bell hooks – Comunidade: uma comunhão amorosa

Oitavo capítulo do livro “Tudo sobre o amor” de bell hooks, publicado pela Editora Elefante.

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Tradução por Stephanie Borges.


Uma comunidade não pode florescer em uma vida dividida. Muito antes de uma comunidade assumir uma forma e uma aparência externas, ela deve estar presente como uma semente num self íntegro: apenas se estivermos em comunhão com nós mesmos poderemos encontrar a comunidade com os outros.

— Parker Palmer

Para garantir a sobrevivência humana em todos os lugares do mundo, mulheres e homens se organizam em comunidades. Comunidades alimentam a vida — não as famílias nucleares nem o “casal”, e tampouco a dureza individualista. Não há lugar melhor para aprender a arte do amor que numa comunidade. M. Scott Peck começa o livro The Different Drum: Community Making and Peace [A batida diferente: a construção de comunidades e a paz] com uma declaração profunda: “Nas comunidades e através delas reside a salvação do mundo”. Peck define comunidade como a reunião de um grupo de indivíduos

que aprenderam como se comunicar honestamente uns com os outros, cujos relacionamentos são mais profundos que suas máscaras de compostura, e que desenvolveram o compromisso significativo de “alegrar-se juntos, lamentar juntos” e de “deleitar-se uns nos outros, transformar em suas as condições dos outros”.

Todos nós nascemos num mundo de comunidade. Raramente, talvez nunca, uma criança vem ao mundo em isolamento, com apenas um ou dois cuidadores. Crianças vêm ao mundo cercadas pela possibilidade de comunidade. Família, médicos, enfermeiros, parteiras e mesmos admiradores estranhos compõem esse campo de conexões, umas mais íntimas que as outras.

Em nossa sociedade, boa parte das discussões sobre “valores familiares” destacam a família nuclear, constituída por mãe, pai e preferencialmente um ou dois filhos. Nos Estados Unidos, essa unidade é apresentada como a organização mais importante e desejável para a criação dos filhos, aquela que garantirá o bem-estar ideal de todos. Trata-se, é claro, de uma imagem fantasiosa de família. Dificilmente alguém em nossa sociedade vive num ambiente como esse. Mesmo indivíduos criados em famílias nucleares geralmente as experimentam simplesmente como uma pequena unidade no interior de uma unidade maior formada pela família estendida. Juntos, o capitalismo e o patriarcado, como estruturas de dominação, têm feito hora extra para destruir essa unidade mais ampla de parentesco.

Substituir a comunidade da família por uma unidade autocrática menor e mais privada ajudou a aumentar a alienação e a possibilidade de abusos de poder. Isso deu controle absoluto ao pai e controle secundário, sobre as crianças, à mãe. Com o estímulo ao afastamento das famílias nucleares da família estendida, mulheres foram obrigadas a se tornar mais dependentes de um homem, e as crianças, mais dependentes de uma única mulher. É essa dependência que se tornou e continua sendo o solo fértil para os abusos de poder.

O fracasso da família nuclear patriarcal tem sido amplamente documentado. Frequentemente exposta como disfuncional, como um lugar de caos emocional, negligência e abuso, apenas aqueles em negação continuam a insistir que esse é o melhor ambiente para educar crianças. Embora eu não queira sugerir que as famílias estendidas não sejam também propensas a ser disfuncionais, em virtude de seu tamanho e da inclusão de parentes sem laços consanguíneos (isto é, indivíduos que passam a integrar a família pelo casamento), elas são diversas e, portanto, têm mais chances de incluir a presença de alguns indivíduos sãos e amorosos.

Quando comecei a falar publicamente sobre minha família disfuncional, minha mãe se enfureceu. Para ela, minhas realizações eram um sinal de que eu não poderia ter sofrido “tanto assim”. No entanto, sei que sobrevivi e prosperei, apesar das dores da minha infância, precisamente porque havia indivíduos amorosos em nossa família estendida que me nutriram e me deram um senso de esperança e possibilidade. Eles mostraram que as interações da nossa família não constituíam a norma, que havia outros jeitos de pensar e de se comportar, diferentes dos padrões considerados aceitáveis em nossa casa. Essa história é comum. Sobreviver e triunfar diante de famílias disfuncionais por vezes depende da presença do que a psicanalista Alice Miller chama de “testemunhas iluminadas”. Praticamente todo adulto que experimentou sofrimento desnecessário na infância tem uma história para contar de alguém cuja bondade, ternura e preocupação restauraram seu senso de esperança. Isso só pôde acontecer porque essas famílias existiam como parte de comunidades maiores.

A familiar nuclear patriarcal e privada é uma forma de organização social relativamente recente. A maioria dos cidadãos do mundo não tem e nunca terá os recursos materiais para viver em pequenas unidades separadas de comunidades familiares maiores. Estudos apontam que, nos Estados Unidos, fatores econômicos (o alto custo das moradias, o desemprego) estão rapidamente criando um clima cultural em que filhos crescidos saem de casa mais tarde e muitas vezes regressam, ou nunca saem. Pesquisas de antropólogos e sociólogos indicam que pequenas unidades privadas, especialmente aquelas organizadas em torno do pensamento patriarcal, são ambientes pouco saudáveis para todos. Mundialmente, a criação de filhos esclarecida, saudável, é mais bem realizada no contexto das redes da comunidade e da família estendida.

A família estendida é um bom lugar para aprender o poder da comunidade. Contudo, ela só pode se tornar uma comunidade se houver comunicação honesta entre seus indivíduos. Famílias estendidas disfuncionais, assim como as unidades menores das famílias nucleares, costumam ser caracterizadas por terem uma comunicação turva. Manter segredos familiares geralmente impossibilita que grupos estendidos construam uma comunidade. Havia uma propaganda com o seguinte slogan: “Família que ora unida permanece unida”. Uma vez que a oração é uma forma de comunicação, isso sem dúvidas ajuda seus membros a permanecerem vinculados. Eu me lembro de ouvir esse slogan quando criança, geralmente em situações nas quais figuras de autoridade nos forçavam a orar, e de modificá-lo para: “Família que conversa unida permanece unida”. Conversar é uma forma de criar comunidade.

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Se não experimentamos o amor em nossas famílias estendidas de origem (o primeiro âmbito de comunidade que nos é oferecido), o outro âmbito onde as crianças, em particular, têm oportunidade de construir uma comunidade e conhecer o amor é no da amizade. Uma vez que escolhemos nossos amigos, muitos de nós, da infância à vida adulta, temos nos voltado para eles em busca de carinho, respeito, conhecimento e do empenho geral para promover o nosso crescimento que não encontramos na família. Em seu comovente livro de memórias, Never Let Me Down [Nunca me decepcione], Susan Miller recorda:

Eu ficava pensando: o amor deve estar aqui, em algum lugar. Eu olhava e olhava dentro de mim, mas não conseguia encontrá-lo. Eu sabia o que o amor era. Era o sentimento que eu tinha pelas minhas bonecas, por coisas bonitas, por certos amigos. Anos depois, quando conheci Debbie, minha melhor amiga, tive ainda mais certeza de que o amor era o que fazia você se sentir bem. O amor não era o que fazia você se sentir mal, se odiar. Era o que confortava, o que libertava por dentro, o que fazia sorrir. As vezes, Debbie e eu brigávamos, mas era diferente, porque estávamos basicamente, essencialmente, conectadas.

Amizades amorosas nos dão espaço para experimentarmos a alegria da comunidade num relacionamento em que aprendemos a processar todos os nossos problemas, a lidar com diferenças e conflitos enquanto nos mantemos vinculados.

A maioria de nós é educada para acreditar que encontraremos o amor em nossa primeira família (nossa família de origem) ou, se não lá, na segunda família, que se espera que formemos comprometendo-nos em relacionamentos amorosos, particularmente aqueles que levam ao casamento e/ou a vínculos que durem a vida inteira. Muitos de nós aprendem ainda na infância que amizades nunca deveriam ser vistas como tão importantes quanto laços familiares. Entretanto, a amizade é o espaço em que a maioria de nós tem seu primeiro vislumbre de amor redentor e comunidade carinhosa. Aprender a amar em amizades nos fortalece de formas que nos permitem levar esse amor para outras interações com a família ou com laços românticos. Uma amiga querida perdeu a mãe no início da vida adulta. Uma vez, enquanto eu reclamava da minha mãe discutindo comigo, ela contou que daria qualquer coisa para ouvir a voz da mãe chamando sua atenção. Encorajando-me a ser paciente, falou da dor de perder a mãe e de como desejava que elas tivessem se esforçado mais para encontrar um lugar de comunicação e reconciliação. Suas palavras me lembravam de ter compaixão, de me concentrar no que eu realmente gosto em minha mãe. Nas amizades, podemos ouvir comentários honestos e críticos. Nós confiamos que um amigo verdadeiro deseja o nosso bem. Minha amiga quer que eu aproveite a presença da minha mãe.

É comum não darmos o devido valor às amizades, mesmo quando elas são interações nas quais experimentamos prazer mútuo. Nós as colocamos numa posição secundária, especialmente em relação a laços românticos. Essa desvalorização das amizades cria um vazio que podemos não ver quando devotamos toda a nossa atenção a encontrar alguém para amar romanticamente, ou quando damos toda a nossa atenção para alguém que escolhemos amar. Há muito mais chances de relacionamentos românticos se tornarem co-dependentes quando cortamos todos os nossos laços com amigos para dar atenção exclusiva a essas relações que consideramos primárias. Eu já me senti especialmente devastada quando amigos íntimos até então solteiros se apaixonaram e simultaneamente se afastaram de nossa amizade. Quando uma de minhas melhores amigas escolheu um companheiro que não se deu tão bem comigo, isso me magoou. Eles não só começaram a fazer tudo juntos, como ela ficou mais próxima dos amigos de quem ele gostava.

A força de nossa amizade foi revelada pela nossa disposição de confrontar abertamente a alteração em nossos laços e fazer as mudanças necessárias. Não nos vemos tanto quanto antes, e não telefonamos uma para a outra diariamente, mas os laços positivos que nos unem permanecem intactos. Quanto mais verdadeiros nossos amores românticos, menos nos sentimos compelidos a enfraquecer ou cortar laços com amigos para fortalecer os vínculos com nossos parceiros. A confiança é a pulsação do amor verdadeiro. E nós confiamos que a atenção que nossos parceiros dão aos amigos e vice-versa não tira nada de nós — não nos diminui. O que aprendemos com a experiência é que nossa capacidade de estabelecer conexões de amizade profundas fortalece todos os nossos laços íntimos.

Quando vemos o amor como o desejo de alimentar o próprio crescimento espiritual ou o de alguém, demonstrado por gestos de carinho, respeito, conhecimento e tomada de responsabilidade, a base de todo o amor em nossa vida é a mesma. Não há amor especial reservado exclusivamente para parceiros românticos. O amor verdadeiro é a base de nosso envolvimento com nós mesmos, com a família, com os amigos, com companheiros, com todos que escolhemos amar. Embora necessariamente nos comportemos de forma diferente dependendo da natureza da relação, ou tenhamos diferentes graus de compromisso, os valores que orientam nosso comportamento, quando baseados numa ética amorosa, são sempre os mesmos para cada interação. Em um dos relacionamentos românticos mais longos da minha vida, me comportei da maneira mais tradicional, colocando-o acima de todas as outras interações. Quando ele se tornou destrutivo, achei difícil ir embora. Eu me vi aceitando comportamentos (abuso físico e verbal) que não toleraria em uma amizade.

Fui criada de forma convencional para acreditar que esse relacionamento era “especial” e deveria ser reverenciado acima de todos os outros. A maioria dos homens e das mulheres nascidos nos anos 1950 ou antes era socializada para passar que casamentos e/ou compromissos românticos de qualquer tipo deveriam ter prioridade sobre todos os outros relacionamentos. Se eu tivesse avaliado meu relacionamento de um ponto de vista que enfatizasse o crescimento em vez do dever e da obrigação, teria compreendido que o abuso enfraquece irreparavelmente os laços. É muito comum as mulheres acreditarem que é um sinal de compromisso, uma expressão de amor, suportar grosseria ou crueldade, perdoar e esquecer. Na realidade, quando amamos corretamente, sabemos que a resposta saudável e amorosa à crueldade e ao abuso é nos retirarmos do caminho dos danos. Ainda que em minha juventude eu fosse uma feminista comprometida, tudo o que eu sabia e no que acreditava politicamente a respeito da igualdade foi, por um tempo, obscurecido por uma educação familiar e religiosa que tinha me socializado para acreditar que tudo deve ser feito para salvar “o relacionamento”.

Em retrospecto, vejo como a ignorância em relação à arte de amar pôs o relacionamento em risco desde o começo. Nos mais de catorze anos em que ficamos juntos, estivemos muito ocupados repetindo velhos padrões aprendidos na infância, agindo a partir de informações equivocadas sobre a natureza do amor, em vez de percebermos as mudanças que precisaríamos fazer em nós mesmos para sermos capazes de amar outra pessoa. Notadamente, como muitas outras mulheres e homens (independentemente de sua orientação sexual) que estão em relacionamentos nos quais são objetos de terrorismo íntimo, eu teria sido capaz de sair desse relacionamento antes ou de me recuperar em seu interior se eu tivesse trazido para essa relação o nível de respeito, cuidado, conhecimento e responsabilidade que eu trazia para minhas amizades. Mulheres que não tolerariam amizades em que fossem emocional e fisicamente abusadas permanecem em relacionamentos românticos em que essas violações acontecem com regularidade. Se trouxessem para esses vínculos os mesmos padrões que levam para suas amizades, não aceitariam a vitimização.

Naturalmente, quando saí desse relacionamento de longa duração, que tinha me tomado tanto tempo e energia, eu estava terrivelmente sozinha e solitária. Compreendi então que era mais gratificante viver a vida num círculo de amor, interagindo com as pessoas amadas com quem nos comprometemos. Muitos de nós aprendem essa lição da pior maneira, ao nos vermos sozinhos e sem conexões significativas com amigos. E são as experiências de viver o medo do abandono em relações românticas e de ser abandonado que nos mostraram que os princípios do amor são sempre os mesmos em qualquer vínculo significativo. Amar bem é a tarefa em todas as relações significativas, não apenas nos laços românticos. Conheço indivíduos que aceitam desonestidade em suas relações mais importantes, ou que são eles próprios desonestos, quando jamais aceitariam isso vindo de seus amigos. Amizades satisfatórias nas quais compartilhamos amor mútuo nos oferecem um guia de comportamento para outras relações, incluindo as românticas. Elas dão a nós todos uma maneira de conhecer a comunidade.

Dentro de uma comunidade amorosa, sustentamos laços por meio da compaixão e do perdão. Em Life is for Loving: Discover the Healing Power of Love [A vida é para amar: descubra o poder curativo do amor], Eric Butterworth apresenta um capítulo sobre “o amor e o perdão”. Com perspicácia, ele observa:

Não conseguimos persistir sem amor e não há outra maneira de regressar a um amor curativo, reconfortante e harmonioso que não seja por meio de um perdão total e completo: se queremos liberdade e paz e a experiência de amar e ser amado, devemos deixar as coisas para trás e perdoar.

O perdão é um ato de generosidade. Ele exige que coloquemos a libertação de outra pessoa da prisão de sua própria culpa ou angústia acima de nossos sentimentos de ofensa ou raiva. Ao perdoarmos, abrimos caminho para o amor. É um gesto de respeito. O verdadeiro perdão exige que compreendamos as ações negativas dos outros.

Embora o perdão seja essencial para o crescimento espiritual, ele não faz com que tudo fique bem ou maravilhoso imediatamente. Com frequência, livros new age sobre o amor fazem parecer que tudo será sempre maravilhoso, basta que estejamos amando. De modo realista, ser parte de uma comunidade amorosa não significa que não vamos encarar conflitos, traições, ações positivas com resultados negativos ou coisas ruins acontecendo com pessoas boas. O amor nos permite enfrentar essas realidades negativas de uma forma que afirma e eleva a vida. Quando uma colega cujo trabalho eu admirava, alguém que eu considerava amiga, por razões que nunca ficaram claras para mim, começou a escrever críticas maldosas atacando os meus livros, fiquei chocada. Suas críticas eram cheias de mentiras e exageros. Eu tinha sido uma amiga cuidadosa. As atitudes dela me magoaram. Para curar essa dor, comecei uma identificação empática com ela, para poder entender quais seriam suas motivações. Em Forgiveness: A Bold Choice for a Peaceful Heart [Perdão: uma escolha ousada para um coração em paz], Robin Casarjian explica:

O perdão é um modo de vida que gradualmente nos transforma do estado de vítimas indefesas de nossas circunstâncias em seres poderosos e amorosos “cocriadores” de nossa realidade. […] É o esmorecimento dessas percepções que nublam a nossa capacidade de amar.

Por meio da prática da compaixão e do perdão, fui capaz de preservar minha admiração pelo trabalho dela e lidar com o luto e a decepção que sentia em relação à perda desse relacionamento. Praticar a compaixão me permitiu compreender por que ela agiu daquela maneira e perdoá-la. Perdoar significa que eu ainda sou capaz de vê-la como membro da minha comunidade, alguém que tem um lugar no meu coração, se quiser retomá-lo.

Todos nós ansiamos por uma comunidade amorosa. Ela eleva a alegria da vida. No entanto, muitos de nós buscam a comunidade apenas para escapar do medo da solidão. Saber como estar sozinho é central para a arte de amar. Quando somos capazes de ficar sozinhos, podemos estar com os outros sem usá-los como válvula de escape. Ao longo de sua vida, o teólogo Henri Nouwen enfatizou o valor do recolhimento. Em muitos de seus livros e ensaios, ele nos desencorajava a ver o recolhimento como uma necessidade de privacidade, compartilhando a percepção de que, ao estarmos sós, encontramos o lugar onde podemos olhar para nós verdadeiramente e abandonar o falso self. Em seu livro Reaching Out [Alcançar], ele destaca que a “solidão é uma das fontes mais universais do sofrimento humano hoje.”

Nouwen aponta que “não há amigo ou amante, esposo ou esposa, comunidade ou comuna capaz de amainar nossos desejos mais profundos por unidade e integridade”. Sabiamente, ele sugere que acalmemos esses sentimentos abraçando o estar só, permitindo que o espírito divino se revele ali:

A estrada difícil é a estrada da conversão, a conversão da solidão em recolhimento. Em vez de fugirmos de nossa solidão e de tentar esquecê-la ou negá-la, temos que protegê-la e transformá-la num recolhimento proveitoso. […] A solidão é dolorosa, o recolhimento é pacífico. A solidão faz com que nos apeguemos aos outros por desespero; o recolhimento nos permite respeitar os outros no que eles têm de singular e criar uma comunidade.

Quando as crianças são ensinadas a aproveitar o tempo de quietude, a estar sozinhas com seus pensamentos e devaneios, elas levam essa habilidade para a vida adulta. No esforço para superar o medo de ficarem sozinhos, jovens, adultos e idosos frequentemente adotam a prática da meditação como uma forma de abraçar o estar só. Aprender como se “sentar” quieto, parado, pode ser o primeiro passo para conhecer o conforto de estar sozinho.

O movimento que parte do estar só para a comunidade aumenta a nossa capacidade de companheirismo. Por meio do companheirismo, aprendemos como servir uns aos outros. O serviço é outra dimensão do amor comunal. No fim de sua autobiografia, A roda da vida, Elisabeth Kübler-Ross enfatiza: “Posso garantir que as maiores recompensas da vida inteira virão do fato de vocês abrirem seus corações para os que estão precisando. As maiores bênçãos vêm sempre de ajudar os outros”. Mulheres têm sido e são as grandes professoras do mundo acerca do significado do servir. Nós honramos publicamente a memória de mulheres excepcionais como Madre Teresa, que fizeram do servir a sua vocação, mas há outras, em toda parte, cujas identidades nunca serão reconhecidas publicamente, que servem com paciência, graça e amor. Todas nós podemos aprender com o exemplo dessas mulheres caridosas.

Anteriormente, mencionei minha impaciência em relação à minha mãe. Refletindo sobre a vida dela, fui surpreendida pelo quanto serviu aos outros. Ela me ensinou, e a todos os seus filhos, o valor e o significado de servir. Na infância, testemunhei seu cuidado e paciência com os doentes e os moribundos. Ela lhes dava abrigo e cuidava deles sem reclamar. Com suas ações, aprendi o valor de dar sem esperar retribuição. Lembrar desses atos é importante. É muito fácil para todos nós esquecer dos serviços que mulheres oferecem aos outros todos os dias — os sacrifícios que as mulheres fazem. O pensamento machista com frequência obscurece o fato de que essas mulheres fazem a escolha de servir, que elas se doam a partir de um lugar de livre-arbítrio, não porque seja seu destino biológico. Há muitas pessoas que não estão interessadas em servir, que desprezam a caridade. Quando alguém pensa que uma mulher que serve “se doa porque é isso que as mulheres fazem”, nega sua humanidade completa e, assim, falha em ver a generosidade inerente aos seus atos. Há muitas mulheres que não estão interessadas na caridade e que inclusive a desvalorizam.

A disposição para se sacrificar é uma dimensão necessária da prática do amor e da vida em comunidade. Nenhuma de nós pode ter tudo do jeito como queremos o tempo todo. Abrir mão de alguma coisa é uma maneira de sustentar um compromisso com o bem-estar coletivo. Nossa disposição de fazer sacrifícios reflete nossa consciência da interdependência. Ao escrever sobre a necessidade de diminuir o abismo entre ricos e pobres, Martin Luther King Jr. pregou: “Todos os homens [e mulheres] estão envolvidos em uma rede inescapável de mutualismo, unidos em uma mesma vestimenta do destino. O que afeta um indiretamente afeta todos os outros”. Esse abismo é reduzido pelo compartilhamento de recursos. Todos os dias, indivíduos que não são ricos, mas que são privilegiados materialmente, fazem a escolha de compartilhar com os outros. Alguns de nós fazem isso por meio do dízimo consciente (doando regularmente uma parte de nossos ganhos); outros, por meio de uma prática diária de bondade amorosa, dando para os necessitados com quem nos encontramos ao acaso. Doar mutuamente fortalece a comunidade.

Apreciar os benefícios de viver e amar em comunidade nos empodera para lidar com estranhos sem ter medo, e lhes estender o dom da abertura e do reconhecimento. O simples ato de falar com um estranho, reconhecer sua presença no planeta, cria uma conexão. Todos os dias, todos nós temos oportunidade de praticar as lições que aprendemos em comunidade. Ser bondosos e gentis nos conecta uns aos outros. No livro The Different Drum, Peck nos lembra de que o verdadeiro objetivo da verdadeira comunidade é “buscar maneiras de viver com nós mesmos e com os outros em paz e com amor”. Em contraste com outros movimentos por mudança social, que demandam se juntar a organizações e participar de reuniões, podemos começar o processo de criar comunidade onde quer que estejamos. Podemos começar com um sorriso, um cumprimento caloroso, um pouco de conversa, fazendo um ato de bondade ou reconhecendo a gentileza que nos é oferecida. Podemos trabalhar diariamente para tornar nossas famílias comunidades mais amplas. Meu irmão ficou satisfeito quando sugeri que ele pensasse em se mudar para a cidade onde moro, para que pudéssemos nos ver mais. Isso reforçou o seu sentimento de pertencimento. E fez com que eu me sentisse amada, pois ele queria estar no mesmo lugar que eu. Toda vez que ouço meus amigos falarem sobre o distanciamento em relação a seus familiares, eu os encorajo a buscar um caminho de cura, uma restauração dos laços. Num determinado momento, minha irmã, que é lésbica, sentiu que queria se afastar da família, porque os parentes eram homofóbicos com frequência. Ao mesmo tempo que concordei com a raiva e o desapontamento dela, e compartilhei desses sentimentos, também a estimulei a encontrar maneiras de se manter vinculada. Com o tempo, ela observou mudanças positivas importantes; viu o medo perder espaço para a compreensão, o que não teria acontecido se ela aceitasse o distanciamento como a única resposta para a dor da rejeição.

Sempre que curamos feridas familiares, fortalecemos a comunidade. Fazendo isso, nos engajamos em uma prática amorosa. É o amor que estabelece as bases para a construção de uma comunidade com estranhos. O amor que criamos em comunidade permanece conosco aonde quer que vamos. Orientados por esse conhecimento, fazemos de qualquer lugar um local em que podemos regressar ao amor.

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