Che Guevara – Sobre a Medicina Revolucionária

Originalmente publicado no site New Frame.

Tradução por Guilherme Henrique.


Ernesto ‘Che’ Guevara tornou-se um revolucionário depois de testemunhar a espoliação das pessoas enquanto viajava pela América do Sul. Em Cuba, ele se tornou um proeminente insurgente, ajudando a fazer a revolução lá antes de seguir para o Congo e depois para a Bolívia. Ele foi capturado na Bolívia, onde a Agência Central de Inteligência (CIA na sigla original) usou agentes locais para executá-lo em 1967.

Este é um trecho levemente editado de um discurso que Guevara fez em 19 de agosto de 1960 para a milícia cubana.

Esta simples celebração, uma entre as centenas de cerimônias públicas com as quais o povo cubano celebra diariamente sua liberdade, o progresso de todas as suas leis revolucionárias e seus avanços no caminho para a independência completa, é de especial interesse para mim.

Quase todo mundo sabe que anos atrás comecei minha carreira como médico. E quando comecei como médico, quando comecei a estudar medicina, a maioria dos conceitos que tenho hoje, como revolucionário, estavam ausentes do meu estoque de ideais.

Como todo mundo, eu queria ter sucesso. Eu sonhava em me tornar um pesquisador famoso, sonhei em trabalhar incansavelmente para descobrir algo que servisse para ajudar a humanidade, mas que significasse um triunfo pessoal para mim. Eu era, como todos nós, um filho do meio.

Após a graduação, devido a circunstâncias especiais e talvez também ao meu caráter, comecei a viajar por toda a América e a conheci inteira. Salvo o Haiti e a República Dominicana, visitei, em certa medida, todos os outros países da América Latina. Pelas circunstâncias em que viajei, primeiro como estudante e depois como médico, entrei em contato próximo com a pobreza, a fome e a doença; com a incapacidade de tratar uma criança por falta de dinheiro; com o embrutecimento provocado pela fome e castigo contínuos, a ponto de um pai poder aceitar a perda de um filho como um acidente sem importância, como ocorre muitas vezes nas classes oprimidas de nossa pátria latino-americana. E comecei a perceber naquela época que havia coisas que eram quase tão importantes para mim quanto me tornar famoso ou fazer uma contribuição significativa para a ciência médica: eu queria ajudar essas pessoas.

Mas continuei a ser, como todos nós continuamos a ser, um filho do meio, e queria ajudar essas pessoas com meus próprios esforços pessoais. Eu já havia viajado muito – estava na Guatemala na época, a Guatemala de Arbenz – e comecei a fazer algumas anotações para orientar a conduta do médico revolucionário. Comecei a investigar o que era necessário para ser um médico revolucionário.

No entanto, estourou a agressão, a agressão desencadeada pela United Fruit Company, o Departamento de Estado, Foster Dulles – na verdade a mesma coisa – e seu fantoche, chamado Castillo Armas. A agressão foi bem-sucedida, pois o povo não havia alcançado o nível de maturidade que tem hoje o povo cubano. Um belo dia, um dia como outro qualquer, peguei o caminho do exílio, ou pelo menos peguei o caminho da fuga da Guatemala, já que aquele não era meu país.

Então eu percebi uma coisa fundamental: para alguém ser um médico revolucionário ou ser um revolucionário, primeiro deve haver uma revolução. O esforço individual isolado, apesar de toda a pureza de seus ideais, é inútil, e o desejo de sacrificar uma vida inteira ao mais nobre dos ideais não serve para nada se alguém trabalha sozinho, solitário, em algum canto da América, lutando contra governos adversos e condições sociais que impedem o progresso. Para fazer uma revolução, é preciso ter o que há em Cuba – a mobilização de todo um povo, que aprende pelo uso das armas e pelo exercício da unidade militante a compreender o valor das armas e o valor da unidade.

E agora chegamos ao núcleo do problema que temos diante de nós neste momento. Hoje, finalmente, tem-se o direito e até o dever de ser, acima de tudo, um médico revolucionário, isto é, um homem que utiliza os conhecimentos técnicos de sua profissão a serviço da revolução e do povo. Mas agora reaparecem velhas questões: como se faz de fato um trabalho de bem-estar social? Como unir o esforço individual com as necessidades da sociedade?

Devemos rever cada uma de nossas vidas, o que fizemos e pensamos como médicos, ou em qualquer função da saúde pública, antes da revolução. Devemos fazer isso com profundo zelo crítico e chegar finalmente à conclusão de que quase tudo o que pensamos e sentimos naquele período passado deve ser depositado em um arquivo, e um novo tipo de ser humano criado. Se cada um de nós se esforçar ao máximo para a perfeição desse novo tipo humano, será muito mais fácil para o povo criá-lo e deixá-lo ser o exemplo da nova Cuba.

É bom que enfatize para vocês, habitantes de Havana que estão aqui presentes, esta ideia; em Cuba está sendo criado um novo tipo humano, que não podemos apreciar plenamente aqui na capital, mas que se encontra em todos os cantos do país. Aqueles de vocês que foram à Sierra Maestra em 26 de julho devem ter visto duas coisas completamente desconhecidas. Primeiro, um exército com enxadas e picaretas, um exército cujo maior orgulho é desfilar nas festas patrióticas da província do Oriente¹ com enxadas e machados levantados, enquanto seus camaradas militares marcham com fuzis. Mas vocês devem ter visto algo ainda mais importante. Vocês devem ter visto crianças cuja constituição física parecia ser de oito ou nove anos, mas quase todas com 13 ou 14 anos. São as crianças mais autênticas da Sierra Maestra, os filhos mais autênticos da fome e da miséria. Elas são as criaturas da desnutrição.

Nesta pequena Cuba, com seus quatro ou cinco canais de televisão e centenas de estações de rádio, com todos os avanços da ciência moderna, quando aquelas crianças chegaram à escola pela primeira vez à noite e viram as lâmpadas elétricas, exclamaram que as estrelas estavam muito baixas naquela noite. E essas crianças, algumas das quais vocês devem ter visto, estão aprendendo nas escolas coletivas, habilidades que vão da leitura aos ofícios, e até a dificílima ciência de serem revolucionários.

Esses são os novos seres humanos nascendo em Cuba. Estão nascendo em áreas isoladas, em diferentes partes da Sierra Maestra, e também nas cooperativas e centros de trabalho. Tudo isso tem muito a ver com o tema da nossa conversa de hoje, a integração do médico ou de qualquer outro trabalhador da área em questão no movimento revolucionário. A tarefa de educar e alimentar os jovens, a tarefa de educar o exército, a tarefa de distribuir as terras dos ex-proprietários para aqueles que trabalhavam todos os dias naquela mesma terra sem receber seus benefícios, são realizações da medicina social que foram realizadas em Cuba.

O princípio em que se deve basear a luta contra a doença é a criação de um corpo robusto; mas não a criação de um corpo robusto pelo trabalho artístico de um médico sobre um organismo fraco; antes, a criação de um corpo robusto com o trabalho de toda a coletividade, sobre toda a coletividade social.

Algum dia, portanto, a medicina terá que se converter em uma ciência que serve para prevenir doenças e orientar o público para o cumprimento de seus deveres médicos. A medicina só deve intervir em casos de extrema urgência, para realizar cirurgias ou qualquer outra coisa que esteja fora das habilidades das pessoas da nova sociedade que estamos criando.

O trabalho que hoje é confiado ao Ministério da Saúde e organizações semelhantes é prestar serviços de saúde pública para o maior número possível de pessoas, instituir um programa de medicina preventiva e orientar a população para a realização de práticas higiênicas.

Mas para esta tarefa de organização, como para todas as tarefas revolucionárias, é fundamentalmente o indivíduo que é necessário. A revolução não padroniza, como alguns afirmam, a vontade coletiva e a iniciativa coletiva. Pelo contrário, libera o talento individual do homem. O que a revolução faz é orientar esse talento. E nossa tarefa agora é orientar as habilidades criativas de todos os profissionais médicos para as tarefas da medicina social.

Estamos no fim de uma era, e não apenas aqui em Cuba. Por mais que se diga e se pense o contrário, a forma de capitalismo que conhecemos, na qual fomos criados e sob a qual sofremos, está sendo derrotada em todo o mundo. Os monopólios estão sendo derrubados; a ciência coletiva está conquistando novos e importantes triunfos diariamente. Nas Américas, tivemos o orgulhoso e devotado dever de ser a vanguarda de um movimento de libertação que começou há muito tempo nos outros continentes subjugados, África e Ásia. Uma mudança social tão profunda exige mudanças igualmente profundas na estrutura mental das pessoas.

¹ Nome dado a antiga província localizada no Leste da ilha. Depois de 1976 passou a ser representada por cinco províncias: Granma, Holguín, Santiago de Cuba, Guantánamo e a maior parte das províncias de Las Tunas.

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