Do boom ao caos econômico

Trechos do livro “Valsa brasileira” da economista Laura Carvalho.

Retrospectiva da economia

Em outras palavras, quanto tempo o modelo econômico considerado correto levaria para gerar resultados favoráveis? E quanto tempo o modelo considerado equivocado levaria para dar errado? A resposta a essas perguntas parece ser dada sempre a posteriori, a partir da observação do desempenho passado da economia, deixando o ônus da prova para os que tentam contestar a tese.

Como vimos, o crescimento só passou a ser liderado pelo mercado interno a partir de 2006. Em 2004 e 2005, o crescimento foi liderado por um boom de exportações que dificilmente pode ser atribuído à política econômica interna. Já entre 2006 e 2010, não se pode ignorar o efeito da valorização mais acelerada do salário mínimo, da universalização de 30 programas de transferência de renda, da expansão do acesso a crédito e dos investimentos públicos sobre o crescimento econômico e o dinamismo do mercado de trabalho.

Sendo assim, uma coisa é dizer que a estabilização da inflação foi condição necessária para uma retomada do crescimento. Disso poucos discordariam. Outra coisa é afirmar que a adoção do tripé macroeconômico, as privatizações e demais políticas implementadas desde 1994 foram as principais responsáveis por gerar um crescimento mais acelerado – uma década depois.

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A alta do preço das commodities e os três pilares de crescimento descritos acima – distribuição de renda, expansão do crédito e investimentos públicos – explicam a melhora no desempenho da economia brasileira em relação às duas décadas anteriores.

O crescimento maior do PIB e de vários de seus componentes é acompanhado de inflação menor, dívida pública em queda, dívida externa também em queda e acúmulo expressivo de reservas internacionais.

Quanto ao crescimento do PIB, diferentemente do que se costuma argumentar, o componente que mais cresceu não foi o consumo das famílias, e sim o investimento. É verdade que o consumo ocupa uma parcela maior do PIB, de modo que expansões do consumo contribuem mais para o seu crescimento do que outros componentes. No entanto, quando se olha apenas para as taxas de crescimento real dos diversos componentes da demanda, vê-se que o consumo cresceu menos do que o investimento nesse período

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A alta dos preços das commodities reforçou esse processo, não só porque aumentou incentivos e recursos disponíveis para investimentos nos próprios setores produtores de commodities (com destaque para a Petrobras), mas também porque gerou efeitos em cadeia para os setores relacionados (fornecedores, por exemplo) e elevou a própria arrecadação do governo, ajudando a criar espaço fiscal para a expansão dos investimentos públicos.

A mudança

Mas, como veremos, não há apenas uma mudança no contexto econômico, há também um deslocamento nos objetivos, na amplitude e no volume de recursos destinados a essas políticas a partir de 2011. As mudanças que marcaram o primeiro governo Dilma tampouco se resumem a um papel maior e distinto para esses incentivos: vários elementos da política econômica do período do Milagrinho foram abandonados e outros eixos passaram a nortear a estratégia de desenvolvimento.

Em 2006, o Estado tornou-se mais ativo no estímulo direto ao mercado interno por meio da expansão dos investimentos públicos. Em 2011, essa atuação deu lugar a uma estratégia baseada nos incentivos ao setor privado, tanto via política fiscal, quanto via política monetária e creditícia. Ainda que algumas mudanças tenham acontecido pelo caminho, quando se toma como referência a política econômica em seu conjunto, a crise de 2008 dificilmente aparece como um divisor de águas.

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Diante da falta de competitividade da indústria nacional e dos desequilíbrios externos que surgiam, muitos economistas e autores passaram a defender uma mudança de modelo econômico no Brasil. Em vez do estímulo ao mercado interno por meio dos pilares já elencados, o país precisaria de um modelo de crescimento centrado no desenvolvimento industrial nos moldes asiáticos, com mais destaque para as exportações.

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A agenda FIESP

Em entrevista ao jornal Valor Econômico em dezembro de 2012, o então secretário de Política Econômica, Márcio Holland, atribuiu o baixo crescimento da economia no ano de 2012 ao que seria uma fase de transição do país, o que chamou de “Nova Matriz Econômica”. De acordo com Holland, “essa matriz combina juro baixo, taxa de câmbio competitiva e uma consolidação fiscal ‘amigável ao investimento’”, o que, junto com uma “intensa desoneração dos investimentos e da produção”, garantiria a retomada do crescimento.

O termo criado por Holland passou a ser utilizado por economistas liberais para denominar o modelo de política econômica do primeiro governo Dilma, que muitas vezes é associado erroneamente aos ideais da esquerda. Como essas políticas foram referendadas por associações patronais que, posteriormente, abandonaram o barco e apoiaram o impeachment da presidente, optamos aqui por chamar o modelo econômico adotado em 2011 e aprofundado nos três anos seguintes de Agenda Fiesp.

Essa agenda envolveu a redução de juros, a desvalorização do real, a contenção de gastos e investimentos públicos e uma política de desonerações tributárias cada vez mais ampla, além da expansão do crédito do BNDES e o represamento das tarifas de energia. Pode-se dizer com segurança que os resultados de sua adoção foram desastrosos. A desaceleração da economia e a deterioração fiscal que se seguiram acabaram criando as condições para uma segunda mudança de modelo a partir de 2015, desta vez levando ao abandono do pouco que havia sobrado dos pilares de crescimento do Milagrinho.

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Cumprimento a risca de empresários

A experiência brasileira durante o Milagrinho, quando a redução das desigualdades salariais e o crescimento econômico retroalimentavam-se em um círculo virtuoso – que beneficiou não apenas os mais pobres como também os mais ricos –, não parece ter sido suficiente para convencer boa parte da elite econômica do país de que a democracia e a inclusão social rendem bons frutos.

Pior. Das desonerações e subsídios do primeiro mandato ao ajuste fiscal no segundo, o governo Dilma cumpriu à risca a lista de exigências das elites empresariais e financeiras, que só fazia aumentar. Nem o desemprego galopante e a queda rápida dos salários dos trabalhadores menos qualificados ajudaram a resgatar o país de seus captores. Os patos, ao contrário, continuaram multiplicando-se na avenida Paulista.

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O setor privado

No plano emergencial, só a retomada do crescimento poderá levar a economia de volta ao equilíbrio fiscal e aliviar os conflitos hoje tão exacerbados sobre as minguantes fatias dos bolos do orçamento e do PIB. Para tanto, o governo não pode continuar apostando na boa vontade do setor privado, por meio do sistema de concessões ou de uma suposta melhora no ambiente de negócios. É mais garantido ligar de novo a engrenagem dos investimentos públicos em infraestrutura física (transportes, saneamento etc.) e social (como saúde e educação) e, ao mesmo tempo, eliminar subsídios indiscriminados, na forma de desonerações tributárias, por exemplo.

No plano estrutural, uma reforma tributária ampla deve reduzir impostos indiretos sobre o consumo e a produção e elevar impostos diretos sobre a renda e o patrimônio. Uma nova regra fiscal deve manter a margem de manobra no caso de flutuações inesperadas no PIB e nas receitas. Já o regime de metas de inflação deve evitar altas desproporcionais e inócuas dos juros, como resposta a choques temporários nos preços administrados e de alimentos. Juros mais baixos aliviariam o custo de serviço da dívida pública, as tendências de apreciação cambial e o aprofundamento das desigualdades.

Uma nova política de desenvolvimento produtivo, por sua vez, deve mirar a estrutura produtiva que queremos ter, e não simplesmente atender a pressões difusas do empresariado de hoje. E, por fim, as políticas de inclusão social devem ser aprofundadas, pela via tanto do aumento da renda como de melhores serviços públicos.

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Sobre investimentos públicos

A ideia de que os investimentos das empresas podem funcionar como motor autônomo de retomada em meio à recessão e ao alto endividamento não encontra respaldo na evidência empírica. Diversos estudos econométricos que examinam a relação de causalidade entre os componentes do PIB sugerem que os investimentos das empresas respondem aos componentes autônomos do gasto, quais sejam, os que dependem pouco do próprio nível de atividade econômica – exportações, investimentos residenciais e investimentos públicos, por exemplo.

Esses achados reforçam as teorias que atribuem ao investimento privado um caráter essencialmente induzido, ou seja, que consideram que a expansão da capacidade produtiva pela compra de novas máquinas, equipamentos ou construção de novas plantas responde à própria atividade econômica. Em outras palavras, firmas que operam com capacidade ociosa não encontram razões para ampliar sua capacidade além da existente. Uma retomada dos investimentos tem de ser antecedida por um aumento das vendas, que, por sua vez, depende de algum fator autônomo de injeção de demanda.

É sobretudo por essa razão que desonerações fiscais e subsídios diversos aos lucros dos empresários não foram capazes de elevar investimentos privados desde a implementação da Agenda Fiesp pela presidente Dilma. Ao contrário, serviram como políticas de transferência de renda para os mais ricos e contribuíram para deteriorar as contas públicas.

Mas não é apenas como motor de retomada em meio à recessão que os investimentos públicos assumem um papel central. É necessário reestabelecer os investimentos públicos em infraestrutura enquanto pilar da política econômica. Devido ao seu caráter de longo prazo e, consequentemente, ao alto risco envolvido, os investimentos em infraestrutura requerem sempre o apoio do Estado – diretamente ou por meio de parcerias e financiamento. Esses investimentos têm o efeito de reduzir os custos e elevar a produtividade das empresas, ajudando a romper gargalos estruturais de oferta no longo prazo. Ao reduzir custos de produção, também ajudam as empresas a aumentar a competitividade e/ou recuperar as margens de lucro sem a necessidade de elevação de preços. Assim, se bem-sucedidos, ajudam no desempenho exportador do país e até mesmo no controle da inflação. Não à toa, os investimentos públicos em infraestrutura vêm assumindo papel central nos programas econômicos de diversos candidatos progressistas nas eleições presidenciais ao redor do mundo. No Brasil, essa centralidade é ainda mais justificada, dadas as carências de infraestrutura do país.

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Fortalecimento da democracia

Ainda que hipóteses históricas nunca sejam universais, como apontou o historiador Alexander Gerschenkron (1962), a opção por não realizar uma reforma tributária e por abandonar os investimentos públicos em prol da implementação de políticas recessivas e excludentes – no governo Dilma Rousseff e, mais ainda, em um governo Temer sem legitimidade – parece, no caso brasileiro, nos tirar do caminho da exceção à regra e nos colocar na espiral descendente do aumento da intolerância e do enfraquecimento da democracia.

Se a tecnocracia desconectada da sociedade não é um bom caminho para enfrentar as abstenções nas urnas e os monstros em ascensão, a eleição de líderes carismáticos sem programa de governo tampouco soa como solução. Uma alternativa parece ser a construção de candidaturas que dialoguem com as demandas concretas dos que ainda sofrem, em todo o mundo, as consequências da crise econômica e das desigualdades crescentes. Abrir a política institucional para a participação mais efetiva da sociedade é o primeiro passo.

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