singulares da sociedade representavam raças totalmente heterogêneas; via ali a nobreza polaca que se considerava com razão como procedente de um ramo completamente distinto daquele dos camponeses; vi a classe média alemã e com ela os judeus; tantas classes quanto raças…Mas tanto as experiências e conhecimentos que fui reunindo nos anos seguintes, quanto o amadurecimento da minha reflexão, me ensinaram que nos países ocidentais da Europa, as diversas classes singulares da sociedade já há muito que não representam raças antropológicas…E, no entanto, elas se enfrentam entre si como raças distintas travando entre si uma luta social de raças. Em minha Luta das Raças, o conceito antropológico de raça é abandonado, mas a Luta das Raças continua a mesma, ainda que de há muito não se trate mais de conceito antropológico de raça. Mas a luta de raças importa, na medida em que explica todos os fenômenos relacionados ao Estado, como seu desenvolvimento e a gênese do direito”. Não deixa de ser característico que Gumplowicz, que, desde o ponto de vista objetivo, ou seja, segundo a própria essência do problema, abandona por completo aqui a Teoria Social da raça, preservando-a, todavia, terminologicamente, o que significa que continua fiel a suas consequências no que se refere à visão de mundo.
Woltmann, por sua vez, representa uma fase mais avançada da transição para o desdobramento reacionário do biologicismo. Sua posição específica consiste no fato de que ele, como social-democrata (ele foi um revisionista que tentou estabelecer o vínculo de Marx com Darwin e Kant), pôde dar novos passos essenciais no caminho da adaptação da teoria das raças às necessidades imperialistas. Ele desenvolve a ideia expressa por Gumplowicz de que as lutas de classes são essencialmente lutas de raças, purificando-a das reservas e inconsequências de seu mestre, e assumindo, consequentemente, sob uma forma modificada e sintonizada com os novos tempos, certos raciocínios de Gobineau, bem como elementos da teoria francesa das raças que vinham sendo desenvolvidos nesse meio tempo (Lapouge etc.).
Woltman traz de seu passado social-democrata a terminologia do desenvolvimento social, da estrutura social, mas transferindo todas essas categorias para o plano biológico, para o campo da teoria das raças. Assim, por exemplo, a mais-valia é para ele um conceito biológico. A divisão social do trabalho “se baseia… na desigualdade natural das qualidades físicas e espirituais”. Os antagonismos de classes são “antagonismos de raça latentes”. E sobre essa base ele repõe de modo diferente a glorificação revisionista do capitalismo no sentido de considerá-lo como a melhor ordem social para seleção. Desnecessário dizer que Woltmann se converte num defensor ideológico também da opressão colonial. Segundo ele, é “inútil tentar fazer com que os negros e os índios se tornem capazes de uma autêntica civilização”; e afirma que “os brancos serão sempre a raça senhorial nas colônias”. E renova a doutrina de Gobineau com base no darwinismo social, agora convertida na ideologia do imperialismo alemão, ao sustentar que “a raça nórdica é a portadora inata da civilização universal”.
Sob a máscara enganosa de uma Teoria Social, Woltmann representa a teoria das raças imperialista radicalmente reacionária com todas as suas consequências. E isso quanto à metodologia em seu todo(recordemos aquelas observações sobre a igualdade a que nos referimos mais acima). Assim como Gumplowicz, repudia o desenvolvimento unitário da humanidade. É falso “falar de um desenvolvimento do gênero humano, pois o que se desenvolve são as diferentes raças específicas”. Naturalmente, ele também se dá conta de que na realidade historicamente dada não existem raças puras, de que todas as características psicológicas em que se apoiam as diferenças raciais são extremamente incertas. Mas, assim como Glumplowicz, em vez de reconhecer honestamente essa contradição, trata de evitá-la por meio de volteios demagógicos; assim, ele intercala –de modo a suplantar o fatalismo de Gobineau –o conceito de “segregação” das raças (ideia que mais tarde se tornará importante para Hitler e Rosenberg).A perspectiva otimista fortemente acentuada, em oposição a Gobineau, surge por meio da enérgica afirmação da importância do melhoramento artificial da raça mediante a mistura do cruzamento com a endogamia. Assim, pois, apesar de todo esse incremento da terminologia sociológica e biológica, Woltmann não consegue se sobrepor à arbitrariedade de Gobineau: por um lado, a mistura das raças é a coisa mais daninha e funesta que se pode imaginar, por outro, os “maiores benefícios” para a raça se obtêm precisamente do cruzamento. O modo como ele suplanta o pessimismo de Gobineau consiste “na esperança modesta…de poder conservar e salvaguardar a existência nobre e saudável da raça atual por meio de medidas de higienização e políticas raciais”. Logo veremos que essa “esperança modesta” se transformou nada mais nada menos do que no sistema despótico e bárbaro do hitlerismo.
Mas Woltmann não chegou a alcançar uma influência decisiva em seu tempo. E não porque fosse “cientificamente” melhor ou pior que os teóricos das raças anteriores ou posteriores a ele, mas pelo fato de que na Alemanha de seu tempo faltava ainda a base político-social necessária para a difusão prática da teoria das raças. Essa falta de influência tornou-se mais proeminente em decorrência da nuance especial que Woltmann representava na teoria das raças. Se os teóricos das raças franceses, a exemplo do já mencionado Lapouge, podiam apenas sonhar com a dominação dos arianos – ultrapassando o pessimismo de Gobineau –e pintar as perspectivas catastróficas do predomínio russo sobre a Europa, de uma coalizão europeia sob a égide dos judeus etc…; se os teóricos das raças alemães, a exemplo de O. Ammon, com sua propaganda tosca abertamente não científica do predomínio da Alemanha, só podiam impressionar os “pangermanistas” extremos, Woltmann se condena à ineficácia nos círculos reacionários em virtude de determinadas tendências pelas quais tenta estabelecer um compromisso entre seu passado revisionista e a teoria das raças. Compactua com todos os reacionários da luta contra a ideia da igualdade entre os homens, contra a democracia. Mas não adere, por exemplo, ao julgamento segundo o qual a Revolução Francesa foi uma rebelião de escravos da raça inferior contra a aristocracia (contra os arianos, os francos), tampouco à concepção do movimento dos trabalhadores como uma sublevação de gente racialmente inferior. Referindo-se à Revolução Francesa, ele diz: “Os líderes da revolução eram quase todos eles germânicos… A revolução alçou ao poder simplesmente a outra camada da raça germânica. Seria um erro acreditar que, na França, o domínio foi parar nas mãos do “terceiro estado”. Quem subiu ao poder foi apenas a burguesia, ou seja, a camada germânica superior dos burgueses, do mesmo modo que no movimento atual dos trabalhadores, do ponto de vista antropológico, as camadas germânicas superiores da classe trabalhadora avançam na direção do poder e da liberdade”. Essa combinação de uma fundamentação revisionista da ascensão da aristocracia operária com a glorificação da teoria das raças do germanismo não podia obter uma margem ampla de influência nos ciclos reacionários da Alemanha da época. Nenhum reacionário alemão podia se satisfazer facilmente com a concepção da Revolução Francesa como uma “façanha do espírito germânico” e menos ainda com a interpretação “germânica” do movimento dos trabalhadores. Essas hesitações e inconsequências fizeram da teoria das raças de Woltmann um episódio puramente de transição, ainda que muitas de suas sugestões viessem a frutificar mais tarde no fascismo.