Dois Brindes e Meio à Neurodiversidade

Janine Booth, 3 de Março de 2019.
Traduzido do inglês por Pedro Côrtes.

Arte da capa por Twisha Patni.

Texto original disponível no blog de Janine Booth.

Notas e comentários entre colchetes do tradutor.


Desde que a ativista autista Judy Singer cunhou o termo “neurodiversidade” há cerca de vinte anos, um grande esclarecimento e uma nova abordagem progressista às experiências e direitos de autistas e de outras pessoas neurologicamente atípicas foram facilitados.

Agora o termo vem sofrendo repercussão negativa, em grande parte reacionária, mas que também foi causada por imprecisões de algumas das representações da neurodiversidade. Aqui eu examino algumas destas questões, no meu estilo ríspido de costume. Este artigo fala mais do autismo do que de outras condições neurodivergentes porque esta é a área em que a maioria destas discussões ocorre.

Eu concluo que uma abordagem eficaz da neurodiversidade é uma que localiza a neurodiversidade em estruturas sociais.

A abordagem da neurodiversidade e seus benefícios

A abordagem da neurodiversidade nos habilitou a suplantar uma visão altamente patologizante e desabilitante[1] de autistas e outras pessoas neurodivergentes por uma visão muito mais empoderadora. Particularmente, nos facilitou a:

  • identificar que a humanidade é naturalmente neurologicamente diversa, que cérebros estruturados diferentemente não são necessariamente defeituosos, e que há boas razões pelas quais estas condições permaneceram no fundo genético humano [human gene pool, termo da biologia genética (N.T.)]
  • progredir de uma “consciência” para uma “aceitação”, e portanto progredir do sentimento de pena para demandas por direitos e igualdade
  • focar em como estruturas sociais e ambientes desabilitam pessoas que são neurologicamente atípicas em vez de presumir que todos os nossos problemas são causados pelos nossos cérebros, e portanto preferir lutar por mudança social do que por curas
  • enfatizar os aspectos positivos de várias condições ao lado de quaisquer deficiências
  • aprender com as experiências de movimentos por reconhecimento de outras diversidades, tais quais as diversidades sexuais ou étnicas.

A abordagem da neurodiversidade conquistou amplo apoio, mas não se tornou a ideologia dominante da sociedade. A visão patológica mais antiga ainda domina nossas estruturas decisórias sociais e políticas.

Mesmo onde as autoridades públicas e os empregadores adotam a linguagem da neurodiversidade, eles geralmente não a aplicam na prática: eles ainda patologizam, discriminam e maltratam pessoas neurodivergentes. A neurodiversidade permanece sendo uma abordagem minoritária, radical, e que oferece esperança por uma transformação social emancipatória.

Obscurecendo condições específicas

“Neurodiversidade” é uma abordagem que compreende que alguns cérebros são desenhados ou estruturados de forma diferente à “norma” da sociedade. Não é um diagnóstico ou uma condição. Não é uma substituta para fazer campanha ou se referir ao TDAH, ou ao autismo, ou a outras condições.

Considere-se o anti-racismo. É imensamente importante. Mas se nós apenas buscarmos o anti-racismo enquanto tema abrangente, nos escapariam as especificidades do preconceito anti-muçulmano, do antisemitismo, do racismo à imigrantes, etc.

De forma semelhante, o termo “LGBT+” é útil para abarcar todo mundo que experiencia opressão por causa de sexualidade e/ou identidade de gênero. Mas o termo consiste de iniciais diferentes significando coisas diferentes. Eu sou parte do movimento LGBT+, mas eu não sou LGBT+. Eu sou uma B.

Eu sou autista, e portanto sou neurodivergente. Usemos a abordagem abrangente onde esta for relevante e a condição específica onde esta for relevante. Por exemplo, pessoas com síndrome de Tourette têm tiques. Afirmar que pessoas neurodivergentes têm tiques seria inespecífico e não ajudaria. Não permitamos que nosso compreensível entusiasmo pela abordagem da neurodiversidade deixe de fora condições e necessidades específicas.

No tema da terminologia, eu não sou – e ninguém é – “neurodiversa”. Um indivíduo não pode ser neurodiverso: apenas populações podem. “Neurodiversa” descreve uma população que contém indivíduos que têm diferentes composições neurológicas entre si. Um indivíduo ou é neurotípico ou é neuroatípico/neurodivergente. Isto pode soar semântico, mas o amplo uso equivocado desta terminologia, mesmo em documentações “oficiais”, revelam uma compreensão equivocada do que é neurodiversidade, localizando a diversidade na identidade do indivíduo ao invés de localizá-la na humanidade como um todo.

Desabilidade ou diferença?

Nossa sociedade define as condições neurodivergentes de forma quase inteiramente negativa. Veja a uso do prefixo “dis-” em seus nomes oficiais: dislexia, transtorno [disorder] do espectro autista, dispraxia, transtorno [disorder] de déficit de atenção e hiperatividade[2]. Um crescente corpo de evidências sugere que pessoas disléxicas são particularmente habilidosas no raciocínio espacial, mas ainda chamam suas estruturas cerebrais de “dislexia” ao invés de, por exemplo, “síndrome do raciocínio espacial aguçado”.

A abordagem da neurodiversidade nos permite entender que indivíduos diferentes podem ter diferentes estruturas cerebrais, que isto ocorre naturalmente, que isto não é necessariamente uma deficiência [impairment], e que os déficits devem ser combinados com as habilidades.

O modelo social da desabilidade nos permite separar deficiência [impairment] da desabilidade [disability], enfatizando que a condição médica pode até ser uma deficiência, mas são as “desabilidades” que são de fato as barreiras que a sociedade coloca no caminho de pessoas com deficiências. Para aplicar o modelo social da neurodivergência, nós precisamos cutucar o modelo para compreender que a estrutura cerebral de algumas pessoas, ainda que não seja deficiente, é suficientemente diferente da “norma” para ser desabilitada pela sociedade. Por exemplo, pode ser mais uma diferença do que um defeito no seu cérebro que faça com que você seja peculiarmente sensível à luz artificial – mas quando sua vida, seu trabalho e outros ambientes usam, todos, luz artificial, então o estresse causado aos seus sentidos te desabilita, às vezes bastante severamente.

(Nota histórica: leis que impediam, por exemplo, mulheres ou judeus de trabalhar em escritórios públicos eram chamadas de “desabilidades legais”[3], baseando-se em um significado de desabilidade como uma barreira que a sociedade impõe para uma categoria de pessoas).

Entretanto, a neurodivergência de algumas pessoas é de fato uma deficiência. O senso comum e a visão do modelo médico enxergam estas pessoas como completamente desabilitadas pelas suas condições neurológicas e ignoram as contribuições significativas que as estruturas e ambientes sociais causam às suas experiências negativas. Mas uma insistência rasa de que uma condição neurodivergente nunca é uma deficiência (ou desabilidade, como é usado o termo na linguagem comum ao invés da noção do modelo social) seria imprecisa. Eu não encontrei nenhum ativista da neurodiversidade que realmente argumente isto, como algumas vezes é alegado, mas um pouco mais de reconhecimento sobre deficiências seria bem-vindo.

Nós podemos desenvolver um “modelo social da neurodiversidade” que afirme que pessoas que são neurologicamente atípicas são desabilitadas pela sociedade – para alguns de nós, completamente pela sociedade; para outros, pela sociedade em conjunção com suas deficiências. É importante não jogar fora os “bebês” modelo social e neurodiversidade junto com a “água suja” do negacionismo da deficiência. Também é importante não jogar fora o “bebê” da deficiência junto com a “água suja” do modelo médico. Eu espero que vocês entendam o que eu quero dizer.

Ignora os severamente afetados?

Ligado ao argumento anterior, uma das principais críticas à abordagem da neurodiversidade é que ela exclui pessoas neurodivergentes (especificamente, as autistas) que são severamente desabilitadas. Alguns críticos da neurodiversidade reclamam da predominância de discussões sobre autismo por autistas mais independentes e vocais e da negligência às necessidades de autistas mais dependentes. Eu acho que há um problema genuíno aqui, apesar de ser injusto atribuí-lo à abordagem da neurodiversidade.

Apesar de alguns reclamarem sobre o desequilíbrio de vozes entre as pessoas autistas mais independentes e as mais dependentes, a realidade é que todas as vozes autistas são pouco ouvidas pela nossa sociedade. Falam mais sobre nós do que nós mesmos falamos, e certamente mais do que nos escutam. Há uma necessidade urgente de amplificar as vozes de autistas e de outros neurodivergentes, e de facilitar a auto-organização para que isso ocorra. Nós podemos minimizar o desequilíbrio interno à esta auto-organização ao garantir máxima acessibilidade, habilitando as pessoas a contribuir em seus formatos preferidos, com quaisquer suportes que precisem.

Muitos dos ativistas mais comprometidos e dos defensores de autistas com altas necessidades que eu conheço são os assim chamados autistas “altamente funcionais”, que têm uma forte crença na abordagem da neurodiversidade. Eles fizeram campanha contra cortes a serviços de suporte, contra o abuso em instituições, pela justiça para aqueles maltratados pelo sistema. Muitos são eles mesmos genitores e cuidadores de pessoas autistas com necessidades muito altas, inclusive aqueles que precisam de cuidados 24 horas por dia. Então a alegação anti-neurodiversidade de que ativistas da neurodiversidade ignoram as pessoas que eles chamam de “severamente autistas” é injusta.

Ademais, quando o termo “neurodiversidade” foi cunhado, sua intenção era abarcar pessoas cujas neurodivergências eram antes uma diferença do que uma deficiência. Parece injusto acusar a neurodiversidade de ser incapaz de incluir algo que não intencionava nem reivindicava incluir.

Entretanto, ideias e termos se desenvolvem ao longo do tempo e “neurodiversidade” não é uma exceção: seu escopo e uso foram ampliados. Junto a isso, distinções entre diferentes pessoas autistas foram reconsideradas e re-rotuladas.

Em 2013, a quinta edição do Diagnostic and Statistical Manual (Manual Diagnóstico e Estatístico, DSM-5) dissolveu a Síndrome de Asperger sob um título Transtorno do Espectro Autista. Apesar de haver um motivo para isso, uma infeliz consequência se seguiu. Conquanto ajude a identificar o que todos os autistas têm em comum, também obscureceu nossas diferenças. Mas esta mudança foi feita pela American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria, APA), não pelo movimento da neurodiversidade. A explicação da APA para a mudança não faz referência à neurodiversidade. Está mais preocupada com critérios de certeza médica do que com a agenda da diversidade.

Aponta o dedo aos pais?[4]

Outra alegação do campo dos anti-neurodiversidade é que os que fazem campanha pela neurodiversidade têm prazer em “apontar o dedo aos pais”.

Pessoas neurodivergentes têm boas razões para criticar os aspectos da parentalidade[5]. De um lado da escala, há os genitores que administram “tratamentos” abusivos a seus filhos (desde enemas de água sanitária até exorcismo) em vão na tentativa de curá-los. Estes são, felizmente, uma minoria bem pequena.

Entretanto, estilos de parentalidade mais comuns também devem ser criticadas. Há uma visão do senso comum de que ter uma criança neurodivergente (particularmente uma criança autista) é uma tragédia e que a prioridade é consertá-la ou normalizá-la. Criticar esta visão e suas consequências às pessoas neurodivergentes é uma ação legítima e progressista.

É compreensível que adultos autistas fiquem com raiva quando vêem pais vexarem publicamente seus filhos autistas ao, por exemplo, postar vídeos de surtos[6]. É legítimo que adultos autistas que foram traumatizados quando crianças por “terapias” (legais e convencionais) falem contra elas. Seria muito melhor que os pais e as outras pessoas ouvissem estas críticas do que invalidá-las como “apontar os dedos aos pais”

Os pais não se valem destas abordagens por serem más pessoas, mas porque eles vivem em uma sociedade que os incentiva a utilizá-las, e que simultaneamente exerce enorme pressão sobre os pais e fornece pouco do precioso apoio. Cuidar de uma criança que com frequência está perturbada, às vezes é violenta, de difícil comunicação, é excluída pela sociedade e altamente dependente é trabalhoso. É mais difícil do que precisaria de fato ser em uma sociedade como a nossa, que dá pouquíssimo suporte ou recursos aos pais e não os ensina nada sobre neurodiversidade.

Esta situação tem raízes na estrutura capitalista da sociedade: o sistema econômico no qual a produção é efetivada na esfera pública mas a reprodução (incluindo a formação de crianças) ocorre na esfera privada. É uma sociedade que trata a procriação como um prazer privado ao invés de como a reprodução da espécie. É também um sistema que organiza a produção voltada para o lucro e considera praticamente tudo como um mercado legítimo, então empresários mercantilizam produtos e tratamentos para os pais independentemente de serem benéficos ou danosos.

Nós precisamos enfrentar este sistema e suas políticas ao invés de vilanizar os pais. Nós podemos fazer isso exigindo regulamentação de todos os tratamentos e banindo tratamentos comprovadamente abusivos; exigindo uma massiva expansão da provisão de creches gratuitas e centradas nas crianças; exigindo educação inclusiva, progressista e bem financiada; exigindo direitos ao invés de caridade; e exigindo apoio adequado aos pais.

Políticas para a libertação

Houve uma oposição coordenada por parte de alguns que estão envolvidos com questões do autismo a uma parte do esboço do Manifesto do Autismo/Neurodiversidade do Partido Trabalhista [Labour Party] – o apêndice, que critica terapias behavioristas. Eu não pretendo tratar desta questão neste artigo.

É notável que não houve oposição semelhante a outras políticas do Manifesto. Claramente, nós não esperamos das pessoas que concordem com elas se estas pessoas não concordam com as políticas que dão base a elas: políticas de anti-austeridade, de inclusão, de direitos, de socialismo. Mas o aparente consenso da esquerda política e das pessoas afetadas por condições neurodivergentes em apoiar o documento principal do Manifesto sugere que nossas demandas-chave são benéficas a toda a gama de pessoas neurodivergentes.

O Manifesto inclui políticas que beneficiarão pessoas com TDAH, dispraxia, dislexia e outras condições, assim como pessoas autistas – e políticas que beneficiarão pessoas onde quer que elas estejam no espectro do autismo e/ou outra neurodivergência.

O Manifesto é baseado em cinco princípios-chave, sendo um deles a abordagem da neurodiversidade. O Manifesto demonstra que a abordagem da neurodiversidade pode ser tanto unificadora quanto inclusiva.

Rumo a uma neurodiversidade materialista

Estes argumentos apontam para a necessidade de compreendermos a neurodiversidade no contexto da sociedade em que as pessoas vivem.

As pessoas são parte de um ambiente físico, natural. Nós também ajudamos a dar forma a este ambiente. Nós tanto existimos em nosso ambiente quanto interagimos com ele – nosso ambiente físico e sensorial e as pessoas que vivem nele conosco.

Nós formamos estruturas sociais e, ao contrário de outras espécies, nós o fazemos de forma bastante consciente. Mas desde os primeiros dias da história humana nós o fizemos de uma forma que divide as pessoas em classes distintas com interesses distintos, com uma minoria governante em posse da maior parte do poder.

Quando olhamos para como os empregadores excluem trabalhadores neurodivergentes, nós estamos considerando uma relação social específica na qual “empregadores” e “trabalhadores” são categorias diferentes de pessoas com diferentes relações com a produção. Quando olhamos para a parentalidade de crianças neurodivergentes, nós estamos considerando a forma com a qual a parentalidade é estruturada como uma atividade privada, como descrita acima. E quando olhamos para a desabilidade, nós estamos considerando como o nosso ambiente físico, sensorial e social, e características de nossos próprios seres em conjunção com este ambiente, criam dificuldades para nós.

Compreender nossa experiência nestes termos nos leva a uma abordagem conhecida como materialista.

Uma compreensão materialista da neurodiversidade, ao invés de uma baseada simplesmente na patologia ou identidade, irá nos possibilitar uma melhor compreensão da opressão de pessoas neurodivergentes. Ela também irá nos possibilitar imaginar e lutar pela reorganização da sociedade que irá incluir e apoiar pessoas neurodivergentes e neurotípicas.

Notas da Tradução


[1]Este tradutor acredita que algumas palavras correntes utilizadas para descrever questões de neurodivergência em português como “deficiência” e “incapacidade” são equivocadas, além de distanciar-se dos termos em inglês como “disability” e “disabled”. Estas palavras em inglês permitem uma compreensão onde a pessoa neurodivergente não é necessariamente uma pessoa transtornada ou deficiente, mas sim des-abilitada (dis-abled) pela sociedade excludente à sua volta. Por este motivo, optei por uma aproximação portuguesa das palavras usadas em inglês.

[2] No original: “Look at the use of the prefix dis/dys in their official names: dyslexia, autistic spectrum disorder, dyspraxia, attention deficit hyperactivity disorder”. “Disorder” pode ser traduzido literalmente como “desordem” (que também possui o prefixo negativo dis/des), mas na terminologia clínica significa “transtorno”.

[3] Em português, o termo técnico seria incapacidade legal ou incapacidade civil. Para este caso em específico, a minha proposta de tradução para “disability” pode causar confusão – leia-se, nesta frase, “incapacidade” no lugar de “desabilidade” (N.T.).

[4] “Parent-bashing”. Poderia ser traduzido literalmente como “surrar os pais”, com sentido de crítica excessivamente severa ou injusta (N.T.).

[5] “Parenting”, a criação, educação e cuidado de crianças efetuada por genitores e cuidadores. Busquei um substantivo mais neutro para substituir “paternidade/maternidade” (N.T).

[6] “Meltdown”, um tipo de surto bastante comum entre autistas quando sobrecarregados mental ou sensorialmente (N.T.).

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