Descriminalização da Homossexualidade pelos Bolcheviques – Intencional ou Descuido?

Por Fred Weston, 18 de abril de 2018.

Texto originalmente publicado no site In Defence of Marxism.

Tradução por Guilherme Henrique.


A Revolução de outubro mudou radicalmente a situação dos homossexuais na Rússia, assim como a situação das mulheres. Em 1922, o primeiro código penal da República Socialista Federativa Soviética Russa (RSFSR) foi aprovado. Em 1918 todas as antigas leis czaristas foram suspensas e quando finalmente, após alguns anos de debate, a nova constituição foi adotada, a homossexualidade ou “sodomia”, como era chamada, foi descriminalizada. Este foi um enorme avanço para os homossexuais, que sob o regime do Czar podiam ser presos e condenados a anos de prisão ou enviados a campos de trabalho.

Alguns historiadores reacionários, com a clara intenção de negar o devido reconhecimento aos bolcheviques por uma legislação tão avançada, afirmam que esta foi um descuido e não uma decisão consciente. Esta afirmação não resiste a uma análise atenta de como o Código Penal de 1922 foi redigido, o qual revela discussões e debates sobre a questão e uma decisão consciente de descriminalizar a homossexualidade. Este foi o caso até 1933-34, quando o governo de Stalin decidiu recriminalizar a homossexualidade e impor sentenças severas aos homossexuais.

Entretanto, também é verdade que muitos mitos e mistificações foram incorporados aos relatos da esquerda, que retratam a Rússia pós-revolucionária como uma espécie de paraíso gay. Esta revisão dos acontecimentos, através das lentes das posturas contemporâneas, não situa a questão historicamente. Vamos tentar delinear o contexto real em que os bolcheviques descriminalizaram a homossexualidade.

[Nota: os termos ‘gay’ ou ‘homossexual’ são utilizados aqui ao invés de LGBT, pois o termo não existia naquele período. Além disso, estamos tratando aqui principalmente da descriminalização específica da atividade homossexual masculina. As relações homossexuais entre mulheres nunca foram criminalizadas e, portanto, também não foram descriminalizadas. Trataremos disso em outro artigo].

Homossexualidade sob o regime dos czares

Sob o regime czarista, a homossexualidade tinha sido considerada um crime por quase um século. A primeira proibição das relações entre homens do mesmo sexo no exército foi imposta por Pedro, o Grande, em 1716. Em 1835, sob o regime de Nicolau I, esta proibição foi estendida à população civil. As relações entre homossexuais se tornaram puníveis com o exílio na Sibéria e esta legislação permaneceu em vigor até a Revolução de outubro de 1917.

Apesar dos desejos de NicoIau I, a homossexualidade obviamente não poderia ser extinta da legislação. Sendo uma variante natural das relações sexuais humanas, ela poderia ser reprimida, mas não retirada da sociedade. Assim, permaneceu um fenômeno meio escondido, com vários locais onde poderia ser expressa. Entre estes locais estavam as casas de banho públicas, onde a prostituição masculina era comum. A ironia da situação era que muitos homens pertencentes às classes alta e média eram homossexuais ou bissexuais. Alguns se casavam e viviam uma vida familiar aparentemente “normal”, mas buscavam o amor do mesmo sexo em lugares como as casas de banho públicas.

No final do século XIX, quando o capitalismo começou a se desenvolver na Rússia, as grandes cidades começaram a se expandir, e com isso surgiu também uma subcultura homossexual urbana. E enquanto a homossexualidade continuava a ser criminalizada, os psiquiatras começaram a olhar para o fenômeno de um ponto de vista médico e não moral, influenciados pelos desenvolvimentos neste campo na Europa. Alguns setores da comunidade científica acreditavam que a homossexualidade deveria ser tratada como uma doença psicopatológica ou biológica, e não como um crime. A homossexualidade não era considerada como uma variante natural da atividade sexual humana, mas isso representava, no entanto, um distanciamento da criminalização.

Os psiquiatras começaram a desenvolver a ideia de que a homossexualidade poderia ser explicada como uma ‘perversão’, devido a um desenvolvimento sexual deformado provocado por uma educação inadequada. A partir disto, desenvolveu-se a ideia de que a homossexualidade poderia ser ‘curada’ através da psicoterapia e até mesmo da hipnose. Um corolário disso foi a ideia de que prestar uma atenção cuidadosa ao desenvolvimento das crianças poderia evitar o surgimento de “desvios” homossexuais.

Uma pequena minoria foi muito além e começou a ver a homossexualidade de fato como uma variante natural. Ushakovsky – aparentemente um pseudônimo – em um texto publicado em 1908, Pessoas do Sexo Intermediário (People of the Intermediate Sex), afirmava:

“A lei deveria proteger as crianças e os loucos e proibir todo tipo de agressões. Mas o que duas pessoas adultas, em seu próprio quarto, fazem com seus corpos por consentimento mútuo e não causando nenhum dano, não diz respeito ao Estado”.

Esta ideia, que na época era mantida apenas por uma pequena minoria (também refletida no anonimato do autor, considerando o então ilegal status dos homossexuais) viria a despontar após a Revolução de outubro na política bolchevique relativa às relações entre pessoas do mesmo sexo.

No último período do regime czarista, houve um aumento significativo do número de homossexuais sendo condenados pelos tribunais. Houve também muita hipocrisia na aplicação da lei, com os membros das classes altas recebendo um tratamento muito mais brando. Aqueles que conheciam as pessoas certas podiam ter seus casos ignorados. Vários membros homossexuais da família real, por exemplo, tiveram os processos contra eles suspensos.

O efeito da revolução

A Revolução de 1905 teve um impacto na forma como a homossexualidade era tratada. E apesar do aumento do número de condenações de homossexuais, houve um certo abrandamento na questão. Houve menos censura depois de 1905, e nestas condições figuras como Mikhail Kuzmin (um escritor e poeta abertamente gay) puderam emergir. Kuzmin é considerado o primeiro romancista a retratar um homem gay revelando-se, em Kryl’ia (Asas), publicado em 1906. Há também os diários de Kuzmin que, entre outras coisas, retratam o cotidiano de um lar gay, tanto sob o regime czarista como posteriormente sob o domínio soviético. De fato, após a Revolução de 1905, houve um florescimento da literatura com temática sexual. No mesmo período, Lidiya Zinovyeva-Annibal publicou seus Trinta e Três Monstros (Thirty-three Monsters), que é uma história de amor lésbico.

Kuzmin viu a Revolução de outubro com simpatia, assim como muitos escritores e artistas. Ele tornou-se membro do Presidium da Associação de Artistas de Petrogrado, juntamente com escritores como Alexander Blok e Vladimir Mayakovsky. Ele também trabalhou como tradutor com Maxim Gorky e foi um dos fundadores de um novo jornal diário, A Vida da Arte (The Life of Art), em 1918, trabalhando como um de seus editores. Estes não são detalhes sem importância. Aqui estava um indivíduo que vivia como um homem abertamente gay, que era altamente respeitado no início do período Soviético – ou seja, antes da contrarrevolução stalinista consolidar seu controle sobre a sociedade.

Historiadores burgueses – mentiras e distorções

Muitos historiadores que escrevem sobre feminismo e homossexualidade tentaram minimizar as liberdades que o direito soviético concedeu aos homossexuais e às mulheres na década de 1920. A razão para isso é bastante evidente. Eles não podem simplesmente admitir que a Revolução Comunista Russa de 1917 pôde ser radicalmente progressista em questões relativas às mulheres e aos direitos dos homossexuais. Isso porque seu objetivo é retratar a revolução como uma monstruosa aberração da história. Nisto eles estão servindo lealmente seus pagadores: a classe capitalista que deseja enterrar a verdade sobre a revolução.

Encontramos um exemplo de tais distorções no “Minorias sexuais: o status dos gays e lésbicas na Sociedade Russo-Soviética (Sexual minorities: the status of gays and lesbians in Russian-Soviet-Russian Society)” de James Riordan, no livro Mulheres na Rússia e na Ucrânia (Women in Russia and the Ukraine), editado por Rosalind Marsh, (Cambridge University Press, 1996). 17 páginas são dedicadas à questão, e em apenas dois pequenos parágrafos Riordan trata de um período de quase 20 anos, que incluiu a Revolução Russa, a Guerra Civil que se seguiu, a redação das constituições de 1922 e 1926, o processo de degeneração burocrática, a batalha entre a crescente burocracia stalinista e a Oposição de Esquerda, a consolidação gradual do domínio da burocracia sobre o poder com a consequente destruição da genuína democracia soviética trazida à tona pela revolução e, finalmente, a destruição de muitos dos ganhos da revolução, consubstanciados nas leis reacionárias aprovadas nos anos 1930.

Esta é uma forma conveniente de olhar o processo histórico, pois permite ao escritor fundir o regime repressivo stalinista, como tornou-se na década de 1930, com o florescimento anterior da democracia operária após 1917, e no início da década de 1920. Riordan apresenta um quadro da situação anterior a 1917 como uma situação em que a direita fascista e os socialistas revolucionários tinham a mesma visão quando ele afirma:

“A lógica de esquerda e direita era, portanto, uma só e a mesma: sexo e homossexualidade eram instrumentos perigosos do inimigo de classe/nacional através do qual estavam minando a saúde espiritual e física do ‘nosso lado’. O novo regime de 1917 herdou ambas as atitudes profundamente enraizadas.”

É verdade que algumas figuras da esquerda naquela época consideravam a homossexualidade uma “perversão” ou “depravação”. Considerando o período, isto não é surpreendente. Entretanto, o que falta aqui é que, quaisquer que tenham sido as opiniões dos socialistas individualmente, o regime soviético agiu conscientemente para legalizar a homossexualidade, e nenhuma reescrita da história pode negar este fato.

Sob um subtítulo “Minorias sexuais depois de 1917“, no qual Riordan minimiza o papel dos bolcheviques na descriminalização da homossexualidade, ele afirma:

“A iniciativa de revogar a legislação anti-homossexual czarista foi obra, após a Revolução de fevereiro de 1917, não dos bolcheviques, mas dos democratas constitucionais – já vimos como um dirigente cadete, Vladimir Nabokov, tinha proposto precisamente isso – e dos anarquistas”.

Assim, de acordo com Riordan, o crédito pela legalização da homossexualidade após a revolução recai sobre um cadete – que até então tinha ido para o exílio – e sobre os anarquistas que não estavam no poder! Nabokov era um membro proeminente do Partido Democrático Constitucional (ou ‘cadetes’ como eram conhecidos): um partido que desempenhou um papel abertamente contrarrevolucionário durante 1917. Ele também serviu como Ministro da Justiça no primeiro governo da região da Crimeia que foi estabelecido em junho de 1918 sob proteção alemã, colaborando claramente com os exércitos brancos reacionários.

Apresentar este indivíduo reacionário como o verdadeiro promotor da descriminalização da homossexualidade na Rússia é uma invenção. Então, sem um pingo de vergonha, Riordan continua:

“Uma vez que o antigo Código Penal foi revogado após a Revolução de outubro, o artigo 516 também deixou de ser válido”.

A implicação aqui é que ao abolir o antigo código czarista, os bolcheviques uma vez no poder, inadvertidamente também aboliram o artigo que proibia os atos homossexuais. Mas como poderiam os Cadetes ter tido algo a ver com a legislação bolchevique uma vez estabelecido o poder soviético? É uma tentativa muito grosseira de retratar os bolcheviques como sendo contra a descriminalização da homossexualidade, apesar de sua ação concreta de descriminalização.

É verdade que Nabokov era um liberal em assuntos relativos às relações entre pessoas do mesmo sexo, mas era um liberal burguês. Isto significava que ele defendia as relações de propriedade nas quais se baseava a opressão das mulheres, e dos homossexuais. Ele lutou contra a revolução socialista, como demonstra sua posição sobre a Crimeia, em 1918. Ele também fez parte de uma comissão criada pelo Governo Provisório após fevereiro de 1917 para rever o Código Penal czarista de 1903. Essa comissão não conseguiu nada de substancial. Assim, enquanto os historiadores reacionários minimizam as intenções dos bolcheviques de descriminalizar a homossexualidade (que é exatamente o que fizeram em 1922), os burgueses liberais que nada fizeram além de tagarelar são creditados por terem libertado os gays da Rússia!

Apesar das tentativas de Riordan de distorcer a realidade, ele teve que admitir o seguinte:

“Durante a década de 1920, a situação dos homossexuais soviéticos era relativamente suportável e muitos gays e lésbicas (como Kuz’min, Kliuev e Pamok) desempenharam um papel importante na cultura soviética…”

Entretanto, depois de ter feito uma breve concessão à verdade histórica, ele então muito rapidamente avança para 1934:

“O governo [sob Stalin] apresentou um projeto que se tornou lei em 7 de março de 1934. Assim, a ‘sodomia’ tornou-se mais uma vez uma infração penal e este item foi inserido nos códigos penais de todas as repúblicas soviéticas”.

O método aqui é claro: mencionar muito brevemente o que foi alcançado uma vez que os bolcheviques estavam no poder e depois passar igualmente depressa para o regime repressivo sob Stalin e apresentar isto como a verdadeira política bolchevique.

Na História da Homossexualidade na Europa e nos Estados Unidos (History of Homosexuality in Europe and America), editada por Wayne R. Dynes e Stephen Donaldson, (Garland Publishing Inc., 1992), há outra tentativa flagrante de falsificação da história. Dizem-nos que, sim, os bolcheviques aboliram o antigo código penal czarista após chegarem ao poder em 1917, abolindo assim todas as antigas leis, mas não eliminaram conscientemente a criminalização da homossexualidade. Devemos acreditar que os bolcheviques eram apenas um pouco esquecidos sobre este assunto. Com este pequeno truque é feita a afirmação de que os bolcheviques não eram responsáveis pela descriminalização da homossexualidade. Mas apesar de todas estas tentativas, estes autores, como Riordan, tem que demonstrar algum respeito pela verdade histórica:

“Quando a guerra civil terminou, um novo Código Penal Soviético foi promulgado em 1922 e emendado em 1926. Na esfera sexual, este código proibia o sexo com menores de dezesseis anos, a prostituição masculina e feminina, e a prostituição exploratória. Não mencionava os contatos sexuais entre adultos com consentimento, o que significava que a homossexualidade masculina adulta era legal“. [minha ênfase].

Assim, depois de ter sitiado os bolcheviques, ele tem que admitir que, quando eles estavam no poder, a homossexualidade foi legalizada.

Simon Karlinsky, um professor da Universidade de Berkeley que morreu em 2009, em sua obra de 1976, Literatura e Cultura Gay na Rússia: O Impacto da Revolução de Outubro (Russia’s Gay Literature and Culture: The Impact of the October Revolution), também alega que os bolcheviques simplesmente esqueceram de incluir a homossexualidade como um crime na constituição de 1922. Karlinsky era abertamente anticomunista, o que explica sua incapacidade de recontar a verdade sobre o que realmente aconteceu. Ele minimiza a repressão dos gays sob o regime czarista, numa tentativa de retratar as coisas como sendo piores uma vez que os bolcheviques estavam no poder. Mais uma vez, isto é feito destacando a posterior política stalinista sobre as relações entre pessoas do mesmo sexo e ignorando o que foi alcançado nos primeiros anos da revolução.

Descriminalização – um ato consciente

Um trabalho mais recente de Dan Healey, Desejo Homossexual na Rússia Revolucionária (Homosexual Desire in Revolutionary Russia) (2001) é baseado em material já disponível no Ocidente e subsequente acesso a material de arquivo após o colapso da União Soviética em 1991. Sobre se a descriminalização da homossexualidade de 1922 foi ou não uma decisão consciente, Healey afirma:

“Embora estes documentos não discutam a legislação referente a sodomia em detalhes, eles demonstram uma intenção de princípio de descriminalizar o ato entre adultos com consentimento, expressa desde os primeiros esforços para escrever um código penal socialista em 1918 até a eventual adoção de uma legislação em 1922″. [Minha ênfase].

Na primeira elaboração de um esboço do código penal, em 1918, muito foi retirado do código de 1903. Entretanto, houve uma decisão consciente nesse esboço de descriminalizar atos consensuais do mesmo sexo, ao mesmo tempo em que criminalizava atos do mesmo sexo com menores ou quando havia violência ou coerção envolvida. Isto forneceria então a base para a elaboração do Código Penal de 1922. Kozlovsky, o Comissário da Justiça em 1920 fez uma série de comentários sobre os rascunhos existentes, que indicam que sua política era remover da legislação as atividades consensuais entre adultos do mesmo sexo.

Eventualmente, o novo Código Penal entrou em vigor em 1º de junho de 1922. Quando, em 1926, o código foi reescrito, a homossexualidade continuou a ser legal, o que indica que não havia supervisão ou esquecimento envolvido.

Isto significou que a Rússia, um dos maiores países do mundo, tornou-se o segundo – depois da França após a Revolução de 1789 – a tornar legal a homossexualidade. Analisaremos como a lei foi aplicada e como a homossexualidade foi vista na Rússia dos anos 20 em um futuro artigo.

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