Trecho do livro “A Luta Criou Raízes”, lançado em 2018 pela Fundação Amílcar Cabral.
O livro completo está disponível no site Marxists.
Transcrição e revisão para o português brasileiro por Andrey Santiago.
Para além do nacionalismo, a luta de vocês é fundamentada em alguma base ideológica? Até que ponto tem sido relevante a ideologia do marxismo-leninismo para o prosseguimento da guerra na Guiné-Bissau? Que peculiaridades práticas, se existem, necessitaram da modificação do marxismo-leninismo?
Nós acreditamos que uma luta como a nossa é impossível sem ideologia. Mas que tipo de ideologia? Talvez vá desapontar muita gente aqui quando disser que nós não pensamos que a ideologia seja uma religião. Uma religião diz, por exemplo, que Cristo nasceu em Nazaré e fez este e aquele milagre, etc. e etc., e acredita-se nisso ou não se acredita, e pratica-se a religião ou não. Partir das realidades do nosso próprio país para a criação de uma ideologia para a luta, não implica que se pretenda ser um Marx ou um Lênin, ou qualquer outro grande ideólogo, mas é simplesmente uma parte necessária da Luta. Confesso que não conhecíamos suficientemente bem estes teóricos quando começámos. Não conhecíamos deles nem metade do que conhecemos agora! Nós tivemos necessidade de conhecê-los, como disse, a fim de julgarmos em que medida podíamos aproveitar a sua experiência para ajudar a nossa situação — mas não necessariamente para aplicar a ideologia cegamente, só porque ela é uma ideologia muito boa. Este é o nosso ponto de vista.
Mas a ideologia é importante na Guiné. Como disse, não queremos que o nosso povo seja mais explorado. O nosso desejo de desenvolver o nosso país com justiça social e com o poder nas mãos do povo, é a nossa base ideológica. Nunca mais queremos ver um grupo ou uma classe de pessoas explorar ou dominar o trabalho do nosso povo. Esta é a nossa base. Se se quiser chamar marxismo a isso, que chame marxismo, tanto faz.
Certa vez, perguntou-me um jornalista: “O Senhor Cabral, é marxista?”
Será que o marxismo é uma religião? Eu sou um combatente da liberdade no meu país. Devo ser julgado pelo que eu faço na prática. Se for decidido que isso é marxismo, pode dizer a toda a gente que é marxismo. Se achar que não é marxismo, diga-se que não é marxismo. Mas o rótulo é problema de cada um; nós não gostamos dessa espécie de rótulos. As pessoas aqui estão muito preocupadas com as perguntas: é marxista ou não marxista? É marxista-leninista?
Perguntem-me apenas, por favor, se nós estamos trabalhando bem. Se, na realidade, estamos a libertar o nosso povo, os seres humanos no nosso país, de todas as formas de opressão. Perguntem-me simplesmente isso, e tirem as suas próprias conclusões.
Não podemos dizer, a partir da nossa experiência, que o marxismo-leninismo tem de ser modificado — isso seria presunçoso. O que nós devemos fazer é modificar, transformar radicalmente as condições políticas, econômicas, sociais e culturais do nosso povo. Isso não significa que não temos respeito por tudo quanto o marxismo e o leninismo contribuíram para a transformação das lutas em todo o mundo e através dos anos. Mas nós temos a certeza absoluta que temos de criar e desenvolver, na nossa situação específica, a solução para o nosso país. Acreditamos que as leis que regulam a evolução de todas as sociedades humanas são as mesmas.
A nossa sociedade desenvolve-se da mesma maneira que outras sociedades no mundo, de acordo com o processo histórico; mas devemos compreender claramente em que estágio está a nossa sociedade. Marx, quando criou o marxismo, não vivia numa sociedade tribal; acho que nós não temos necessidade de ser mais marxistas que Marx ou mais leninistas que Lênin, na aplicação das suas teorias.