José Carlos Mariátegui – Arte, Revolução e Decadência

Inicialmente publicado em Amauta: Nº 3, p. 3-4; Lima, novembro de 1926. Reproduzido em Bolívar: Nº 7, p. 12; Madri, 19 de maio de 1930. E em A Nova Era: Nº 2, p. 23-24; Barcelona, novembro de 1930. Também foi publicado em Variedades: Lima, 19 de março de 1927. Porém com um título diferente (Tópicos de arte moderna) e substituindo a categórica declaração que o inicia, com frases nas quais se mencionam episódios circunstanciais do debate em torno da arte. Se lê: “O debate sobre o formal e o essencial na arte moderna ganha, dia a dia, mais profundidade e extensão. A desumanização da arte acendeu, por exemplo, no setor hispânico, animada polêmica. Enrique Molina acaba de lhe dedicar na revista Atenea um robusto estudo crítico. Leopoldo Lugones mantém com a vanguarda argentina um diálogo intermitente. Mas nem sempre se aborda o tema central da questão. Este é meu juízo e comigo estão de acordo a este respeito muitos artistas da vanguarda hispano-americana”.

Tradução por Jhonatan Alcântara.


Convém uma rápida liquidação de um equívoco que desorienta alguns artistas jovens. É fundamental estabelecer, ratificando determinadas definições apressadas, que nem toda “arte nova” é revolucionária, nem tampouco verdadeiramente nova. No mundo contemporâneo coexistem duas almas, a alma da revolução e a alma da decadência. E apenas a primeira confere a um poema ou um quadro o valor de “arte nova”.

Não podemos aceitar como nova uma arte que nos traz simplesmente uma nova técnica. Isso poderia descambar na mais falaciosa ilusão do nosso tempo. Nenhuma estética pode rebaixar o trabalho artístico a uma questão de técnica. A técnica nova deve corresponder também a um novo espírito. Senão a única coisa que muda é o revestimento, a decoração. E uma revolução artística não se contenta com conquistas formais.

A distinção entre as duas categorias contemporâneas de artistas não é fácil. A decadência e a revolução, assim como coexistem no mesmo mundo, coexistem também nos mesmos indivíduos. A consciência artística é o Circo Agonal de uma luta entre os dois espíritos. A compreensão dessa luta, às vezes, quase sempre, escapa ao próprio artista. Porém finalmente um dos dois espíritos prevalece e o outro resta estrangulado na arena.

A decadência da civilização capitalista se reflete na atomização, na dissolução da sua arte. A arte nessa crise perdeu, acima de tudo, sua unidade essencial. Cada um dos seus princípios, cada um dos seus elementos, reivindicou sua autonomia. Secessão é seu termo mais característico. As escolas se multiplicam ao infinito porque não operam de outra forma que não como forças centrífugas.

Nesta anarquia, na qual morre irreparavelmente cindido e desagregado o espírito da arte burguês, se preludia e prepara uma nova ordem. É essa a transição do pôr do sol ao nascer do sol. Nesta crise se elaboram dispersamente os elementos da arte do porvir, do futuro. O cubismo, o dadaísmo, o expressionismo[1] etc., ao mesmo tempo que acusam uma crise, anunciam uma reconstrução. Isoladamente cada movimento não traz uma fórmula; mas todos concorrem – acrescentando um elemento, um valor, um princípio – a sua elaboração.  

O sentido revolucionário das escolas ou tendências contemporâneas não está na criação de uma nova técnica. Não está tampouco na destruição da velha técnica. Está no repúdio, no despejo, na zombaria absoluta do burguês. A arte nutre sempre, conscientemente ou não, – isso é o de menos – do que há de absoluto na sua época. O artista contemporâneo, na maioria dos casos, traz vazia sua alma. A literatura da decadência é uma literatura sem absolutos. Mas assim só se pode dar alguns passos. O homem não pode marchar sem fé, porque não ter uma fé é não ter uma meta. E marchar sem fé é patiner sur place[2]. O artista que se confessa o mais enlouquecidamente cético e niilista é, geralmente, o que mais tem a necessidade desesperada de um mito.

Os futuristas russos aderiram ao comunismo; os futuristas italianos aderiram ao fascismo. Existe melhor demonstração histórica de que os artistas não podem subtrair-se da gravitação política? Massimo Bontempelli diz que em 1920 se sentiu quase comunista e em 1923, no ano da marcha sobre Roma, se sentiu quase fascista. Agora parece fascista como um todo. Muitos riram de Bontempelli por esta confissão. Eu o defendo; o percebo sincero. A alma vazia do pobre Bontempelli tinha que adotar e aceitar o mito que colocou na sua ara Mussolini (Os vanguardistas italianos estão convencidos de que o fascismo é a revolução).

Vicente Huidobro pressupõe que a arte é independente da política. Esta asserção é tão antiga quanto ultrapassada em suas razões e motivos que eu não conceberia um poeta radical, se achasse os poetas radicais em grau de discutir sobre política, economia e religião. Se política é, para Huidobro, exclusivamente a do Palais Bourbon[3], está claro que podemos reconhecer à sua obra de arte toda a autonomia que quiser. Mas o caso é que a política, para os que sentem elevada a categoria de uma religião, como diz Unamuno, é a trama mesma da História. Em épocas clássicas, ou de plenitude de uma ordem, a política pode ser só administração e parlamento; mas nas épocas românticas ou de crise de uma ordem, a política ocupa o primeiro plano da vida.

Assim o proclamam, com sua conduta, Louis Aragon, André Breton e seus companheiros da revolução surrealista – os melhores espíritos da vanguarda francesa – marchando em direção ao comunismo. Drieu La Rochelle[4] que quando escreveu Mesure de la France[5] e Plainte contra iconnu[6], estando tão próximo desse estado de ânimo, não pôde segui-los, mas como também não pôde escapar da política, se declarou vagamente fascista e claramente reacionário.

Ortega y Gasset é responsável, no mundo hispânico, de uma parte deste equívoco sobre a nova arte. Sua análise assim como não distinguiu escolas nem tendências, não distinguiu, ao menos na arte moderna, os elementos de revolução e os elementos de decadência. O autor de A desumanização da arte não nos deu uma nova definição de arte. Tomou como traços de uma revolução os que correspondiam tipicamente a uma decadência. Isso o conduziu a pretender, entre outras coisas, que a nova inspiração é sempre, infalivelmente, cósmica. Seu quadro sintomatológico, em geral, justo; mas seu diagnostico incompleto e equivocado.

Não basta o procedimento. Não basta a técnica. Paul Morand, apesar da sua aparência e de sua modernidade, é um produto da decadência. Se respira na sua literatura uma atmosfera de dissolução. Jean Cocteau, depois de haver flertado um tempo com o dadaísmo, se apresenta agora com seu Rappel à l’Ordre[7].

Convém esclarecer a questão até que se desanuvie o último equívoco. Uma tarefa difícil., pois custa caro compreender tantos pontos diferentes. É frequente a presença de reflexos de decadência na arte de vanguarda, até quando, superando o subjetivismo que às vezes a aflige, se propõe metas realmente revolucionárias. Hidalgo, referenciando Lênin em um poema de várias dimensões, diz que os “seios de Salomé” e a “peluca à la garçonne[8]” são os primeiros passos para a socialização da mulher. E disso não há surpresas. Existem poetas que acreditam que o jazz-band é um arauto da revolução.

Por sorte restam no mundo artistas como Bernard Shaw, capazes de compreender que a “arte nunca foi grande quando não facilitou uma iconografia para uma religião viva; e nunca foi completamente insignificante, a não ser quando imitou a iconografia, depois que a religião se transformou em superstição”. Este último caminho parece ser o que vários dos novos artistas têm tomado na literatura francesa, dentre outras. O porvir rirá da bem-aventurada estupidez com que alguns críticos do seu tempo chama de “novo” e até de “revolucionário.


[1] Conferir o artigo intitulado “O expressionismo e o dadaísmo” no capítulo “Tópicos da arte moderna” presente no Tomo III: A alma da manhã e outras estações do homem de hoje e o artista de sua época.

[2] Expressão para “patinar sem sair do lugar”.

[3] Nome do palácio onde se reúne, atualmente, a Câmara de Deputados da França.

[4] Sobre a atitude social e a significação literária deste escritor, vá ao artigo “Confissões de Drieu La Rochelle” no capítulo “Espécimes da reação” no Tomo IV da presente edição.

[5] Medida da França.

[6] Queixa contra o desconhecido.

[7] Chamado a ordem.

[8] Estilo feminino de corte de cabelo muito em moda nos anos 20.

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