Onde fica o homem trans na hombridade?

Originalmente publicado por Bixa Herética no seu Substack.


Esse texto surgiu da resposta que dei para uma pergunta, cujas premissas não levavam a boas conclusões e simplismos aparentes levam a ideias fora do lugar. A questão era sobre a utilidade do conceito de homem para a análise feminista em relação aos homens trans, já que mesmo sendo homens não estão em uma posição de superioridade e dominação absoluta nas relações de gênero.

A própria pergunta está errada, porque os pressupostos que atravessam ela estão errados. A pergunta supõe que exista um sistema de relações de gênero, com leis próprias, auto-constituído, autônomo e separado do restante da totalidade das relações sociais. E que, dentro desse sistema, ser homem sempre será sinônimo, em qualquer situação, de dominação e superioridade — ou melhor, que, dentro desse sistema, ser homem sempre significará estar estruturalmente em uma posição de superioridade no que diz respeito ao gênero. Vou deixar uma série de referências no fim que dão conta de contrariar essa tese de forma bem mais qualificada que eu, e com mais profundidade teórica, mas vou tentar explicar de forma simplificada os problemas com essa abordagem. 

Como marxistas, nós sempre entendemos o real (a realidade material, o que existe concretamente) como uma síntese de múltiplas determinações, ou seja, todo objeto concreto é fruto da combinação entre diversos aspectos que se relacionam entre si, mas não é uma combinação matemática (a + b = c), e sim uma combinação complexa que produz um resultado diferente da simples adição de duas coisas. Tudo o que existe só existe em interação com todo o resto; e é essa própria interação com o resto que “faz” o objeto particular. O gênero, como um objeto concreto, também é uma realidade criada pela síntese de vários aspectos essenciais que não pode ser redutível a um só deles. Mais que isso, ele é CONSTITUÍDO por todas as demais relações sociais. Isso não é uma obviedade, porque esse não é o procedimento padrão de pensamento das pessoas. Geralmente, se entende “gênero” como uma coisa, por exemplo, e “raça” como outra coisa; os dois conseguem existir sem o outro e são estruturas autônomas; o gênero é diferente para pessoas de acordo com raça porque ele se “intersecciona”, “conecta” ou se “junta” com a raça para produzir a realidade que estamos vendo, mas existe um gênero fora da raça. Gênero, raça, classe etc., por mais que não sejam entendidos enquanto coisas que se “somam” para produzir a experiência de algumas pessoas; são quase sempre compreendidos, fora do materialismo histórico (e por alguns setores do marxismo), como esferas distintas que se relacionam “de fora” umas com as outras, e não como uma totalidade integrada, como relações que dependem umas das outras para existirem e terem sentido. 

E, na verdade, não existe “gênero” abstrato; tudo o que é considerado “ser mulher”, “ser homem”, feminino/masculino só faz sentido considerando a totalidade das relações sociais — por exemplo, ser mulher para uma trabalhadora e uma burguesa são coisas completamente diferentes; não apenas no nível subjetivo (como elas experienciam a realidade), mas nas raízes da opressão para uma e para outra. Para as trabalhadoras, está diretamente ligado à responsabilidade que o capitalismo as coloca pela reprodução social, pela manutenção da vida, da força de trabalho. A reprodução social, no capitalismo, é necessariamente erodida, desvalorizada: o sistema só pode se manter se expandindo sempre, e para continuar com a acumulação de mais e mais valor, explora mais e mais tanto a natureza quanto os trabalhadores, mantendo-os só o suficiente para que suas duas fontes de riqueza não desapareçam; sistematicamente destruindo as condições de vida — às vezes, as próprias vidas — dos trabalhadores e fazendo-os, o máximo que puder, arcar com sua própria manutenção físico-social. Ao mesmo tempo, a reprodução social (incluindo trabalho de limpeza, alimentação, saúde, cuidado, parto e criação das crianças etc.) é considerada tarefa natural das mulheres, e não se remunera o que é um considerado um dever automático do gênero.  Essa associação das mulheres e pessoas feminizadas com a reprodução social as persegue no mercado de trabalho, onde são direcionadas para trabalhos considerados “femininos” fora do lar (geralmente mais precarizados e mal-pagos) e, nos trabalhos tradicionalmente “masculinos”, sua associação com o trabalho reprodutivo serve de justificativa para a superexploração. Todo o sistema, ao responsabilizá-las pela reprodução social e, constantemente, ou destruir a vida, ou mantê-la sob um fio, direciona violência para as mulheres trabalhadoras (inclusive, e principalmente, vinda dos homens trabalhadores). Para as mulheres burguesas, a explicação da opressão é simples: precisam garantir a existência da prole da burguesia, e a continuidade de sua propriedade. Como os objetivos da opressão são distintos, ser mulher para uma classe e para outra são coisas radicalmente distintas. A mulher trabalhadora, por exemplo, não pode ser “delicada” como a mulher burguesa (ou pequeno-burguesa). Ela precisa realizar trabalho produtivo. Precisa por a mão na massa. Por outro lado, precisa ser dócil, obediente, e a violência moral, física etc. será utilizada contra ela como instrumento de controle no trabalho (fora e dentro do lar). Também precisa ser “uma mãe amorosa” o suficiente para que seja possível justificar que faça grande parte do trabalho reprodutivo de graça. Não preciso te dizer que mulheres burguesas não trabalham, dificilmente fazem trabalho reprodutivo. Também não são elas que criam seus filhos diretamente. Ser mulher para a burguesia não tem nada a ver como ser o estereótipo da mãe amorosa, por exemplo. Para a classe trabalhadora e parte da pequeno-burguesia, sim. Em termos de raça, o que é próprio de uma mulher branca e o que é próprio de uma mulher negra, asiática, indígena etc. é radicalmente distinto. Varia de acordo com o que o sistema precisa de cada uma e de acordo com as contradições desse processo. O sistema nem mesmo dá às mulheres cis e trans o mesmo papel: a transmisoginia existe para impor uma posição de extrema precariedade para a maioria das mulheres trans, que não seria aceitável se fosse para a maioria das mulheres cis. Isso vale para pessoas de diversos gêneros, e homens também. 

O resumo da ópera é: não existem características comuns que unem todas as pessoas de um mesmo gênero, fora serem afetadas pela opressão de gênero… no caso das mulheres, pessoas feminizadas, gênero-dissidentes e grande parte das pessoas trans no geral. Então, algo só é considerado próprio de algum gênero ou outro de acordo com o contexto e de acordo com o que o sistema necessita daquele corpo ou identidade/subjetividade.

 Para a maioria dos homens, a concessão de benefícios relativos em relação às mulheres é importantíssima e vital para o sistema. Primeiro, reforça a divisão generificada do trabalho sem a qual o sistema não pode existir, porque precisa de setores da classe mais e menos valorizadas em termos de valor da força de trabalho, porque precisa da heterossexualidade para garantir a existência dos trabalhadores necessários, porque precisa da realização não-remunerado e privada de grande parte do trabalho reprodutivo, e porque precisa precarizar mais e mais a reprodução social sem produzir revolta significativa. Segundo, cria uma irmandade artificial entre homens da classe trabalhadora e homens da burguesia, vendendo a ideologia da “família ideal”, em que o homem sustenta financeiramente a casa e a mulher só faz trabalho doméstico, é responsável por manter a vida de todos da casa — uma realidade que nunca existiu para a classe trabalhadora, mas que é forte na mente dos homens: quando algo falta em casa, quando falta creche e as crianças não conseguem ser bem-cuidadas; quando a água é privatizada e a família tem sede, a responsável por manter as pessoas vivas é a mulher, ela recebe a revolta em forma de violência — e não a burguesia. 

Para os homens trans, pelo menos para grande parte dos homens trans da classe trabalhadora, a situação é, de certa forma, diferente. O sistema e o capital, geralmente, não precisam nem querem conceder a eles os mesmos benefícios materiais relativos em relação às mulheres trabalhadoras que os homens cis tem. Porque, (de novo) geralmente, não os usa para os mesmos objetivos que os homens cis. É interessante ter uma hombridade “subordinada”, para uma série de coisas: colocar em situações ou trabalhos que a maioria dos homens cis e a maioria das mulheres cis não aceitariam tão facilmente— por exemplo, trabalhos “masculinos” muito “feminizados” para os homens cis e muito “masculinizados” para mulheres cis, por exemplo; utilizar como exército de reserva; e uma série de outras coisas. Enfim, o fato de ser homens *trans*, e seus corpos e identidades terem outro papel para o sistema, determina que sua hombridade seja distinta, embora ainda hombridade. Assim como homens burgueses, proletários; brancos e negros; são todos homens, embora nenhum deles tenha  características comuns visíveis que os unam — o que os une é justamente os benefícios relativos concedidos pelo sistema quanto às mulheres (relativos exatamente porque são em relação a outras populações oprimidas em certos contextos, como os homens negros trabalhadores cis em relação às mulheres negras trabalhadoras cis no trabalho produtivo e reprodutivo; embora os primeiros sejam, geralmente, mais mortos, presos e torturados que as últimas em termos numéricos); e a ideologia da irmandade masculina que surge diretamente das necessidades do sistema e que é reproduzida diariamente. Como toda a ideologia, ela não precisa refletir perfeitamente a realidade — homens trans podem não experimentar nem mesmo uma parte dos benefícios que os homens cis tem em relação às mulheres, mas podem ser violentos e misóginos, por exemplo, contra mulheres trans; guiados pela ideologia da irmandade masculina e pela expectativa de que essa violência lhes conceda um lugar mais próximo aos homens cis. Alguns conseguem, de fato, esse lugar mais próximo — e alguns de seus benefícios (principalmente em relações interpessoais no âmbito “privado”, no trabalho doméstico, ou em espaços, por exemplo, trans-inclusivos, em que suas identidades são respeitadas e podem ascender de status.) — o que mostra que a ideologia reflete uma parte da realidade. Mas não toda. Esse lugar mais próximo é muito frágil, e esses benefícios que podem vir a receber ajudam a fortalecer o mesmo sistema que produz a própria opressão deles: o único motivo de precisarem de benefícios em relação a outros é justamente a opressão, a situação de desigualdade enraizada.

Por isso que precisamos sempre analisar as relações de gênero se atentando para seu posicionamento na totalidade de relações sociais que compõem a nossa sociedade, a nossa vida, a forma como ela é socialmente produzida e reproduzida. Se não fizermos isso, vamos acabar cometendo erros crassos; subsistindo a realidade por abstrações; apagando pessoas; baseando nossa política em suposições que não ultrapassam a esfera subjetiva; fragmentando lutas etc. A ideia de um sistema de gênero autônomo que opõe homens e mulheres igualmente privilegiados de um lado e de outro, ou então, que meramente se conecta com os outros sistemas mas que sobrevive sozinho ou poderia sobreviver sozinho etc. é um ótimo exemplo. Essa ideia é um reflexo da ideologia da irmandade ou comunidade de gênero que o sistema reproduz o tempo todo. Mas, olhando pro todo, vemos que não é bem assim. 

REFERÊNCIAS

Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo, de Cinzia Arruzza (disponível no TraduAgindo).

Feminismos interseccional e da reprodução social: por uma ontologia integrativa, de Susan Ferguson

“Intersections and Dialectics: Critical Reconstructions in Social Reproduction Theory” de David McNally (está no livro Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression, org. Tithi Bhattacharya)

“Sexual Politics: The Social Reproduction of Sexuality” de Alan Sears (está no mesmo livro)

Essa entrevista https://marxismocritico.com/2017/10/17/social-reproduction-beyond-intersectionality/amp/

O livro “Politics of Everybody: Feminism, Marxism and Queer Theory at The Intersection”, em especial os capítulo 3 e 4, que tem várias partes falando sobre o papel de pessoas trans, lgbt, queer etc. para o capitalismo. A seção “The vector model of oppression”, do capítulo 3, em específico, critica toda essa lógica que citei coerentemente.

““Women’s Work”? Women Partners of Transgender Men Doing Housework and Emotion Work” de Carla A. Pfeffer and Ralph LaRossa. Esse artigo é sobre um estudo feito com casais formados por homens trans e mulheres cis e a divisão de trabalho reprodutivo em seus respectivos relacionamentos.

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