Originalmente publicado sob o título “Questões ideológicas” na revista “O Militante” nº 185, de Outubro de 1990. Foram realizadas alterações no texto para se adequar ao português brasileiro.
Na vida do Partido, confrontam-se diariamente militantes com formações em áreas distintas, com opiniões divergentes, com experiências diversas, com sensibilidades diferentes. O debate – como todo o militante sabe por experiência – busca encontrar uma síntese unificadora no pensamento e na ação, se possível (e geralmente é possível) por unanimidade ou consenso, que seja coerente com princípios programáticos e ideológicos e que tenha em conta o maior número possível de facetas da realidade.
O debate de opiniões no Partido não pode assemelhar-se ao de um clube de discussão ou ao de uma campanha eleitoral parlamentar. É essencial a preocupação de chegar a resoluções que guiem a ação imediata do Partido e que alarguem e solidifiquem a coesão das suas fileiras.
Aliás, seria inacreditável que a comunicação social dominante não interviesse no debate público, de forma interessada, manipulando, desinformando, distorcendo.
O centralismo democrático visa encontrar resposta para várias ordens de preocupações, todas elas fundamentais:
– Em primeiro lugar, o confronto livre, democrático, aberto a todos os militantes, de opiniões, propostas, contribuições, de caráter setorial e geral.
– em segundo lugar, a síntese unificadora, coerente, concretizada numa posição comum que contemple a diversidade de opiniões, experiências e sensibilidades.
– em terceiro lugar, unificar, coerentemente, a ação do Partido, em setores e regiões por vezes muito diferenciados pelo estatuto social ou pelas características históricas, econômicas e políticas.
– em quarto lugar, relacionar indissoluvelmente a discussão com a ação, com a intervenção na luta social, institucional, ideológica ou política.
– em quinto lugar, unir o Partido, aumentar a coesão das suas fileiras no pensamento e na ação.
As concepções que negam o centralismo democrático desprezam estes aspectos essenciais, adotam uma metodologia que é, em si mesma, de confronto e fragmentação. As opiniões diferentes não são integradas, mas confrontadas. Os militantes na sua diversidade, não são aproximados, mas opostos uns aos outros.
É fácil paralisar o Partido em intermináveis discussões.
É fácil dividir o Partido em linhas, tendências e propostas que, mais ou menos fundamentadas, se hostilizam e digladiam.
É fácil cristalizar opiniões, conflitar ideias e experiências.
É fácil estilhaçar o Partido em grupos ou individualidades, em polos de direção conflitantes, adversos, etc..
O difícil é apurar opiniões e contribuições diversificadas integrando-as numa opinião comum, mobilizadora para a ação, que anime a intervenção revolucionária de todos os comunistas.
O difícil é integrar milhares de homens, diferentes pela origem social, pela formação específica, pela experiência de vida, pelas qualidades inatas, pela sensibilidade e pelo temperamento, diferentes até pelos defeitos – num grande e coeso coletivo partidário.
9. Por maioria de razão, a introdução de frações dentro do Partido revelar-se-ia, a curto prazo, num fator de desorientação na ação, de desagregação orgânica e de confusão e divisão ideológica e política. De facto, a admitir-se tal situação, o Partido ficaria dividido em grupos “rivais”, em permanente contestação mútua, alimentados por uma dinâmica de confronto e polêmica, desviados da ação contra o inimigo de classe, percorridos por discussões de capelinhas.
Alguns camaradas contestam o conceito estatutário de fração, afirmando que a circulação horizontal de opiniões não é equivalente à constituição de frações e, mais em geral, que a existência de tendências não é o mesmo que a existência de frações. De facto não são a mesma coisa, mas não só têm dinâmicas e concepções afins, como a experiência demonstra que uma coisa conduz quase inevitavelmente à outra.
Quando um grupo de camaradas, fora do quadro orgânico do Partido e à sua margem, se unem na base de um conjunto de concepções comuns (plataforma) contrárias às da direção do Partido; reúnem regularmente e regularmente tomam posições e concertam iniciativas; divulgam essas concepções e posições no seio do Partido (e até fora dele); procuram convencer outros camaradas e atraí-los para uma atuação concertada ou convergente com a sua; estabelecem entre si uma disciplina própria; designam os seus “líderes” e os propagandeiam – em tal situação, é evidente que se trata caracterizadamente de uma fração que objetivamente procura estruturar-se organizada dentro do Partido, alargar-se e dividir significativamente o Partido.
Uma fração dentro de um partido não implica necessariamente que assuma com nitidez todos aqueles traços, mas a realidade é que uma fração tende a revestir-se de todas aquelas características e, de um ou de outro modo – a tornar-se um polo permanente de paralisia, de divisão e de confronto dentro do Partido.
É evidente que uma tal situação não conduz nem à unidade de ação dos militantes, nem ao aprofundamento das questões, nem ao aumento da democracia interna, nem à coesão e à fraternidade dos comunistas.
Distraídos da luta por absorção em polêmicas intestinas; enquistados em posições de grupo que impedem a síntese de contribuições parcelares; divididos por rivalidades de posições, de disciplinas e de “líderes” – a experiência dos resultados está à vista em diversos partidos… É uma ilusão, de caráter pequeno-burguês, admitir que uma tal situação é sinônimo de democratização da vida interna.
Muito ao contrário. Pode significar, e significa quase sempre, o florescimento do individualismo, da anarquização do Partido em grupos, grupinhos, frações e fraçõezinhas, “líderes” e “líderezinhos” – que vão corroendo e destruindo o coletivo partidário, tirando-lhe credibilidade e minando por inteiro a influência e a ligação às massas.
Em tais condições, a liberdade de opinião, o debate de opiniões, o direito e o dever de contribuir para a definição das posições do Partido, o direito de crítica, a própria regra essencial de a maioria prevalecer sobre a minoria, o significado efetivo do princípio da eleição de todos os organismos (incluindo a eleição do Comitê Central pelo Congresso) – perdem conteúdo e alcance prático, completamente minados, na prática destruídos pela existência de frações (cujo número é, por definição, indeterminável), isto é, por permanentes motores de divisão, de anarquia, de individualismo pequeno-burguês, de todo contrário à efetiva democracia dentro do Partido.
10. A campanha contra o Partido percorre diversas fases. A partir de Fevereiro, a figura do Secretário-Geral, passa a ser alvo de violentos ataques; intensificam-se calúnias ou caracterizações aleivosas contra os mais destacados dirigentes e quadros do Partido; fabricam-se discordâncias entre o PCP e as concepções que presidem à reestruturação em curso na URSS; ataca-se, como tal, o corpo de funcionários do partido; incentivam-se tomadas de posição por parte de militantes contra os Estatutos, a linha e a Direção do Partido; etc..
Procura sobretudo criar a ideia de que não existe democracia interna no Partido, que o centralismo democrático e os Estatutos do Partido são normas que dão todo o poder à Direção do Partido para impor ao resto do Partido uma linha política e perpetuar uma direção. A estrutura do Partido – designadamente o seu corpo de funcionários – é caracterizada como um aparelho opressivo e ditatorial, dominado por um funcionamento (“público”) ao jeito de «nova classe».
A história heroica do Partido, sobretudo a sua história mais recente, é completamente escondida, adulterada ou manipulada. A natureza da dedicação sacrificada e militante dos funcionários políticos do PCP é totalmente distorcida. A realidade histórica que é o funcionamento democrático do Partido, o grande coletivo de luta, coeso e unido, altamente combativo e capacitado, profundamente enraizado nas massas, – digamos claramente, único no xadrez partidário do país – é substituído pelo empolamento de deficiências ou atrasos, insuficiências ou erros que – sendo necessário corrigir – nem são significantes nem caracterizam a vida e a história gloriosa do PCP nestes 14 anos. (…)
12. A referência à perestroika e aos anos 30 tem como objetivo levar a crer que também em Portugal, a Direção do PCP (“stalinista”, “ortodoxa”) possui instrumentos de coação sobre os militantes do Partido; que a esplêndida e admirável – e para alguns, surpreendente – unidade de pensamento e de ação dos comunistas portugueses não é – como só pode ser – o resultado natural do acerto da linha política e do funcionamento democrático do Partido, mas seria, ao contrário, o resultado da falta de vida democrática, de um aparelho coercivo, e finalmente… de perseguição.
A feroz campanha em torno do tema das «perseguições» atinge as raias da monstruosidade, das calúnias mais abjetas, rodeia-se de sensacionalismos criados do nada – com o claro objetivo de, ao contrário do que afirma, impedir o funcionamento democrático do Partido, impedir a discussão aprofundada e as correspondentes decisões responsáveis.
13. Argumenta-se que a divulgação pela imprensa burguesa não tem, afinal, inconveniente, e é resultante do silenciamento pela imprensa do partido. Tecem-se elogios à intervenção da comunicação social e apaga-se o seu conteúdo de classe e o sentido político da sua intervenção. Desculpabilizam-se calúnias, mentiras, invencionices, e facilitam-se-lhe informações parciais que servem para dar credibilidade às maiores falsidades.
Atacam-se as posições da Direção do partido e a atuação de dirigentes do Partido, como “alimentadoras” da campanha, procurando silenciar a Direção do Partido.
Na sequência disto, chega-se a inventar uma interpretação “nova” dos Estatutos do Partido, recorrendo a experiências infantis que contrariam tudo o que os comunistas sabem.
O objetivo é, ultimamente também, o de criar a imagem que a Direção do Partido é apenas um grupo, igual a outros grupos, sem maior legitimidade do que qualquer outro grupo de comunistas, parte como qualquer outra parte, num diferendo inter-partes, “interessada” nos conflitos e por isso capacitada para julgar, isto é, para se assumir como Direção.
Dir-se-ia que o objetivo é apear a Direção do partido ainda antes do Congresso, paralisá-la, desprestigiá-la, queimá-la. A sistemática campanha de calúnias contra os mais destacados dirigentes do Partido aponta na mesma direção. Mas é também e seguramente desviar a atenção das questões fundamentais em debate que não são, como toda a gente sabe, a existência de perseguições ou saneamentos “stalinistas” (!!??) dentro do Partido, mas são, isso sim, a da natureza de classe do Partido, a do conteúdo marxista-leninista da nossa ideologia, a do objetivo que nos propomos de construir o socialismo em Portugal, a dos nossos laços internacionalistas e, consequentemente, dos princípios leninistas que regem o funcionamento e alicerçam a coesão do nosso Partido. (…)
17. É grande o esforço e a concentração que esta situação exige ao Partido, porque são múltiplos, e às vezes parecem contraditórios, os fatores a ter em conta e as direções de trabalho.
Em primeiro lugar, é necessário continuar a desenvolver as atividades e as iniciativas do Partido nos planos da luta social, política e ideológica, contra a política cavaquista, em defesa dos interesses do povo e da democracia.
Em segundo lugar, é necessário desenvolver persistente e pacientemente, a batalha ideológica sobre a conexão entre a natureza de classe, os objetivos programáticos, o conteúdo ideológico do nosso Partido. Assume uma importância enorme a luta pelo respeito do centralismo democrático, pela unidade e coesão do Partido, contra a divisão do Partido em frações, tendências, grupos, linhas, plataformas que se digladiam e confrontam.
Em terceiro lugar, reforçar dentro do Partido o acolhimento fácil, respeitoso, fraternal do debate de todas as opiniões, sugestões, propostas, contribuições, críticas, etc., respeitantes a todos os aspectos da vida do Partido. Trata-se, por um lado, do respeito absoluto pelos direitos estatutários dos militantes; mas trata-se também da consciência de que é urgente e necessário o esforço coletivo e a contribuição franca e leal de todos os militantes do Partido para sermos capazes de encontrar as melhores respostas (políticas, organizativas e de direção) às deficiências existentes e às novas situações objetivas.
Em quarto lugar, é necessário combater frontalmente as tendências que surjam para substituir o amplo debate ideológico e político por atitudes administrativas e impositivas, para deixar desenvolverem-se ambientes de suspeição.
Em quinto lugar, é necessário encontrar com firmeza medidas orgânicas ou disciplinares perante continuadas, persistentes e incorrigíveis atuações desleais, intriguistas, mentirosas, caluniadoras e fracionistas.
A batalha é iminentemente ideológica e política. A situação exige que todos os comunistas cerrem fileiras no aprofundamento dos problemas e na busca dos caminhos que conduzem à justeza da linha e da atuação do Partido. É com esse objetivo que se avançam alguns tópicos de análise mais pormenorizada das concepções eleitoralistas subjacentes a algumas teses existentes.”
Texto retirado da revista “O Militante” nº 258, disponível neste link.
Abaixo estão algumas breves notas biográficas sobre Angelo Veloso, retirado do Jornal Avante, disponível neste link.
Natural do Porto, Ângelo Veloso ingressou na universidade daquela cidade e, posteriormente, transferiu-se para Lisboa, onde se destaca no movimento político estudantil, continuando, aliás, a actividade já iniciada no MUD – Juvenil.
Em 1949, adere ao PCP e em 1950 é preso pela primeira vez. Cinco anos depois, a PIDE voltaria a encarcerá-lo, quando já integrava a Comissão Central do MUD – Juvenil. É julgado junto com outros 82 antifascistas.
Em 1959 passa a funcionário do Partido e mergulha na clandestinidade. Assume sucessivamente o controlo de organizações em Lisboa e Vale do Tejo. Em 1966 é cooptado para o Comitê Central como suplente e em 1967 passa a membro efetivo.
Preso pela terceira vez em 1969, só viria a ser libertado em 1974. Já em liberdade, dedica-se à construção do Portugal de Abril e ao desmantelamento do aparelho fascista, primeiro na Organização Regional do Norte e depois na do Porto.
No VIII Congresso do PCP é eleito membro suplente da Comissão Política, e no X Congresso passa a membro efetivo daquele órgão executivo, no qual se mantém até ao XIII Congresso (Extraordinário).
Ângelo Veloso foi deputado à Assembleia Constituinte e à Assembleia da República, e em 1985 foi candidato à presidência da República.