Betinho – Algumas categorias para a análise da conjuntura

Em memória de Herbert José de Souza (Betinho) e Cidona do MST de Jequitinhonha.

Capítulo retirado do livro “Análise de Conjuntura”, disponível aqui.


Para se fazer análise de conjuntura são necessárias algumas ferramentas próprias para isso. São categorias com que se trabalha:

– Acontecimentos

– Cenários

– Atores

– Relação de forças

– Articulação (relação) entre “estrutura” e “conjuntura”

Cada uma destas categorias merece um tratamento à parte, mas no conjunto elas poderiam ser estudadas como elementos da “representação da vida” ou uma peça de teatro. Essas categorias, por exemplo, foram utilizadas por Marx em seus estudo da revolução francesa no “18 de Brumário” que constitui um dos mais brilhantes estudos de uma situação política (uma conjuntura) já realizados.

Tentamos ver um pouco mais o sentido de cada uma.

A) Acontecimentos

Devemos distinguir fato de acontecimento. Na vida real ocorrem milhares de fatos todos os dias em todas as partes, mas somente alguns desses fatos são “considerados” como acontecimentos: aqueles que adquirem um sentido especial para um país, uma classe social, um grupo social ou uma pessoa.

Alguém pode cair de um cavalo e isso se constitui somente num fato banal, mas se esta é a queda de um presidente, provavelmente será um acontecimento. O nascimento do filho de um rei é um acontecimento para o país, o nascimento do filho de um operário é um acontecimento para a família. O beijo pode ser um fato comum, mas o beijo de Judas foi um acontecimento.

Existem ocorrências que se constituem em “acontecimentos” tais como greves gerais, eleições presidenciais (principalmente se são diretas…), golpes militares, catástrofes, descobertas científicas de grande alcance. Estas ocorrências por sua dimensão e seus efeitos afetam o destino e a vida de milhões de pessoas, da sociedade em seu conjunto.

Na análise da conjuntura o importante é analisar os acontecimentos, sabendo distinguir primeiro fatos de acontecimentos e depois distinguir os acontecimentos segundo sua importância. Essa importância e peso são sempre relativos e dependem da ótica de quem analisa a conjuntura, porque uma conjuntura pode ser boa para alguém e péssima para outros: um ladrão que chega num lugar policiado vai verificar que a conjuntura está ruim para ele naquele dia, a mãe que chega na praça com seu filho vai pensar o contrário.

A importância da análise a partir dos acontecimentos é que eles indicam sempre certos “sentidos” e revelam também a percepção que uma sociedade ou grupo social, ou classe tem da realidade e de si mesmos.

Identificar os principais acontecimentos num determinado momento, ou período de tempo, é um passo fundamental para se caracterizar e analisar uma conjuntura.

b) Cenários

As ações da trama social e política se desenvolvem em determinados espaços que podem ser considerados como cenários. Ouvimos sempre falar nos cenários da guerra, cenários da luta. O cenário de um conflito pode se deslocar de acordo com o desenvolvimento da luta: passar das ruas e praças para o parlamento, daí para os gabinetes ministeriais e daí para os bastidores… Cada cenário apresenta particularidades que influenciam o desenvolvimento da luta e muitas vezes o simples fato de mudar de cenário já é uma indicação importante de uma mudança no processo. A capacidade de definir os cenários onde as lutas vão se dar um fator de vantagem importante. Quando o governo consegue deslocar a luta das praças para os gabinetes já está de alguma forma deslocando as forças em conflito para um campo onde seu poder é maior. Daí a importância de identificar os cenários onde as lutas se desenvolvem e as particularidades dos diferentes cenários.

Numa ditadura militar os cenários do poder e da luta contra esse poder serão necessariamente diferentes dos cenários de uma sociedade democrática. Numa, talvez o quartel; noutra, o parlamento, as ruas e as praças.

c) Atores

Outra categoria que podemos usar na análise de conjuntura é a de atores.

O ator é alguém que representa, que encarna um papel dentro de um enredo, de uma trama de relações. Um determinado indivíduo é um ator social quando ele representa algo para a sociedade (para o grupo, a classe, o país), encarna uma ideia, uma reivindicação, um projeto, uma promessa, uma denúncia.

Uma classe social, uma categoria social, um grupo podem ser atores sociais.

Mas a ideia de “ator” não se limita somente a pessoas ou grupos sociais. Instituições também podem ser atores sociais: um sindicato, partidos políticos, jornais, rádios, emissoras de televisão, igrejas.

d) Relação de forças

As classes sociais, os grupos, os diferentes atores sociais estão em relação uns com os outros. Essas relações podem ser de confronto, de coexistência, de cooperação e estarão sempre revelando uma relação de força, de domínio, igualdade ou de subordinação. Encontrar formas de verificar a relação de forças, ter uma ideia mais clara dessa relação é decisivo se se quer tirar consequências práticas da análise de conjuntura. Algumas vezes essa relação de forças se revela através de indicadores até quantitativos, como é o caso de uma eleição: o número de votos indicará a relação de forças entre partidos, grupos e classes sociais.

Outras vezes devemos buscar formas de verificação menos “visíveis”: qual é a força de um movimento social ou político emergente? Como medir o novo, aquilo que não tem registros quantitativos?

Outra ideia importante é a de que a relação de forças não é um dado imutável, colocando de uma vez por todas: a relação de forças sofre mudanças permanentemente e é por isso que a política é tão cheia de surpresas: um candidato, um empresário, um partido político podem achar que mantém uma relação de superioridade e quando são chamados a demonstrar sua “força” percebem que a relação mudou e que a derrota ou vitória devem ser explicadas depois…

e) Análise de fatos, eventos tendo como pano de fundo as “estruturas”, ou articulação entre estrutura e conjuntura

A questão aqui é que os acontecimentos, a ação desenvolvida pelos atores sociais, gerando uma situação, definindo uma conjuntura, não se dão no vazio: eles têm relação com a história, com o passado, com relações sociais, econômicas e políticas estabelecidas ao longo de um processo mais longo. Uma greve geral que marca uma conjuntura é uma acontecimento novo que pode provocar mudanças mais profundas, mas ela não cai do céu, ela é o resultado de um processo mais longo e está situada numa determinada estrutura industrial que define suas características básicas, seu alcance e limites. Um quadro de seca no Nordeste pode marcar uma conjuntura social grave, mas ela deve se relacionada à estrutura fundiária que, de alguma maneira, interfere na forma como a seca atinge as populações, a quem atinge e como.

A isso chamamos relacionar a conjuntura (os dados, os acontecimentos, os atores) à estrutura.

Além de considerar essas categorias, existem outras indicações que devem ser levadas em conta para se fazer uma análise de conjuntura.

É fundamental perceber o conjunto de forças e problemas que estão por detrás dos acontecimentos. Tão importante quanto aprender o sentido de um acontecimento é perceber quais as forças, os movimentos, as contradições, as condições que o geraram. Se o acontecimento aparece diretamente a nossa percepção este pano de fundo que o produz nem sempre está claro. Um esforço e um cuidado maiores devem então ser feitos para situar os acontecimentos e extrair deles os seus possíveis sentidos.

Procurar ver também os sinais de saída para o “novo”, o não-acontecido, o inédito. Tão importante quanto entender aos assinais dos fenômenos novos que começam a se manifestar.

Buscar ver o fio condutor dos acontecimentos. Não se pode afirmar a priori que todos os acontecimentos “acontecem” dentro de uma lógica determinada, segundo um enredo predeterminado. Na realidade, os processos são cheios de sentidos e dinâmicas que escapam ou não estão subordinados a determinações lógicas. Isto, no entanto, não nos impede de procurar, de pesquisar o encadeamento, a lógica, as articulações, os sentidos comuns dos acontecimentos, quando somos capazes de perceber a lógica interna de uma determinada política econômica ficará mais fácil entender o sentido dos decretos, das ações e até mesmo das visitas dos ministros do Planejamento…

Existem duas leituras possíveis dos acontecimentos ou dos modos de ler a conjuntura:

– A partir da situação ou do ponto de vista do poder dominante (a lógica do poder);

– A partir da situação ou do ponto de vista dos movimentos populares, das classes subordinadas, da oposição ao poder dominante.

De modo geral as análises de conjuntura são conservadoras: sua finalidade é reordenar os elementos da realidade, da situação dominante, para manter o funcionamento dos sistema, do regime. Uma análise feita tendo como pressuposto uma correção de rota, mas não de direção fundamental. Esse tipo de análise parte do ponto de vista do poder dominante e, de certa forma, determinará não somente a seleção dos acontecimentos e atores a serem analisados, como atribuirá a estes acontecimentos um sentido afinado com os interesses das classes dominantes. Todo acontecimento é uma realidade com um sentido atribuído, não é um puro fato, mas um fato lido e visto por interesses específicos.

Partir do ponto de vista dos movimentos populares não é, obviamente, inventar situações, acontecimentos e correlações de forças que beneficiem o campo popular ao nível da fantasia e da imaginação dos analistas interessados. É partir dos acontecimentos social e historicamente determinados, existentes, concretos, mas percebe-los, analisa-los sob a ótica dos interesses das classes subordinadas, dado que toda análise de conjuntura se adquire sentido quando é usada como um elemento de transformação da realidade.

A análise de conjuntura deve levar em conta as articulações e dimensões locais, regionais, nacionais e internacionais dos fenômenos, dos acontecimentos, dos atores, das forças sociais.

A importância dos elementos na análise de conjuntura depende de cada situação, de relação ou posição num contexto mais amplo e mais permanente.

A análise de conjuntura de modo geral é uma análise interessada em produzir um tipo de intervenção na política; é um elemento fundamental na organização da política, na definição das estratégias e táticas das diversas forças sociais em luta.

Uma questão chave na análise de conjuntura é a percepção da complexidade e da dificuldade em determinar relações de causalidade de tipo unilinear, simples. Existe um elemento constante de imprevisibilidade em relação à ação política: sua existência, seus efeitos, suas causas. A ação política é em si mesma um elemento da realidade política: é a base da possibilidade de transformações de mudança, do surgimento do novo. Falar de uma lógica da ação é falar também de sua imprevisibilidade.

As categorias “estratégia” e “tática” são também instrumentos úteis para a análise da ação dos diferentes atores sociais. É possível buscar identificar as linhas gerais de ação, as estratégias empregadas por estes atores sociais para conseguir realizar seus objetivos. Poderíamos definir estratégia como a articulação, a definição de um conjunto de meios, de forças, de elementos, tendo em vista realizar objetivos gerais ou “projetos” mais globais que respondem a interesses e objetivos sociais, econômicos e políticos de determinadas forças ou classes sociais.

Se na estratégia observamos ou objetivos e linhas de ação mais gerais, na tática observamos os meios e formas particulares, concretas de ação, tendo em vista a realização de estratégias determinadas. Nem sempre, porém, um acontecimento, ou um conjunto de ações aparentemente articuladas entre si constituem uma tática ou uma parte de uma estratégia. Na sociedade, no processo social, o que acontece não tem que ver necessariamente com uma lógica ou um plano estabelecido. Só as teorias conspirativas ou “estruturalistas” da história acreditam nisso. Por isso, as análises de conjuntura deveriam estar sempre abertas à descoberta de várias possibilidades e alternativas.

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