Trecho do primeiro capítulo do livro “Crowds and Party” (Multidões e Partido, em tradução livre), de Jodi Dean, publicado em inglês pela Verso Books em 2016.
Arte da capa de Edward Hopper.
Tradução de Andrey Santiago.
A intensificação do capitalismo amplifica pressões no e pelo indivíduo. Essas pressões são políticas: o indivíduo é convocado para expressar sua opinião, falar por ela mesma, se envolver. A ela é dito que ela, sozinha, pode fazer a diferença. Suas respostas para demandas onipresentes por retorno tomam o lugar da ação coletiva, colocada enquanto ou impossível ou muito repressiva para constituir uma real alternativa. As pressões no indivíduo também são econômicas: até mesmo na ausência de uma mobilidade social significativa, o indivíduo é ofertado enquanto o determinante mais significativo pelo sucesso ou fracasso. Em mercados de trabalho competitivos, atrair compradores de sua força de trabalho é um desafio. A pessoa tem que se distinguir para ser contratada ou, para alguns de nós, para manter a fantasia de algo como uma competição justa (seria horrível pensar que toda aquela dívida seria por nada). Não é difícil de imaginar que o capitalismo comunicativo nos impulsiona para a singularidade: somos os produtos que fazemos de nós mesmos. Ao mesmo tempo, a especialização sustenta os interesses dos marqueteiros por um acesso ainda mais granular pelos consumidores, esforços policiais para localizar e rastrear, e a preocupação do capital de prevenir pessoas de aderirem em uma luta comum. A identificação é inseparável da vigilância, personalização é absorvida no comércio. A injunção do capitalismo para individualizar é a arma mais poderosa de seu arsenal.
As pressões também são psicológicas, como já observamos. Franco Berardi destaca que “a conquista do espaço interno, do mundo interior, da vida da mente” é endêmica para o capitalismo comunicativo. Intensificação informacional e aceleração temporal saturam nossa atenção para “níveis patológicos”. Berardi associa o pânico, agressividade, depressão, e o medo com essa saturação. Ele encontra esses sintomas em ondas de suicídio, ascendente uso de Viagra entre aqueles que não tem tempo para afetos, ternuras e preliminares sexuais, “milhões de caixas de Prozac são vendidas todo mês, a epidemia de transtornos de atenção entre jovens, a difusão de drogas como Ritalina para crianças na escola, a propagação da epidemia do pânico.” Pessoas respondem a sobrecarga com drogas e tecnologia, tentando fazer mais, ser mais, mantendo-se atualizadas e no topo, mas a pressão é implacável. Quanto mais fazem, mais se espera que façam ainda mais. Inundado sob a superprodução de signos, o receptor humano é sobrecarregado ao ponto de colapso.
Eu concordo com muita da descrição de Bernardi, mas eu gostaria de sugerir uma abordagem alternativa para as psicopatologias que ele observa. Drogas, depressão, TDH, e pânico não são meramente patologias. São também defesas. A verdadeira patologia é a forma individual em si mesma. Drogas tentam mantê-la, fazê-la funcionar. O indivíduo é patológico no sentido de que é incompatível com o seu ambiente, incapaz de responder às pressões que encontra sem dor, sacrifício ou violência (a psicanálise se origina dessa visão, daí a primazia da castração). O problema da subjetividade contemporânea surge não dos extremos do capitalismo que se fundiram com os mais fundamentais componentes da comunicatividade. Não é que os circuitos saturados, intensificados e insuportáveis do capitalismo comunicativo estão nos tornando depressivos, ansiosos, autistas, ou distraídos e que precisamos encontrar maneiras de preservar e proteger nossas frágeis individualidades. Depressão, ansiedade, autismo, e hiperatividade sinalizam o colapso de uma forma que em si mesma sempre foi um problema, uma mobilização de processos de individuação e interiorização em uma volta reflexiva para dentro que quebra conexões e enfraquece a força coletiva. A forma indivíduo não está sob ameaça. Ela é a ameaça. E agora está enfraquecendo.
Em Juntos Sozinhos: Porque Nós Esperamos mais da Tecnologia e Menos dos Outros (em tradução livre), Sherry Turkle documenta alguns dos meios que as mídias sociais fornecem alívio das expectativas individuais. Para ser precisa, ela não descreve suas descobertas em termos de tais alívios. Em vez de interpretar a forma individual enquanto um problema, ela apresenta-a como uma vulnerabilidade que necessita de proteção. Então, ela ecoa as injunções dominantes para a individualidade. Entretanto, suas explorações da “vida em rede e seus efeitos na intimidade e solidão, sob a identidade e privacidade” abrem caminhos que ela não segue, caminhos para a coletividade.
Relatando sobre suas entrevistas com adolescentes, Turkle descreve jovens pessoas esperando por conexão, com medo de abandono, e dependentes de respostas imediatas dos outros para até mesmo ter sentimentos. Por exemplo, Claudia de dezessete anos tem sentimentos felizes assim que começa a mandar uma mensagem de texto. Ao contrário de antigas gerações que poderiam ligar para alguém para falar de seus sentimentos, quando Claudia quer ter um sentimento, ela envia uma mensagem. Turkle relata as ansiedades que as pessoas expressam sobre tanto interações cara a cara quanto expectativas associadas com o telefone, isto é, para dizer, sobre conversar com outra pessoa em tempo real. As multitarefas inseparáveis da comunicação contemporânea, o fato de as pessoas estarem mandando mensagens e falando simultaneamente, olhando para outra coisa enquanto ostensivamente ouvem o interlocutor, implanta uma incerteza se o outro está realmente prestando atenção. Combinada com as pressões por respostas imediatas e o conhecimento de que “a internet nunca esquece” (a maioria de nós é incapaz de eliminar todos os traços de nossas identidades digitais depois que foram carregadas, arquivadas e compartilhadas), nossa intimidade com a tecnologia, Turkle demonstra, está afetando todos os tipos de identidade que nos tornamos. Nós experenciamos a solidão, privacidade, conexão e outros de formas diferentes do que experienciávamos antes.
Para Turkle, essas novas experiências são patológicas. Extraindo do trabalho de Erik Erikson sobre a identidade pessoal, ela argumenta que as tecnologias em rede inibem um tipo de separação necessária para a maturidade. Os pais estão sempre ao alcance, disponíveis, mesmo que eles não estejam realmente presentes por si mesmos sobrecarregados, distraídos e além de seus limites. Pessoas jovens não aprendem como ficar sozinhas, como refletir sobre suas emoções em privado. Frágeis e dependentes, elas falham em desenvolver um senso de quem elas são e o que precisam ter “antes” de “forjar parcerias de vida de sucesso”. Em vez de direcionada-para-o-interior e autônoma (Turkle referencia David Riesman), a cultura de celulares móveis e mensagens instantâneas elevou o direcionamento-para-o-outro para um “poder maior”. A expectativa de constante conectividade elimina oportunidades de solidão mesmo quando as pessoas estão “cada vez mais inseguras, isoladas e sozinhas.” Turkle conclui, “Solidão é a solitude fracassada. Para experienciar a solitude, você deve ser capaz de invocar a si mesmo”; caso contrário você só saberá como ser solitário.”
Não há nada surpreendente sobre a consideração de Turkle sobre os “eus amarrados” contemporâneos. De seu diagnóstico de narcisismos para suas preocupações sobre o constante e até mesmo viciante caráter das comunicações em rede, ela repete bem-conhecidas críticas de adolescentes, mídia, e cultura contemporânea. Mas a linguagem que Turkle emprega quando ela fala sobre a solitude sinaliza algo a mais do que atualizar a critica do narcisismo cultural da era em rede. Ela usa a segunda pessoa – “você deve ser capaz de invocar a si mesmo” – e muda de um modo descritivo para um modo imperativo: “você deve” se você quer conhecer algo a mais do que ser solitário. Turkle se sustenta neste modo porque ela descreveu o indivíduo reflexivo enquanto ameaçado pelas tecnologias em rede. Ela quer que nós juntemos a ela na defesa do indivíduo desta ameaça. Dirigindo-se diretamente ao leitor, ela insiste que o indivíduo reflexivo seja escorado (mesmo enquanto ela rejeita as formas tecnologicamente mediadas de escorar enquanto patológicas). Para Turkle, uma identidade que é menos acorrentada, mais expansiva, menos separada, mais conectada, é imatura, no risco da solidão. Ela precisa formar sua identidade, separar a si mesma dos outros, e passar pelos estágios de se tornar um indivíduo.
O que Turkle liga a tecnologia, Dany-Robert Dufour (em A Arte de Encolher Cabeças) liga a aceleração do processo de individuação de forma mais ampla, particularmente em conexão com o declínio da eficiência simbólica ou mudança na estrutura do simbólico. O sujeito contemporâneo, ele diz, é convocado a criar a si mesmo. Dufour repete em um registro Lacaniano descobertas que nós já encontramos no trabalho das sociólogas Silva e Lane, a saber, a sobrecarga sob o indivíduo das anteriores responsabilidades coletivas e expectativas. Ao fim do século vinte, em um ambiente que Dufour caracteriza enquanto pós-moderno e neoliberal, o “Eu” é completamente auto-referencial, fundamentado em nada exterior a ele, dependente do conhecimento de ninguém. Mas onde Dufour lida com a impossibilidade de auto-individuação, localizando a intensificação da injunção para ser um indivíduo na aliança entre o imaginário e o Real na esteira do declínio da eficiência simbólica, Turkle repete o comando: “você deve ser capaz de invocar a si mesmo”.
Os entrevistados de Turkle descrevem a si mesmos de maneiras que se esfregam contra as próprias preocupações de Turkle com a separação e individuação. Por exemplo, uma enfermeira, cansada depois de oito horas de trabalho e uma segunda jornada em casa, diz que quando ela entra no Facebook ela se sente menos sozinha. Um universitário explica, “Eu sinto que sou parte de algo maior, da internet, da Web. Do mundo. Se torna algo para mim, uma coisa da qual faço parte. E as pessoas, também. Eu paro de vê-los enquanto indivíduos, realmente. Eles são parte dessa coisa maior.” As palavras do estudante aqui ressoam com uma frase de Félix Guatarri: “O engajamento coletivo é de uma vez o sujeito, o objeto e a expressão. Não mais o indivíduo é sempre o ponto de referência para as significações dominantes.” O universitário sente que ele mesmo e outros são parte de uma maior coletividade de tal modo que ver ele mesmo e os outros enquanto separados, enquanto indivíduos, não faz sentido; se perde a conexão que surge de seus engajamentos mútuos.
Para Turkle, entretanto, a conectividade é tão patológica que ela demonstra bioquimicamente, como um vício. Seu argumento tem como base o trabalho de Mihaly Csikszentmihalyi sobre o “fluxo”. A maioria das referências sobre o fluxo são positivas, descrições de uma desejável experiência de foco, envolvimento e imersão. Turkle, contudo, é crítica: “No estado de fluxo, você é capaz de agir sem autoconsciência” (como eu escrevo a seguir e exploro em grande detalhe no próximo capítulo, essa ausência de autoconsciência é um atributo que teóricos das multidões associam com estar em um grupo, massa, ou multidão). Para Turkle, agir sem autoconsciência é um problema porque “você pode ter isso enquanto manda uma mensagem ou um e-mail ou durante uma tarde no Facebook” (novamente, o uso do pronome na segunda pessoa aponta a tentativa de Turkle de nos implicar nas praticas que estão nos ameaçando e devem ser combatidas). Misturar jogo e vida real, isto é, verdadeiros jogos como World of Warcraft, com e-mail e Facebook, Turkle explica, “Quando a vida online se torna seu jogo, existem novas complicações. Se solitário, você pode encontrar uma conexão contínua. Mas isto pode te deixá-lo mais isolado, sem pessoas reais ao seu redor. Então você pode retornar para a Internet apenas para uma nova sensação do que parece ser uma conexão.” Ela usa a neuroquímica para justificar a linguagem do vício:
“Nossa resposta neuroquímica para cada notificação e toque de chamada parece ser aquela que é provocado pelo desejo de “querer”, uma profunda motivação da psique humana. A conectividade se torna uma ânsia; quando recebemos uma mensagem ou um e-mail, nosso sistema nervoso responde nos dando uma injeção de dopamina. Somos estimulados pela conectividade em si mesma. Aprendemos a requisitá-la, mesmo quando ela nos esgota.”
O tratamento patologizante da conectividade de Turkle borra a interação com as máquinas – celulares, computadores – com interação com pessoas. Nosso cérebro reage a sons liberando – injetando – dopamina. Mas em vez dessa reação ser um valioso reforço de nossas conexões com os outros, é um perigoso estimulante que ansiamos. Respostas neuroquímicas felizes ao ver pessoas cara a cara seriam similarmente suspeitas? Seria a emoção de contato com outros em uma festa, em um protesto, em um show, ou em uma multidão também em risco de se tornar uma ânsia dado que tal intenso e exigente contato também pode nos esgotar?
Se não dermos prioridade normativa para o indivíduo enquanto a própria ou exclusiva forma de subjetividade, podemos ler a evidência que Turkle oferece diferentemente. Podemos ler ela como uma indicação de que a forma política de separação e de cerceamento está mudando, mutando, se tornando algo diferente. Michael Hardt e Antonio Negri seguem Gilles Deleuze ao descreverem essa mudança enquanto uma passagem da sociedade disciplinaria para a sociedade do controle. Eles apontam como as lógicas disciplinarias funcionavam primariamente dentro das instituições da sociedade civil para produzir sujeitos individuados. Ao fim do século vinte, instituições disciplinadoras e mediadoras – a família nuclear, a escola, o sindicato, a igreja – estava em crise (o narcisismo cultural de Lasch é um diagnóstico dessa crise). Os espaços, lógicas, práticas e normas anteriormente que coalesciam em instituições sociais e econômicas colapsaram e se separaram. Em algumas instâncias, a libertação de algumas lógicas institucionais de suas restrições espaciais deu a elas ainda mais força; em outras instâncias, o oposto ocorreu. Dessa maneira, Hardt e Negri argumenta que a pervasiva dissolução institucional tem sido acompanhada por uma “indeterminação da forma que as subjetividades são produzidas.” Hardt e Negri concluem que o indivíduo burguês – o cidadão-sujeito de uma esfera autônoma, o sujeito disciplinado da sociedade civil, o sujeito liberal que deseja votar em publico e depois retornar para seu lar em uma domesticidade privada – não é mais capaz de servir enquanto um pressuposto para teoria ou ação. Eles sugerem que no seu lugar, nós encontremos subjetividades fluídas, híbridas e móveis que são indisciplinadas, que não tenham internalizadas normas específicas ou restrições, e que agora podem ser apenas controladas.
Hardt e Negri estão corretos em apontar as mudanças nos ambientes que produziram o indivíduo burguês. Ainda assim, eles subestimam a emergente ferocidade da individualidade comandada. Suas subjetividades fluídas, híbridas e móveis aparecem como um loci de liberdade, como se sua singularidade fosse uma propriedade natural em vez de a si mesma intimada, inscrita e tecnologicamente gerada a serviço do capitalismo. Enquanto o declínio da disciplina enfraqueceu as estruturas de individuação, novas técnicas mediadas tecnologicamente de individuação tomaram seu lugar. Um fácil exemplo (um proeminente na discussão de Turke) é a adoção de celulares como dispositivos de comunicação pessoal para crianças. Possibilitando pais para manter o controle à distância, celulares se inserem na direta supervisão e contato que vem diminuindo durante a ascensão de cada vez mais demandas de trabalho dos pais, particularmente para mães. Adicionais técnicas e tecnologias de individuação incluem a competição em mercados de trabalho intensificados já que eles induzem uma relação de marketing voltada a si mesmo; anúncios direcionados que urgem consumidores a se diferenciar e especificar a si mesmos; tecnologias de localização associadas com celulares e GPS; cookies e outras técnicas de recolhimento de informações associadas com transações na internet; injunções políticas para participação pessoal; e, nos EUA, uma cultura política baseada em direitos com foco na identidade pessoal, dano, e exclusão em oposição a comum, coletiva e sistêmica injustiça – dentro dessa cultura, problemas sistêmicos como a exploração no ambiente de trabalho e amplificada dívidas pessoais são tratadas como efeitos de escolhas individuais, preferenciais e sorte. A fluidez que Hardt e Negri observam, então, é acompanhada pelas tecnologias e práticas da individualidade comandada. O resultado é que a expectativa de uma individualidade única exerce demandas que são tão constantes e inflexíveis quanto são impossíveis de alcançar.
Que as jovens pessoas que Turkle entrevista expressam ansiedades associadas com autonomia e conexão não é surpreendente. Elas são intimadas a individualidade, ditas que cada indivíduo é a si mesmo, auto-criador, auto-responsável; o indivíduo nasce sozinho e morre sozinho; você não pode confiar em ninguém além de você mesmo. Porém, as tecnologias que avançam a individuação – smartphones, tablets, laptops – e as plataformas que as encorajam – Twitter, Facebook, Instagram, Tumblr – providenciam ao mesmo tempo uma fuga e uma alternativa para a individuação: conexão aos outros, coletividade.