Publicado originalmente em inglês, com o título “Brazilian Support of the Namibian Cause: Difficulties and Possibilities”, em Afrodiáspora , São Paulo, ano 1, n.2, pp. 22-33, maio/set 1983.
Traduzido para o livro “Lélia Gonzalez – Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos” da Editora Zahar, por Carlos Alberto Medeiros.
Transcrição por Andrey Santiago.
Nesta comunicação, pretendo falar principalmente sobre aspectos ideológicos que constituem o plano de fundo das relações Brasil-África, em especial no que tange à África Austral. Esses aspectos se referem diretamente à situação da comunidade afro-brasileira e ao neocolonialismo racista da classe governante em meu país, disfarçado de “democracia racial”. A partir daí defendo a seguinte posição: apenas reforçando os movimentos negros na diáspora é que os movimentos de libertação da África Austral — particularmente a Swapo — poderão contar com o apoio mais efetivo de países como o Brasil. Ou, num contexto mais amplo, o fortalecimento da África é estritamente relacionado ao fortalecimento da diáspora negra.
Brasil: contradições internas e ambivalências externas
O Brasil é o segundo maior país do mundo em termos de população negra, superado apenas pela Nigéria. Segundo os dados do Censo de 1980, os negros (oficialmente chamados de pretos e pardos) constituem 44% de uma população de 120 milhões. Entretanto, para nós que trabalhamos com o movimento negro, assim como para todos os nossos aliados, a população afro-brasileira atinge percentagens muito mais elevadas do que as reveladas pelos dados conservadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Somos, na verdade, a maioria da população. Surge, então, uma questão: por que os dados oficiais mostram apenas 44%? A resposta está no que apresento a seguir.
Duas concepções ideológicas definem, de maneira dúbia e distorcida, a identidade dos negros na sociedade brasileira: por um lado, a noção de democracia racial, e, por outro, a ideologia do branqueamento. A primeira, desenvolvida por Gilberto Freyre na década de 1930, constitui a visão pública e oficial com relação aos negros. De acordo com ela, estes são cidadãos como quaisquer outros e, por causa disso, não são submetidos ao preconceito ou à discriminação. [1] Vou dar alguns exemplos dessa teoria.
Quando o presidente Sekou Touré visitou o Brasil, em fevereiro de 1980, o presidente João Figueiredo declarou que
as afinidades e a relação entre o Brasil e a África colocam as relações entre os dois povos muito acima do que a simples questão dos interesses recíprocos. A contribuição africana está profundamente arraigada em nossa cultura. Os hábitos, costumes, crenças, seu comportamento, tudo faz parte da dimensão interna do Brasil e de seu povo. [2]
Na época da Conferência Internacional sobre Sanções contra a África do Sul, ocorrida em Paris, entre os dias 20 e 27 de maio de 1981, em que estive presente, o representante do governo brasileiro afirmou:
O Brasil tem condenado abertamente o apartheid e a ocupação ilegal da Namíbia pela África do Sul, assim como a invasão militar sul-africana de Angola, Zâmbia e, recentemente, Moçambique.
A posição brasileira advém do nosso respeito aos princípios básicos da Carta das Nações Unidas, assim como do caráter não racial de nossa sociedade e da experiência que temos de integração étnica. O governo brasileiro, portanto, rejeita o apartheid como uma grave violação dos direitos humanos e uma ameaça à paz e à segurança internacionais. Essa ideologia, totalmente estranha à realidade brasileira, é condenada por todos no Brasil, como se pode ver em ocasiões como a comemoração do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, o Dia da Namíbia, o aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e outras solenidades relacionadas ao que aconteceu na luta pela libertação da África do Sul. (Grifo nosso)
O Carnaval e o futebol brasileiros só podem corroborar a noção de democracia racial. Afinal, Pelé é o brasileiro mais famoso do mundo.
Entretanto, quando observamos certos “detalhes”, pode-se ver que as coisas não são bem assim. Por exemplo: raramente se veem afro-brasileiros trabalhando em bancos, restaurantes, companhias aéreas, grandes lojas ou outras profissões que exijam contato direto com o público. A seleção racial já pode ser notada em anúncios de emprego que exigem “boa aparência”. Essa expressão, como sabemos muito bem, significa “Não aceitamos negros”. Não é por acaso que 83,1% das mulheres negras e 92,4% dos homens negros se concentram em ocupações ligadas ao trabalho manual não qualificado. Ou que quatro quintos da força de trabalho negra exerçam ocupações caracterizadas por baixa remuneração e por baixos índices de escolaridade. [3]
Outro “detalhe” a que a comunidade afro-brasileira já está acostumada se refere à violência policial: quando atua em bairros e residências da classe dominante branca, a ação da polícia visa “proteger”; mas em relação às favelas e áreas periféricas, onde se concentra a população negra, a polícia passa para a repressão … Por esse motivo, afro-brasileiros têm medo de sair de casa sem seu documento de identidade, especialmente sem sua carteira de trabalho; uma pessoa pode ser presa sem motivo, torturada ou simplesmente morta como um “delinquente perigoso”.
Ora, numa sociedade em que a discriminação racial é vista diariamente na admissão no emprego (especialmente no atual período de recessão), pode-se imaginar a única saída que o trabalhador afro-brasileiro encontra: sem outra forma de escapar da violência policial, ele vende seu trabalho a qualquer preço para um patrão branco que aceite assinar sua carteira de trabalho. Além disso, a Lei de Infrações Penais, em seu artigo 159, afirma que a prática da vagabundagem (referindo-se ao desemprego) resulta em prisão; assim, é fácil perceber que não é permitido ao trabalhador negro ficar sem emprego. Não é por acaso que a população carcerária do nosso país é constituída principalmente por afro-brasileiros. [4]
Por essa breve caracterização, vê-se que na “democracia racial” brasileira, com sua divisão racial do trabalho, a população negra é sempre forçada a permanecer nas escalas inferiores da hierarquia social. Não é por acaso que uma expressão, atribuída a um famoso humorista, afirma sarcasticamente que “no Brasil não existe racismo porque o negro conhece o seu lugar”. Também não é por acaso que o movimento negro se refere à noção de “democracia racial” como um mito. [5]
A outra noção ideológica que define a identidade afro-brasileira é a ideologia do branqueamento, ou simplesmente branqueamento. Segundo Carlos Hasenbalg, “na autoimagem do Brasil, o negro é quase invisível”. [6] Em minha visão, essa afirmação aponta para um dos principais aspectos do branqueamento, não apenas na sociedade brasileira mas também nas sociedades latino-americanas em geral. [7] Sua expressão mais objetiva, contudo, está no texto do decreto-lei no 7.967, de 18 de setembro de 1945, o qual, em seu artigo 2o, afirma: “Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional” (grifo nosso). Apesar desse tipo de preocupação, esse ideal nunca se concretizou em termos demográficos, já que a população negra retomou seu processo de crescimento a partir da década de 1960. Do ponto de vista cultural, porém, o branqueamento está lá, tentando demonstrar a superioridade europeia em detrimento da histórica contribuição africana à construção da herança sociocultural brasileira.
A caracterização da produção cultural afro-brasileira nas instituições de cultura e educação, por exemplo, ilustra esse fenômeno. Práticas educacionais, assim como textos escolares, são marcadamente racistas. E isso sem levar em conta o sexismo e a valorização dos privilégios de classe. É desnecessário observar que os meios de comunicação de massa apenas reforçam e continuam a seguir a ideia da “superioridade branca”.
Enquanto o mito da democracia racial funciona nos níveis público e oficial, o branqueamento define os afro-brasileiros no nível privado e em duas outras esferas. Numa dimensão consciente, ele reproduz aquilo que os brancos dizem entre si a respeito dos negros e constitui um amplo repertório de expressões populares pontuadas por imagens negativas dos negros: “Branco correndo é atleta, negro correndo é ladrão”; “O preto, quando não suja na entrada, suja na saída”; “Branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar” etc. Essa última expressão aponta para o segundo nível em que atuam os mecanismos do branqueamento: um nível mais inconsciente que corresponde aos papéis e lugares estereotipados atribuídos a um homem ou mulher negros. Assim, ele (ou ela) é representado como um trabalhador braçal, não qualificado, ou como alguém que conseguiu ascender socialmente, mas sempre pelos canais de mobilidade social considerados adequados para ele ou ela. Imagens positivas são aquelas em que os negros desempenham papéis sociais a eles atribuídos pelo sistema: cantor e/ou compositor de música popular, jogador de futebol, mulata. Em todas essas imagens, há um elemento comum: a pessoa negra é vista como um objeto de entretenimento. Essa tipificação cultural dos negros também assinala outro elemento comum condensado em atributos corporais: força/resistência física, ritmo/sexualidade. Não é preciso dizer aqui que o homem ou mulher negros que não se adequam a esses parâmetros são rejeitados pelo estereótipo. [8]
Vale observar que a expressão popular mencionada anteriormente — “Branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar” — tornou-se uma síntese privilegiada de como a mulher negra é vista na sociedade brasileira: como um corpo que trabalha, e que é superexplorado economicamente, ela é uma faxineira, cozinheira, lavadeira etc. que faz o “trabalho pesado” das famílias de que é empregada; como um corpo que gera prazer e que é superexplorado sexualmente, ela é a mulata dos desfiles de Carnaval para turistas, de filmes pornográficos etc., cuja sensualidade é incluída na categoria do “erótico-exótico”. [9]
Dessa forma, não é difícil perceber que as afirmações contidas na mensagem do governo brasileiro na conferência de Paris parecem falsas não apenas para nós, afro-brasileiros atuantes no movimento negro, mas também para africanos que chegam a nosso país. Eles descobrem que a “africanidade” brasileira, como a chamada “democracia racial” realçada no discurso oficial brasileiro dirigido especialmente à África, nada mais é, como dizemos entre nós, do que “folclore”. Em sua comunicação apresentada no I Seminário Internacional Brasil-África, realizado no Centro de Estudos Afro-Asiáticos em agosto de 1981, o professor José Maria Nunes Pereira, tendo caracterizado o processo histórico de proximidade/separação/proximidade entre nosso país e o continente africano, afirmou:
Técnicos, executivos e empresários brasileiros, junto com um fácil relacionamento com africanos na África, apresentam um paternalismo agressivo — a forma clássica do racismo brasileiro […]. A primeira imagem que os africanos têm das desigualdades raciais no Brasil aparece tão logo descem do avião no aeroporto do Rio de Janeiro, costumeiro porto de entrada no país. Eles não veem praticamente nenhum negro nos primeiros escalões da equipe do aeroporto; eles estão presentes apenas nos serviços de manutenção e limpeza. Depois, em reuniões em ministérios, lá vêm os pretos servindo café, como sempre. A existência de um ou outro funcionário de relações públicas negro em companhias que exportam para a África não muda a realidade detectada pelo africano assim que chega ao Brasil. [10]
Além disso, não é raro que estudantes africanos, vistos como brasileiros, sejam presos pela polícia como vagabundos (desempregados). Afinal, somos todos negros e, como tais, suspeitos.
Ademais, a “superioridade branca” brasileira ignora quase tudo que se refere ao continente africano; com exceção de notícias de eventos imprevistos (guerras, golpes de Estado etc.), os brasileiros são muito desinformados sobre processos políticos e culturais africanos. Nesse sentido, a África não foge aos estereótipos que começaram com filmes como Tarzan. Frequentemente pessoas “cultas” nos fazem esta pergunta: “Ah, você esteve naquele país da África? Que dialeto eles falam lá?”. O estereótipo funciona assim: como os africanos são “selvagens” e “atrasados”, só podem falar dialetos, pois somente pessoas civilizadas são capazes de falar uma língua.
Com exceção de uns poucos centros de estudos africanos, dos quais o Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, é com certeza o mais ativo, não há estudos sistemáticos, em qualquer nível de ensino, sobre o continente africano. A esse respeito, é importante enfatizar que uma das maiores demandas do movimento negro se refere precisamente a essa área. Mas vou tratar do movimento negro mais adiante.
Apesar da política “ecumênica, pragmática e responsável” do governo Geisel (1974-9), pela qual o Brasil procurou estreitar relações com a África, uma série de obstáculos, como a tendência ideológica que tentamos retratar aqui, ainda precisam ser superados. Por esse motivo, gostaria de reproduzir um trecho do discurso do dr. Akindele, diretor-geral do Instituto Nigeriano de Assuntos Internacionais, por ocasião do I Seminário Internacional Brasil-África, já mencionado. Disse ele:
Antes de prosseguir, permitam-me explicar que não falo em nome do governo da Nigéria nem da instituição para a qual trabalho, o Instituto Nigeriano de Assuntos Internacionais. Falo apenas por mim mesmo. Gostaria de me concentrar rapidamente em três áreas que são fontes de irritação nas relações entre o Brasil e a África.
A primeira área problemática é a África do Sul. A África ainda se preocupa muito com as contradições e ambivalências da política brasileira em relação à África do Sul. Estamos perfeitamente conscientes de que, embora condene verbalmente o governo sul-africano por sua política criminosa e pelo apartheid, o Brasil continua a expandir seu comércio com o país e tem se recusado a apoiar os movimentos de libertação; e, o que é mais decepcionante para muitos países africanos, o Brasil tem se recusado a apoiar a posição da Organização da Unidade Africana (OUA) de que somente um conflito armado vai resolver os problemas da mudança política naquela parte do continente.
A segunda fonte de irritação, para um observador africano das relações Brasil-África, é a falta de participação e, naturalmente, a falta de influência da população afro-brasileira na articulação, formulação e implementação da política brasileira em relação a um continente de especial interesse cultural e histórico para os afro-brasileiros. Finalmente, a terceira fonte de irritação é o fato de que o Brasil dá muita atenção ao comércio e aos investimentos bancários em suas relações com muitos países da África. Tem-se a impressão de que o Brasil vê a África antes de tudo como um mercado para seus produtos manufaturados, e só secundariamente como uma economia, ou uma série de economias, a ser ajudada, em seu desenvolvimento, por meio de investimento e transferência de tecnologia. Esse conceito sobre a África, pelo que vejo, deve ser eliminado se o Brasil quiser manter boas relações com os países africanos.
Será que preciso acrescentar alguma coisa? Creio que não.
A importância do movimento negro
Quando falamos sobre o movimento negro, estamos nos referindo a um complexo de organizações e instituições herdeiras de um longo processo histórico de resistência pan-africanista e de luta por libertação da comunidade afro-brasileira, sujeita a condições extremas de exploração econômica e opressão racial. E, devido ao fato de enfrentarem o racismo e suas práticas, elas levam às últimas consequências o processo de desmascarar a lógica da dominação capitalista. Por esse motivo, o movimento negro tem um potencial revolucionário muito mais rico do que outros movimentos semelhantes que também se propõem lutar por uma sociedade justa e igualitária.
No sentido de que “a população afro-brasileira constitui um povo fundamental, num país fundamental, na perspectiva do mundo africano”, [11] a força do movimento negro se torna um fator de vital importância para o desenvolvimento das relações políticas, econômicas e estratégicas entre Brasil e África como uma realidade em níveis diferentes daqueles que já apontamos.
No caso específico da África Austral, por exemplo, a iniciativa de criar um Comitê Antiapartheid em nosso país pertence ao movimento negro, que, no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, tem esbarrado na indiferença de organizações e movimentos representativos de outros setores da sociedade civil, assim como dos partidos de oposição. Não é necessário ressaltar que essa indiferença é fruto da ideologia do branqueamento e do mito da democracia racial — internalizados por um amplo setor da esquerda cuja prática, a esse respeito, não é diferente daquela do liberalismo paternalista.
Manifestações de protesto contra a África do Sul; abaixo-assinados contra a prisão e o assassinato de líderes do movimento de libertação; denúncia das relações do governo brasileiro com o regime racista de Pretória; protestos contra a propaganda turística sul-africana em revistas brasileiras ou a formação de um lobby no Congresso em favor de maiores relações com a África do Sul; filmes (produzidos pela ONU ) mostrando a situação das populações negras na África do Sul e na Namíbia; conferências, debates etc. — temos feito tudo isso com o objetivo de chamar atenção da opinião pública para a gravidade dessas questões, e sempre contamos com o apoio dos escritórios de informações das Nações Unidas no Brasil.
Apesar de nossas dificuldades internas, de natureza organizacional e financeira, e sabendo que precisamos fazer muito mais do que temos feito, ainda assim continuamos a realizar nosso trabalho de conscientizar as comunidades afro-brasileiras sobre as lutas de libertação na África. A esse respeito, o movimento negro da Bahia, responsável pela realização de dois Encontros de Negros do Norte e Nordeste, tem desenvolvido um esforço cultural cujos efeitos políticos já se podem sentir. Refiro-me aos temas contemporâneos africanos apresentados pelos afoxés e blocos afro no Carnaval de Salvador: “Gana”, “Zimbábue”, “Movimentos de libertação” etc., que têm sido cantados nos desfiles carnavalescos por milhares de negros que, dessa maneira, passam a perceber uma realidade da qual não tinham consciência e que lhes diz respeito. Menos de um mês atrás, um dos líderes do movimento de descolonização cultural viajou para Angola; é claro que essa viagem não foi para fins turísticos, nem para uma “pesquisa” para o desfile carnavalesco do próximo ano.
Também menos de um mês atrás, no II Encontro Feminista da América Latina e do Caribe, quatro irmãs do Rio de Janeiro assumiram a tarefa de levantar a questão da discriminação racial como um fator de desigualdade entre as mulheres — além da desigualdade de classe. Com essa ação, ganharam a simpatia de outras mulheres negras e indianas também presentes ao encontro, que decidiram se juntar às brasileiras. Dessa reunião resultou o Comitê de Mulheres Latino-Americanas e Caribenhas contra a Discriminação Racial. Já instalamos a Comissão Interina do Rio de Janeiro, que está contatando as irmãs do movimento negro e do movimento de mulheres de todo o Brasil, com vistas a organizar o setor brasileiro do mencionado comitê. Por outro lado, como resultado de discussões realizadas no III Congresso de Cultura Negra das Américas, realizado em São Paulo no ano passado, estamos organizando uma Reunião Preparatória de Mulheres Negras em Quito, tendo em vista o IV Congresso, que acontecerá em Granada no segundo semestre de 1984.
Não quero que vocês pensem que vim aqui para fazer um relatório das atividades do movimento negro. O que desejo tornar claro é que o movimento negro brasileiro está atravessando um processo que lhe permitirá ter um impacto político capaz de concretizar o trabalho que vai realizar depois deste simpósio: apoiar a luta pela autodeterminação do povo da Namíbia, sob a liderança da Swapo.
Além disso, não podemos esquecer que
sucessivos fracassos no diálogo norte-sul fizeram o terceiro mundo tomar consciência da necessidade de uma mudança estrutural, começando pela redistribuição de papéis no contexto mundial e a crescente importância das relações sul-sul como a principal forma de reduzir sua dependência em relação aos países desenvolvidos. [12]
Não é preciso declarar que, nesse aspecto, a cooperação entre os países em desenvolvimento não é apenas uma necessidade econômica, mas uma exigência vital no plano das relações internacionais.
Deveríamos chamar atenção para o recente conflito entre Inglaterra e Argentina, que teve como efeito mais grave a instalação de bases militares inglesas nas Malvinas/Falklands; a Inglaterra preenche assim o “vácuo de poder” no Atlântico Sul, como declarou o ministro da Marinha brasileira em 1979. Com isso, não é difícil — segundo Larkin Nascimento — desestabilizar governos como o de Angola ou Moçambique na tentativa de evitar que o “perigo comunista” se torne mais influente na África Austral. Com efeito, o papel da Unita de Savimbi não foi outro senão este: o de um instrumento do imperialismo ocidental e do odioso regime de Pretória que, dessa maneira, se sente seguro para continuar suas manobras pelo adiamento indefinido da independência da Namíbia, dividindo seu povo internamente, tentando obstar a luta de libertação liderada pela Swapo e ignorando a importância do Conselho das Nações Unidas para a Namíbia.
A realização deste simpósio aqui na Costa Rica, tão próxima de outra área de conflitos entre forças populares e o imperialismo, é muito significativa. E não poderia ser de outra forma. Afinal, podemos estimular o povo latino-americano a criar vínculos entre essas duas áreas (África Austral e América Latina). Podemos ampliar a resistência e desenvolver um trabalho de solidariedade efetiva entre dois continentes que deveriam estar cada vez mais próximos na luta comum contra o imperialismo, que oprime a ambos.
Se prestarmos atenção ao papel desempenhado pelo Brasil, por motivos óbvios, em termos de capitalismo e imperialismo, torna-se claro que uma comunidade afro-brasileira politicamente organizada em torno do movimento negro é da máxima importância. Essa comunidade desempenharia um papel significativo
na medida em que poderia influenciar a tomada de decisões do Brasil com respeito à África negra. As relações África-Brasil, no nível da população africana — não no das elites dominantes —, têm uma necessidade urgente de serem ampliadas, partindo de uma dimensão puramente cultural e recreativa e avançando para uma dimensão político-econômica. E da mesma forma que a África tem um interesse fundamental por essa futura solidariedade, a maioria afro-brasileira, por sua vez, precisa de uma base africana de apoio internacional para sua luta política dentro de seu país. [13]
Depois deste simpósio, tenho certeza de que essa solidariedade não será mais algo do futuro, mas estará concretamente aqui e agora.
Notas de Rodapé
1. Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg, Lugar de negro.
2. O Globo, Rio de Janeiro, 9 jan. 1980.
3. Tereza Cristina Araujo Costa, Lucia Elena G. Oliveira e Lélia Gonzalez, Mulher negra: uma proposta de articulação entre raça, classe e sexo.
4. Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg, op. cit.
5. Lélia Gonzalez, Mulher negra e participação.
6. Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg, op. cit., p. 105.
7. George R. Andrews, The Afro-Argentines of Buenos Aires: 1800-1900.
8. Lélia Gonzalez, Racism and its Effects in Brazilian Society; Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg, op. cit.
9. Lélia Gonzalez, “Racismo e sexismo na cultura brasileira”; Mulher negra e participação; Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg, op. cit.
10. José Maria Nunes Pereira, “Relações Brasil-África: problemas e perspectivas”, p. 222.
11. Elisa Larkin Nascimento, Pan-africanismo na América do Sul: emergência de uma rebelião negra, p. 158.
12. Jacques D’Adesky, “Brasil-África: convergência para uma cooperação privilegiada”, p. 5.
13. Elisa Larkin Nascimento, op. cit.