Fannie Lou Hamer – Está em Suas Mãos

Discurso realizado em 1971.

Originalmente disponível no site History is a Weapon.

Tradução por Guilherme Henrique.

Nascida Fannie Lou Townsend (1917-1977), Hamer era a mais nova de vinte crianças de uma família de meeiros, deixando a escola na sexta série para trabalhar em tempo integral em uma plantação do Mississippi. Ela trabalhou durante a maior parte de sua vida em meio à pobreza do campo e se envolveu na militância pelos direitos civis quando começou a trabalhar com o SNCC¹ em 1962. Enquanto organizadora do SNCC no condado de Sunflower, Mississippi, ela ajudou os residentes negros locais a se registrarem para votar. Hamer tornou-se vice-presidente do insurgente Partido Democrata da Liberdade do Mississippi (Mississippi Freedom Democratic Party – MFDP) em 1964, e fez campanha para o Congresso do segundo distrito congressional do Mississippi. Como líder do MFDP, Hamer participou de um amplo debate com a delegação totalmente branca do Mississippi na Convenção Nacional Democrata de 1964 em Atlantic City, Nova Jersey. Em uma comovente apresentação pública, Hamer testemunhou perante o comitê de credenciamento da convenção sobre como ela havia sido severamente espancada quando ela e outros militantes dos direitos civis tentaram desafiar as leis Jim Crow em Winona, Mississippi. Hamer posteriormente fundou a Cooperativa da Fazenda da Liberdade (Freedom Farm Cooperative) e foi fundamental na construção de uma creche popular e duzentas unidades de moradia popular para sua comunidade do Mississippi. Hamer lutou consistentemente pelos direitos das mulheres, justiça econômica e pelo empoderamento  negro, e sua profunda influência entre uma geração de militantes negros certamente não pode ser subestimada.


As dificuldades e o papel das mulheres negras não são algo que acontece há apenas três anos. Temos passado por dificuldades há 350 anos. Minha avó passou por isso. Minha avó era uma escrava. Ela morreu em 1960. Ela tinha 136 anos. Ela morreu em Mount Bayou, Mississippi.

Tem sido uma situação difícil para a mulher negra. Lembro-me de meus tios e de algumas de minhas tias – e é por isso que realmente me deu arrepios quando você falou sobre integração. Porque sou muito negra, mas lembro que alguns de meus tios e algumas de minhas tias eram tão brancos quanto qualquer um aqui, e de olhos azuis, e algum outro de olhos verdes – e meu avô não tinha sido o culpado, entende? Então o que o pessoal está combatendo neste ponto é o que eles começaram. Eles começaram a descarregar os navios negreiros vindos da África, foi quando eles começaram. E agora mesmo, às vezes, vocês sabem que eu trabalho pela libertação de todas as pessoas, porque quando eu me liberto, estou libertando outras pessoas. Mas sabe, às vezes sinto mais pena da mulher branca do que de nós mesmos porque ela foi pega nessa coisa, pega se sentindo muito especial, e companheiros, vou falar sobre isso, porque meu trabalho não é fazer com que as pessoas se sintam confortáveis – (muitos aplausos). Vocês foram pegas nessa coisa porque, vocês sabem, vocês deram trabalho à minha avó, e depois disso deram trabalho à minha mãe, e então finalmente se apoderaram de mim. E vocês realmente pensaram, cara, vocês podem tentar esfriar isso agora, mas eu tenho observado vocês, queridas. Vocês pensavam que eram mais porque eram mulheres, e especialmente mulheres brancas, vocês se sentiam como anjos, que eram intocáveis. Querem saber? Não há nada sob o sol que faça vocês acreditarem que são como eu, que por baixo deste pigmento branco de pele há sangue vermelho, como sob esta minha pele preta. Por isso, fomos usadas como mulheres negras repetidas vezes. Vocês sabem que me lembro de uma época em que eu trabalhava na casa dos brancos, e uma coisa que me deixava furiosa, depois de ter sido escravizada o dia todo, essa mulher branca pegava o telefone, ligava para alguma de suas amigas, e dizia: “Sabe, estou cansada, porque trabalhamos”, e eu dizia: “Isso é uma puta mentira”. Vocês não estão acostumadas a esse tipo de linguagem, queridas, mas eu vou lhes dizer como as coisas são. Então, todas essas coisas estavam acontecendo porque vocês tinham mais. Vocês tinham sido colocadas em um pedestal, e não só isso, mas vocês tinham sido colocadas em algo como um castelo de marfim. Então, o que aconteceu com vocês, foi que nós abrimos o castelo e batemos no pedestal como o diabo. E quando vocês caem no chão, vocês vão ter que lutar, assim como nós temos lutado todo esse tempo.

No passado, não me importa o quão pobre era a mulher branca, no Sul ela ainda se sentia como se fosse mais do que nós. No Norte, não me importa quão pobre ou quão rica esta mulher branca era, ela ainda se sentia como se fosse mais do que nós. Mas, chegando à realização disto, a liberdade dela está acorrentada à minha, e ela percebe pela primeira vez que não é livre até que eu seja livre. A propósito disso, a influência masculina neste país – vocês conhecem o homem branco, ele não fez lavagem cerebral só no homem negro e na mulher negra, ele também fez lavagem cerebral em sua esposa…

Ele a fez pensar que ela era um anjo. Vocês sabem a razão pela qual eu posso afirmar isso, companheiros, eu tenho observado. E há muita gente observando. É por isso que é um choque tão grande onde quer que vamos por este país, é um grande golpe. Os norte-americanos brancos de hoje não sabem o que fazer no mundo porque quando nos puseram atrás deles, foi aí que cometeram seu erro. Se nos tivessem colocado na frente, não nos teriam deixado olhar para trás. Mas eles nos colocaram atrás deles, e nós observamos cada movimento que eles fizeram…

E esta é a razão pela qual eu digo ao mundo, enquanto viajo de um lado para o outro, não estou lutando por direitos iguais. Para que quero ser igual ao [Senador] Eastland? Apenas digam-me. Mas nós não vamos apenas nos libertar. Eu acho que é uma responsabilidade. Eu acho que somos pessoas especiais, os filhos de Deus vão ajudar na sobrevivência deste país se não for tarde demais. Estamos muito mais doentes do que as pessoas pensam. E o que estamos fazendo agora no Sul, na política, na conquista de lugares para negros e brancos conscientes no estado do Mississippi, vai ter um efeito sobre o que acontece em todo este país. Sabe, eu costumava pensar que se eu pudesse ir para o Norte e contar às pessoas sobre a situação do povo negro no estado do Mississippi, tudo estaria bem. Mas viajando por aí, eu descobri com certeza uma coisa: é Sul de cima e Sul de baixo, não é diferente. O homem atira na minha cara no Mississippi, e você se vira, ele atira nas suas costas aqui [em Nova Iorque]. Temos um problema, pessoal, e queremos tentar lidar com o problema da única maneira que podemos lidar com o problema, como mulheres negras. E vocês sabem, não estou agarrada a isso de me libertar do homem negro, não vou tentar isso. Eu tenho um marido negro, com 1,80m, 80 kg, com um sapato 44, do qual não quero ser libertada. Mas estamos aqui para trabalhar lado a lado com este negro na tentativa de levar a libertação a todas as pessoas.

O Condado de Sunflower é um dos condados mais pobres, um dos condados mais pobres do mundo, enquanto o Senador James O. Eastland – vocês sabem, as pessoas dizem: não fale de política, mas o ar que respiramos é ar poluído, é ar poluído por política. O ar que respiramos é política. Portanto, é preciso se envolver. É preciso envolver-se na tentativa de eleger pessoas que vão ajudar a fazer algo para a libertação de todas as pessoas.

O Condado de Sunflower, o condado de onde venho, é o condado do Senador Eastland que possui 5.800 acres de alguns dos solos negros férteis mais ricos do Mississippi, e onde as crianças, lá no Condado de Sunflower, sofrem de desnutrição. Mas quero lhes dizer uma das coisas que estamos fazendo, neste momento, no Condado de Sunflower. Em 1969, fundei a Cooperativa da Fazenda da Liberdade. Começamos com 40 acres de terra. Em 1970 no Condado de Sunflower, alimentamos 1.500 pessoas desta terra de 40 acres. Em 1970 eu me envolvi com o Y.W.D. – Young World Developers. Em 14 de janeiro de 1971, investimos $85.400 em 640 acres de terra, dando-nos o total de 680 acres de terra. Também temos 68 casas. Esperamos que em algum momento, em 1971, possamos construir mais cem casas em uma centena dos 640 acres.

No próximo sábado… os jovens estarão caminhando pelo mundo inteiro contra a fome e a pobreza. Serão quarenta países caminhando, milhões de pessoas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, serão mais de 377 caminhadas. Estes caminhantes são jovens que realmente se preocupam com o que está acontecendo… E desta caminhada – as pessoas pagarão por milha para as crianças que estarão caminhando – e desta caminhada esperamos conseguir um milhão de dólares para o Condado de Sunflower… Se conseguirmos o tipo de apoio econômico que precisamos no Condado de Sunflower, em mais dois anos… teremos as ferramentas para produzir alimentos nós mesmos.

Há algumas semanas, instalamos a primeira família branca pobre na Fazenda da Liberdade na história do estado do Mississippi. Um homem branco veio até mim e disse: “Eu tenho cinco filhos e não tenho onde morar”. Eu não tenho comida. Eu não tenho nada. E meus filhos, alguns deles, estão doentes”. E nós demos uma casa a este homem…

Temos um trabalho como mulheres negras, para apoiar o que estiver certo, e para trazer justiça onde tivemos tanta injustiça. Algumas pessoas dizem, bem, que eu trabalho por 24 dólares por semana. Isso não é verdade no meu caso, eu trabalho às vezes por 15 dólares por semana. Lembro-me de minha mãe trabalhando por 25 e 30 centavos por dia. Mas estamos nos organizando agora, porque não temos outra escolha. O Condado de Sunflower é um dos poucos condados no estado do Mississippi onde, naquela área em particular, não perdemos um professor negro. Porque… eu entrei e disse ao juiz: “Juiz, não vamos ficar parados e vê-lo pegar um homem com um mestrado e levá-lo para um serviço de limpeza.” Portanto, se não tivermos o diretor… não vai haver escola, privada ou pública.” Este é nosso trabalho.

Há alguns anos, em todo o país, a mulher negra de classe média – eu costumava dizer que não eram realmente negras, mas as mulheres de cor de classe média, nem mesmo respeitavam o tipo de trabalho que eu estava fazendo. Mas veja agora, quer você tenha um PhD, D.D. ou sem D, estamos juntos neste balaio. E quer você seja de Morehouse ou de Nohouse, ainda estamos juntos neste balaio. Não lutar para tentar nos libertar dos homens – este é outro truque para nos fazer lutar entre nós – mas para trabalhar junto com o homem negro, então teremos mais chances de agir apenas como seres humanos, e de ser tratados como seres humanos em nossa sociedade doente.

Gostaria de lhes contar algo para encerrar com uma história de um homem velho. Este velho era muito sábio e podia responder a perguntas que eram quase impossíveis de serem respondidas pelas pessoas. Então algumas pessoas foram até ele um dia, dois jovens, e disseram: “Vamos enganar este homem hoje”. Vamos pegar um pássaro, e vamos levá-lo até este velho. E vamos perguntar-lhe: “Isto que temos hoje em nossas mãos, está vivo ou está morto? Se ele disser ‘morto’, vamos soltá-lo e deixá-lo voar. Mas se ele disser, ‘Vivo’, vamos esmagá-lo”. Então eles caminharam até este velho, e disseram: “Isto que temos nas mãos hoje, está vivo ou está morto?”. Ele olhou para os jovens e sorriu. E ele disse: “Está em suas mãos”.

Notas da Tradução:

  1. Comitê de Coordenação Não-Violenta dos Estudantes

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