M. N. Roy – Fome e Revolução na Índia

Primeira parte do artigo de M.N Roy para o semanal The Call[1] em 18 de setembro de 1919, página 15.

Originalmente disponível no site Marxists.

Tradução por Ian Cartaxo.


O controle absoluto dos meios de comunicação pelos governos das potências vitoriosas, preveniu o público geral de saber quaisquer coisas que estivessem em desacordo com os interesses dessas nações poderosas, às quais detêm um domínio inquestionável sob a Terra e os milhões de seres humanos que a habitam.

Porque a Inglaterra capturou todas as rotas pelas quais as notícias poderiam ser filtradas fora da Índia, o mundo sabe apenas aquilo que a Inglaterra deseja sobre a situação atual do povo indiano. Como resultado dessa política, em efeito mesmo antes da guerra, havia uma crença prevalecente entre o povo do hemisfério ocidental de que a administração benevolente (?) da Índia pelos ingleses teria resultado em paz e prosperidade para aquela remota nação. Propagandistas do imperialismo vêm dizendo ao público em geral, pelos últimos cinquenta anos, que antes da vinda dos ingleses o povo indiano nunca teria ensejado dessas bênçãos, e que sob sua proteção amigável trezentos e cinquenta milhões de indianos vivem com contentamento e felicidade. Mas chegou o tempo em que os eventos globais mudam tão rapidamente que a voz sufocada dos milhões de indianos famintos alcança, até mesmo, os cantos mais remotos da Terra. Os crimes bárbaros cometidos pelos ingleses na Índia por mais de um século e meio atingiram seu clímax, e, até mesmo a mão toda poderosa da “pérfida Albião”[2] se encontra incapaz de manter o mundo ignorante da chocante realidade.

No presente momento a Índia sofre com a fome de maneira nunca antes vista, mesmo em sua longa e trágica história de carestias sob o domínio britânico. As causas dessa terrível epidemia são a exaustão econômica do povo e a exportação de todos os bens alimentícios para alimentar as forças Aliadas durante os quatro anos da guerra.

O governo britânico respondeu aos gritos de desespero das massas que morriam com bombas e baionetas, e com a aprovação de leis ainda mais duras e repressivas para impedir que a voz de um povo oprimido chegasse ao mundo externo, em um apelo por ajuda. As poucas notícias publicadas na imprensa americana e canadense testificam que as condições na Índia atingiram níveis alarmantes de proporções críticas. O país inteiro está em estado de rebelião, e o governo britânico está usando de todos os seus poderes para suprimir a sublevação de um povo que vem sendo esmagado sob uma tirania sem precedentes nos anais do mundo civilizado. No início de abril a revolução foi encaminhada nas quatro principais províncias do Império Indiano; em Bengal, Bombay, o Punjab e nas Províncias Unidas, que juntas formam quase dois terços do país. Centenas de vidas foram perdidas em ambos lados, tanto daquele do governo como dos revolucionários. A cidade antiga de Amritsar foi um dos primeiros centros no qual o conflito teve início; foi cercada por tropas inglesas, às quais bombardearam toda a população com aviões, matando centenas de pessoas inocentes, e destruindo parcialmente o grande Templo de Ouro, sagrado para os Sikhs e um monumento arquitetônico maravilhoso.

Em todas as partes do país bancos ingleses foram saqueados por revolucionários. A parte norte de Calcutá, a maior metrópole da Índia, esteve sob seu controle por quatro dias. As principais cidades comerciais e industriais como Bombay, Ahamedabad, Lahore, Delhi, a sede do Conselho Executivo do Vice-reino, Allahabad; Gujranwala, etc., foram convertidos em campos de batalha entre, de um lado, o povo totalmente desarmado e, de outro, as forças militares do governo, completamente equipadas com metralhadoras, carros armados, aviões dos quais bombas foram lançadas sobre as massas de mulheres, crianças e homens abandonados.

Todos os diferentes elementos que formam a nação indiana, os Hindus, os Sikhs, os Mohammedans e todas as grandes comunidades, se uniram em uma oposição determinada à tirania britânica, a qual subjugou o povo inteiro à um verdadeiro reino de terror com sua recente legislação repressiva e de sua imposição impiedosa da lei marcial. As medidas repressivas, conhecidas como os Rowlatt Acts[3], foram aprovadas três meses atrás diante da oposição unânime do povo indiano. Por meio dessa legislação, a liberdade de imprensa, de discurso, de plataforma e de reuniões foram absolutamente destruídas. O propósito dos Rowlatt Acts, admitindo-se francamente, é o de matar o espírito revolucionário acordado no povo. De acordo com a confissão do governo britânico, o povo indiano está lutando por sua liberdade, e a única coisa que os faz se submeter aos interesses estrangeiros é a força bruta de seus opressores.

Por quatro anos a Índia agonizou por uma das piores crises de fome na história. Agora que a guerra acabou, e que todos buscam melhorar as condições dos países devastados da Europa, as condições da Índia pioraram. Até mesmo os missionários cristãos, que constituem os mais fervorosos defensores do imperialismo britânico na Índia, se uniram na demanda de que os pobres infiéis precisam receber comida antes de serem salvos por cristo. (continua na próxima semana).

Segunda parte de artigo de M.N Roy para o semanal The Call em 25 de setembro de 1919, página 5. Digitalizado pelo site Marxists Internet Archive (2007)[4].

Um correspondente de imprensa do “Globe”, Toronto, Canadá, escreve o seguinte:

A Índia está sob o jugo mortal da praga e da fome. Nas províncias centrais e do norte a morte segue por toda terra, cobrando um pedágio que faz com que a casualidade da grande guerra sucumba à insignificância. Até hoje, os números estimados de mortos por praga e fome no último ano ultrapassa trinta e dois milhões de pessoas. Os pobres comeram toda a sua comida e as condições físicas de milhares de milhares é tal que eles estão muito fracos até mesmo para carregar suas jarras de água. Algum tipo de estimativa dessa terrível contagem de mortos pode ser levantada pela seguinte comparação: Se caixões para os trinta milhões de súditos indianos britânicos que morreram durante o último ano para a praga e a fome fossem postas de pé, eles alcançariam uma distância igual a um e um terço da linha do Equador. Não existem palavras para explicar o horror dessa tragédia estupenda, e as fotografias são muito macabras para publicar.  

O “Times de Londres” admite: “A Índia foi exaurida de bens alimentícios para atender às exigências da guerra.” De acordo com as estatísticas do governo, a exportação de cereais entre 1917 e 1918 aumentou para cinco milhões e quatrocentos mil toneladas, avaliadas em trinta e seis milhões de libras. Durante o mesmo ano, foi exportado trigo no montante de um milhão e quinhentos mil toneladas. Em 1919, “A contribuição da Índia em bens alimentícios persistiu a níveis ainda maiores do que entre 1917 e 1918.” Durante esse período o país foi devastado pela fome e por epidemias incidentais à fome.

Apesar do fato de que muitas notícias chegaram à imprensa dos Estados Unidos sobre a condição da fome na Índia, o povo de lá, até o presente momento, contribuiu muito pouco para aliviar as terríveis condições decorrentes da imposição de contribuições para a “guerra da liberdade”. No final de maio, alguns jornais canadenses publicaram um apelo por fundos para socorrer as milhões de pessoas morrendo na Índia, mas esse apelo foi imediatamente suprimido por ordem do governo, o qual, desde então, proibiu que quaisquer notícias sobre a Índia fossem publicadas.

A Índia, terra de riquezas proverbiais e de opulência, sofreu com uma maldição quando os insaciáveis exploradores europeus vieram às suas costas em busca de riquezas. Desde os dias da Companhia das Índias Orientais, até o presente momento, o povo indiano sofreu com carestias crônicas, má nutrição e doenças endêmicas, os quais acabam sendo resultados inevitáveis de tal condição. Por natureza, educação e séculos de cultura, os indianos, enquanto uma raça, são pacíficos e aversos à derramada de sangue. Capitalistas ingleses, se aproveitando dessa característica bem conhecida, fizeram um tipo de exploração impiedosa, cruel e eficiente, a qual foi calculada para aniquilar todo o povo indiano. Um sistema que tem êxito em matar trinta e dois milhões de seres humanos em um único ano fala por si só, sem necessitar de maiores fatos condenatórios. O povo que se rebela contra maiores subjugações a tal governo, deveria receber, pelo menos, o suporte moral de todo o mundo.

O imperialismo inglês está determinado em suprimir as justas aspirações do povo indiano a qualquer custo; sem compulsão ou vergonha está empregando todo armamento da guerra moderna contra um povo completamente desarmado por cinquenta anos. Manter o povo indiano em sua atual condição de desamparada escravidão, é uma necessidade vital para a existência futura do sistema capitalista inglês; o que os capitalistas perdem em sua luta com os operários britânicos, eles mais do que recuperam por meio de sua exploração impiedosa dos desamparados e miseráveis trabalhadores indianos. Consequentemente, além do fato de que o proletariado inglês possa ganhar algo em decorrência da guerra, ele jamais será capaz de sobrepujar seu opressor capitalista enquanto os operários da Índia são seus para explorar a bel prazer. Infelizmente, esse fato manifesto é pouco reconhecido pelo Partido Trabalhista inglês, o qual, em relação aos seus próprios interesses, é extremamente liberal, mas em relação aos interesses do imperialismo britânico na Índia nunca vai além de recomendar uma política mais generosa na administração daquele país. Aparentemente, o Partido Trabalhista inglês não pode conceber a ideia de que a Inglaterra não possui qualquer direito, seja moral ou político, de se impor aos indianos, por mais liberal que seja seu domínio. Ao aceitar o imperialismo como um direito e como uma necessidade para o bem-estar e grandeza da Inglaterra, eles se provam tão imperialistas quanto seus mestres. Eles, e o resto dos trabalhadores, ainda precisam aprender que a luta pela independência da Índia não é uma questão local, tendo como seu fim e finalidade a criação de outro nacionalismo egoísta; a liberdade do povo indiano é um fator na política mundial, pois a Índia é a pedra fundamental do imperialismo britânico, que constitui o maior e mais poderoso inimigo da Revolução Social e Econômica que existe hoje. Pelo tempo em que o capital inglês mantenha em sua absoluta posse todos os imensos recursos naturais da Índia, com direitos ilimitados para explorar sua mão de obra, seguirá firmemente entrincheirada em seu poder para ser subjugada pelo proletariado inglês. E o capital inglês é mais do que, simplesmente, o capital inglês – ele representa de uma vez só o epitomo do sistema capitalista pelo mundo. Vendo sob essa luz, se torna auto evidente que a liberação da Índia é mais do que um mero ato de justiça abstrata, ela significa um longo passo em direção à redenção do mundo frente às garras do sistema capitalista. É por essa razão que, nenhuma nação, nenhum povo ou grupo de pessoas, pode aceitar se manter indiferente ao destino da Índia, à sua causa por liberdade, ou ao sofrimento e luta daqueles milhões de indianos que hoje apelam para o apoio moral e material da humanidade. – (Da “Revista Gale”).      


[1] Publicado pelo Partido Socialista Britânico (BSP), foi um jornal semanal que durou de 24 de fevereiro de 1916 até 29 de julho de 1920, quanto foi transmutado para o The Communist.

[2] Apelido crítico usado para se referir à Grã-Bretanha. [N do T].

[3] Legislação aprovada pelo Conselho Legislativo Imperial em fevereiro de 1919. Permitia que certos casos fossem julgados sem júris e com a prisão de suspeitos sem julgamentos. [N. do T]. Para mais: <Rowlatt Acts | 1919, India | Britannica>

[4] ROY, M. N. Hunger and Rervolution in India II. The Call, Londres, 25 de setembro de 1919. Disponível em: <Hunger and Revolution in India II (marxists.org)>

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