A História da Arte contra a Teoria Marxista

Embora existam tentativas de ampliar o debate na história da arte, para abranger as questões de gênero, sexualidade, raça e etnia, o mundo corporativo dos caros livros de história da arte nas universidades norte-americanas produz materiais que notoriamente omitem e/ou retiram a ênfase do Marxismo enquanto um catalisador analítico. Além disso, exemplos de experimentos históricos que foram autointitulados de “socialismo real” tendem a ser grotescamente abreviados de um modo em que existe uma distorção do contexto e conteúdo, impedindo o entendimento desses fenômenos. “O marxismo, mesmo com todas as críticas a herança que deixou, não pode ser negligenciado por aqueles que se esforçam para ter uma análise e prática consequente.” Se “toda a história das sociedades é a história da luta de classes”, [i] o que se segue então, é que a história da arte deve ser enriquecida pelo estudo da luta de classes. E mesmo assim:

O sentimento dominante na academia de história da arte na Grã-Bretanha e Estados Unidos hoje em dia é formado por um pluralismo liberal, uma atitude que propulsiona tolerância a um grande número de diferentes perspectivas – em si não é um objetivo indigno – mas promove pouco ou nenhum incentivo ao debate entre eles, ou puxa suas diferenças ao ponto de aparecer alguma questão. A história da arte formalista, queer, feminista, pós-colonial e social coexistem, com várias sobreposições e combinações, e se comportam como um conjunto de rivalidades específicas. A história da arte marxista é, na melhor das hipóteses, um pequeno prato secundário nessa grande cozinha, e geralmente é encontrada apenas em formas diluídas ou adulteradas. [Ii]

Tudo que tem a ver com “Marx” é uma forma de kryptonita que deve ser contida e colocada em modo estático. Acontece que a história da arte é ela própria um campo de batalha na luta de classes, com os livros didáticos de história da arte funcionando como batalhões e regimentos nessa frente.

Apesar do florescimento de interesse em Marx, é como se fosse suficiente rejeitar o marxismo e acabar com ele, voltando a 1989. Em geral, há uma escassez séria de textos de nível universitário com quaisquer leituras marxistas da história, por razões bastantes óbvias para os marxistas, não é de surpreender em um contexto em que o neoliberalismo reivindica a academia no “fim da história”, para invocar Francis Fukuyama. Deveria ser auto evidente que essa negligência do potencial das análises marxistas (não como um bloco monolítico, mas como um complexo de complexos) rouba da história da arte importantes reflexões, por exemplo, sobre classe, valor, mercantilização, imperialismo e religião para nomear alguns temas. E ultimamente, essas omissões restringem o potencial ganhado também pela própria inclusão de outros tópicos como gênero, raça, etnia, etc. – obscurecendo como as raízes da opressão se interseccionam, inseparáveis já que surgem de questões básicas como: “quem detém o poder e quem não o detém” e quais eram as economias da “escravidão” e/ou da “expansão colonial”? [iii]

Alguns podem argumentar que alguns seletos professores de história da arte de turmas da divisão superior expõem seus estudantes para a perspectiva marxista da história da arte, como John Berger, David Craven, Luiz Renato Martins, Arnold Hauser, etc. Mas, dos poucos estudantes universitários que estudam a história da arte, poucos passam do primeiro ou segundo nível, e pelo momento em que chegam na divisão superior, o dano já ocorreu, ou seja, a ilusão de que se pode construir visões históricas do mundo sem incluir as contribuições da análise marxista. No melhor dos casos, o conteúdo marxista é apropriado e re-escrito nos livros de história da arte, legitimando uma profunda ofuscação da teoria na cultura popular. Todas as coisas de “Marx” são reduzidas a um micrólito, com um peso de papel seguro, mantendo abaixo dessa apresentação o potencial que se pode desencadear: mais uma perspectiva única para o consumo no mainstream, moderando a história social da arte, encolhendo o marxismo para encaixar em “algumas pinceladas que poderiam trazer à perfeição o mosaico panorâmico da tradicional história da arte”. [iv] Quando estou escrevendo sobre o currículo geral, estou me referindo as influências onipresentes como o livro Art Through the Ages de Gardner, History of Art de Jansons, dos quais Cengages, Pearsons, e W.W. Norton, junto com outros desse mundo produzem caldeirões com sua “apreciação da arte” para as massas, seguindo o dinheiro que coloca a indústria de livros didáticos altamente lucrativa à frente do cavalo histórico da arte, reforçando as predisposições culturais que também sustentam a estratificação des classes. Como o marxismo está ultimamente preocupado com a libertação das massas, especificamente com a sua atividade auto-consciente, históriadores da arte marxistas podem querer não apenas interpretar o que está acontecendo no mundo da história da arte, mas também agitar e organizar para mudar a atualidade.

A omissão da análise marxista dá um caráter esterilizado aos estudos da história da arte, divorciando-a do mundo real e material. A história da arte, que não é reminiscente do mundo real, pode realmente ser uma piada em algum lugar. Mas porque séria? Eu acredito que alguns de nós podem pensar em um tempo em que ouvimos pela primeira vez Ways of Seeing de John Berger (e sim, estou sendo um pouco nostálgico) e pensamos: wow, a história da arte tem muito a ver com a realidade social, cultural e econômica, e parece libertador pensar dessa maneira! Berger usou sua singular análise marxista para compartilhar reflexões que eram ambas introdutórias e avançadas para interagir com a arte. Ele afirmava que as pessoas que escrevem ou dão aula sobre arte, acabam colocando-a em um status quase religioso, mistificando-a. Em um modo similar a como a religião desencoraja as pessoas de questionar a existência do divino, as pessoas podem genuinamente se reprimir de questionar o valor da arte e seu mercado, como um meio de controle. No modo em que Marx falou sobre a religião, paralelos podem ser aplicados ao mundo da arte, como o mundo religioso é “o reflexo do mundo real”, a arte também, em vários níveis, é o reflexo do mundo real e também pode afetar o mundo real.

Contra a lógica do sistema de replicar o status quo, educadores da arte tem a oportunidade de abrir os horizontes conceituais dos estudantes. [vii] Deveriamos questionar em alto e bom som os tipos de livros que catequizam o que significa a arte – que escondem que apoiam o mercado da arte – e, se não for óbvio por que os alunos devem se preocupar com arte, eles não são o tipo certo de pessoa para uma educação em artes liberais. A arte como “gosto” cria limites simbólicos para as classes profissionais-administrativas (como professores) que policiam os limites de filiação e pertencimento – sendo do conhecimento. Os instrutores, seguindo o exemplo, ensinam mais sobre sensibilidade ou capital cultural, excluindo a classe trabalhadora, embrulhados em dinheiro e um bom gosto.

Os artistas hoje em dia estão capturados pelas expectativas neoliberais de autopromoção competitiva, em um sistema econômico desigual e que geralmente exclui aqueles em posições econômicas menos favorecidas, pessoas com deficiência, idosos, o feminino e pessoas que são de gêneros não-conformista. Quando membros desses grupos são finalmente incluídos eles são mostrados como novidades e potenciais consumidores. A esperada mercantilização do trabalho do artista também é a espera mercantilização da vida do mesmo. Os vários mercados mainstream tem em comum uma paixão pelo que é único, mas não tanto pelo “outro” que pode expor a alienação, de um modo marxista, de artistas e pessoas que não se encaixam e/ou a própria existência pode expor a expectativas estruturais que formam o mundo da arte capitalista como um todo.

Então, de que modo Karl Marx pode ser ligado a história da arte, quando ele nunca escreveu algo especificamente sobre e não existe nenhuma fórmula para colocar a autonomia da arte dentro do materialismo histórico? [viii] Mas, para parafrasear Engels, o marxismo é um método de análise e se transforma no seu oposto quando se torna muito formalista/mecânico. Portanto, o marxismo incorpora diferentes escolas de pensamento e modos de explicar a cultura, pós-Marx. Apesar das divisões fundamentais dentro do próprio marxismo, no entanto, existe um tremendo potencial para se olhar a arte de uma “família de teorias”. [Ix] Assim, as críticas mais vigorosas das tradições marxistas são potencialmente de outros marxistas, canalizando a micropolítica de um determinado grupo de interesse, em diálogos cruzados. [x] Em relação ao formato que tem emergido dos livros de história da arte gerais, replicados sempre e sempre, para citar Marx, “assim como alguém não julga um individuo pelo que ele pensa sobre si mesmo, o ser não pode julgar… um período de transformação pela sua própria consciência apenas.” [xi] As interpretações dos históricos períodos da arte por seletos historiadores nesses agressivamente propagandeados livros (e auxiliares digitais), que aprofundam a mercantilização da arte na grande obra histórica não podem ser julgados por suas próprias convicções de legitimidade. Logo, a história da arte necessita ser julgada por uma historiografia crítica e autocrítica que identifica seus interesses, e essa historiografia necessita se engajar com a análise marxista.

Para continuar citando Marx, “a mercadoria do dinheiro contém em si mesmo uma pista para a obscuridade da dimensão social da produção”. [xii] É do interesse daqueles que detêm poder no mundo endinheirado controlar as mensagens sobre dinâmicas e dimensões sociais, tanto quanto possível, para evitar a desconstrução deste mundo, mobilizando defensores profissionais com status quo: – estejam esses profissionais estão plenamente conscientes de seu papel ou não. “O valor de uso da mercadoria dinheiro” expressa “o valor de troca de todas as outras mercadorias”, incluindo a arte. [xiii] O dinheiro representa a “riqueza social” e a “insaciável” necessidade de seu dono por mais. A arte se torna uma espécie de dinheiro armazenado, pois o dinheiro é uma representação simbólica do poder do trabalho social total e, nesse caso, o “gênio” do artista individual é um termo de propaganda produzido pela síntese do artista, crítico, galerista, mídia corporativa e/ou historiador da arte. É verdade que a arte pode ser reconhecida como “valiosa” fora deste grupo, ou seja, diretamente pelo público, mas para que tenha valor monetário, ela deve ser alquimizada. [xiv]

Então, enquanto Marx definia “mercadorias” como “objetos de uso” com propriedade capitalista do produto e dos meios do processo de trabalho, a arte é claramente diferente. E o artista não pode necessariamente antecipar o valor monetário de seu trabalho, dado os “propósitos” não-utilitários da arte, ele necessita de uma mediação pelo já mencionado galerista, crítico da arte, historiador da arte, etc, para criar o valor pela mercadoria de arte. Eu uso o termo mercadoria de arte, no sentido marxista como um oxímoro, interpondo a alquimia-mistificação que produz o “valor de mercado da arte” para mercantiliza-la (transformar arte em ouro) além da utilidade para recriar a dinâmica da riqueza e/ou aprimorando o status quo. Fazendo referência a Pierre Bourdieu, a sociologia das instituições de arte se preocupa em como as predisposições culturais sustentam a estratificação de classes. Alquimia, aqui, é sinônimo do tipo de “mistificação” que John Berger costumava chamar de valor da arte. É muito famoso que Berger identificou a pintura a óleo, desde o Renascimento, como impulsionadora da mercantilização da arte, com sua capacidade de retratar a semelhança visual e a ilusão de tangibilidade. Possuir uma pintura a óleo era possuir o que retratava – ser digno de riqueza e inveja. Explicando isso, é útil recorrer às 9.5 teses de Ben Davis sobre arte e classe:

1.8 O “mercado da arte” é abordado de modo diferente por diferentes classes; discutir o mercado da arte sob a ausência de um entendimento dos interesses de classe serve para obscurecer as atuais forças dominantes da situação atual da arte…

2.0 Hoje em dia, a classe dominante, que é capitalista, domina a esfera das artes visuais…

2.3 Os valores dominantes dados a arte, deste modo, serão aqueles que servem aos interesses da atual classe dominante.

2.4 Concretamente, dentro da esfera das artes visuais contemporâneas, os agentes que determinam os interesses dos valores da arte são: grandes corporações, incluindo grandes casas de vendas e coletores de artes corporativos; investidores de arte, coletores de arte privados e patrões; rentistas e gerentes de grandes instituições culturais e universidades.” [xv]

Existe uma cumplicidade de autopoliciamento entre artistas, críticos, galeristas, mídia corporativa, museus, instituições acadêmicas, interesses capitalistas, poder estatal e historiadores da arte, “desde que o mercado de arte não seja igualitário nem meritocrático [embora pretenda para ser o último], mas sim se assemelha a um oligopólio (poucos vendedores) servindo uma oligopsonia (poucos compradores).” [xvi] Por fim, os monopólios bancários decidem o que é vendido no interesse dos lucros, juntamente com a renomeação liberal de ideias progressistas, fetichizando modas em vez de reflexões derivadas dialeticamente. A estética propõe tipos especiais de verdades na arte, por trás das quais as motivações para o lucro podem ser obscurecidas.

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A seguir estão literalmente alguns exemplos de obscurantismo de livros acadêmicos, usando History of Art (História da Arte) de Janson e Art Through the Ages (A Arte pelas Eras) de Gardiner, já que muitos livros de história da arte seguem seus formatos. Se você olhar Karl Marx no index do livro de Gardiner encontrará três referências, e é um exercício revelador. Em um livro de mais de mil páginas, há uma seção de três parágrafos chamada “Marxismo e Darwinismo”, e Marx consegue seu próprio parágrafo, sendo “uma das” figuras dominantes da era da industrialização. Menciona o Manifesto Comunista, com Friedrich Engels envolvido, e até o Materialismo Dialético, embora não o explique (enquanto Janson o faz apenas muito brevemente quando fala em luta de classes). O que é de estourar a cabeça, dado o catalisador discutível que o pensamento dialético deve ter desempenhado, pelo menos, o desenvolvimento do surrealismo e do Movimento Dadaísta de Berlim. As análises marxistas são essenciais para a compreensão do realismo na França, e muito mais deveria ser escrito sobre isso nos dois livros. Os autores admitem que o “sistema político, social e econômico que Marx defendia atraía muito os trabalhadores pobres e muitos intelectuais”, parágrafo final. Mas o próximo parágrafo breve começa com as palavras “[tal] qual foi o influente naturalista inglês Charles Darwin”. [xvii] Darwin é tão influente, de fato, que neste livro, no entanto, ele nem sequer é mencionado no índice.

Francamente, os principais historiadores da arte não entendem o marxismo porque eles realmente não levam a teoria a sério o suficiente para prestar atenção nela. Logo, eles são desinformados, sendo conscientemente ou não investidos no status quo do atual sistema socioeconômico do capitalismo. Deste modo, eles também têm uma natural aversão a qualquer abordagem que coloca em questão os principais fundamentos do capitalismo.

Ao tentar definir arte, é fácil cair numa “valorização” dela. Uma das muitas razões pela qual o período que começou com o Modernismo foi tão dinâmico foi a crescente amplitude daqueles que poderiam fazer arte. E embora muitos artistas modernos estivessem ricos o suficiente e/ou se esforçando o suficiente para encontrar apoio financeiro, socialmente, surgiu uma variedade maior de vozes, alimentando uma energia construída a partir de outras ideias emergentes – na ciência, na experimentação social, na filosofia, etc. Novas quantidades de ideias criadas para novas qualidades. No caso de Vincent Van Gogh, a ideia de sua pobreza e saúde mental tiveram um papel central no que fez sua arte mais valorosa hoje em dia, parte de seu estado tortuoso enquanto indivíduo. Georgy Lukács escreveu que “as ilusões do fetichismo que envolvem todos os fenômenos da sociedade capitalista têm sucesso em esconder a realidade.” Instrumentalizando e fetichizando a pobreza de Van Gogh, se substitui uma “analise marxista” de sua pobreza e a qual classe ele pertencia, assim como a de sua parceira, Sien Hoornik, que também sofreu. A história da arte instrumentaliza essa visão sem realmente analisar como dinâmicas sociais estavam em um jogo no mundo para aqueles com transtornos mentais, viciados em drogas, profissionais de sexo, mães solteiras e pobres. O próprio Van Gogh ministrou aos pobres, durante sua fase de “comedores de batatas”, apreciando algo de inevitável da pobreza sistêmica de maneiras que as pessoas ricas suficientes o bastante para comprar suas pinturas hoje em dia não teriam a capacidade.

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Van Gogh, “Os Comedores de Batata”, 1885.

Nenhum dos livros tem em seu index entradas sobre o Socialismo ou o Realismo Socialista. Alguém pode procurar, vendo referenciais sobre essas questões na Arte Soviética, mas não muito é explicado significativamente sobre o porque o período inicial da arte soviética é tão diferente de suas concepções posteriores. Leituras sobre o Construtivismo Russo deveriam necessariamente falar sobre os detalhes políticos, relacionados as lutas revolucionárias necessárias para entender algo sobre o dinamismo do movimento artístico vanguardista em volta da vanguarda política, — em que ponto elas se cruzavam. De modo geral, é claro que os autores são influenciados a confundir o socialismo com Stalinismo, informados pelos clichês da Guerra Fria. Enquanto se referem a revolução “comunista” como mais radical que a Francesa ou a American, o texto afirma que os Bolcheviques eram “sociais-democratas” que promoviam uma “revolução violenta”, por causa de uma “grande insatisfação” com o regime do Czar. [xix]

Onde começar com uma história diluída?

“Insatisfação” com um regime, é como entender que as vitimas da violência sistêmica estão apenas “insatisfeitas” com a sua opressão. Os horrores que vieram após a Revolução Bolchevique, aconteceram em grande parte pelos quatorze exércitos que invadiram o país, a guerra civil, a fome, os antigos generais do Czar que se tornaram mercenários, a inesperada condição de solidão na revolução “mundial” e a e a administração sobrevivente, implacável e, às vezes, brutal das circunstâncias subsequentes – mas não a própria revolução bolchevique, que foi menos consideravelmente violenta que as revoluções americana e francesa. E, finalmente, os bolcheviques podem ter começado como uma facção dos social-democratas russos, mas certamente não acabaram assim, o rótulo deturpa completamente seu programa político. Isso ressalta o pouco interesse dos autores em conhecer o contexto histórico e os fatos básicos. Não por acaso, o texto minimiza a violência da Revolução Industrial Americana e da Revolução Americana, com uma frase sobre os nativos americanos sendo violentamente subjugados. Obviamente, esses textos não são escritos por nativos americanos, e este é um problema fundamental da história da arte, sendo escrito no Ocidente, por pessoas do “Norte” econômico, como definido por Eduardo Galleano, excluindo as considerações do explorados do “Sul” ou povos indígenas.

Os Embaixadores, Hans Holbein, 1533.

Quando John Berger famosamente escreveu sobre a pintura Os Embaixadores de Hans Holbein, ele notou que a riqueza mostrada na imagem estava lá para evidenciar o mundo a disposição de homens europeus, brancos, ricos e a sua reflexão sobre isso foi estarrecedora. No fundo da pintura, oculto à vista de todos, há um remo distorcido em anamorfose. [Xxi] O remo na pintura européia foi usado como um alerta contra a vaidade, o pecado e a impropriedade. Momento mori, como são chamados, são imagens que empregam objetos de natureza-morta (símbolos de riqueza) contrapostos com símbolos de finitude, tempo e morte (como velas extintas, frutas e flores – que poderiam se deteriorar – ampulhetas, e remos). No século XVII, esses tipos de imagens de natureza morta, também chamadas de vanitas, floresceram na Holanda devido ao surto econômico, baseado na descoberta de recursos no exterior, possibilitado pela infame “Era das Descobertas” – o roubo de recursos que poderia ser desviado de volta para a Europa. É irônico que a riqueza que alimentou o mercado pela compra dessas obras de arte vanitas (expressando um desejo de retidão) viesse à custa de milhões de vidas indígenas no exterior, via voraz domínio colonial e cristão. Uma leitura marxista do fenômeno das vanitas holandesas capturaria melhor o absurdo dessa exploração em massa simultânea à devoção piedosa, expressa artisticamente. Assim, o consumo dessas pinturas como mercadorias satisfazia “fantasias artificialmente estimuladas” [xxii] para usar as palavras de Erich Fromm.

Nem o livro de Janson, nem o de Gardner problematizam suficientemente os imperialismos competidores da Primeira Guerra Mundial, deste modo, tem pouca profundidade em entender a arte anti-guerra produzida. No geral, eles oferecem uma caricatura de omissões sobre as discussões na Alemanha no começo do século 20. Talvez deixar de fora o monumento de Ludwig Mies van der Rohe aos marxistas assassinados Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht seja uma metáfora adequada para esse ponto cego. Os textos deixam de fora tantas informações que poderiam explicar a política da época. Por exemplo, as breves discussões no capitulo Degenerate Art Show em 1937, do livro de Gardner, com curadoria dos nazistas, ignoram o conteúdo político, explicando que apenas seis dos artistas eram judeus. Então, quem eram os outros? Mesmo a culpa por associação de Marx de “ser judeu” não é tocada. Eles explicam como os nazistas definiram a degeneração em termos de raça, sexualidade e moral, mas não politicamente. Como isso pode ser deixado de fora? Esse tipo de abordagem não pode começar a explicar por que o primeiro campo de concentração, em Dachau, foi para dissidentes e presos políticos da esquerda marxista. Não há relato da dinâmica importante da revolução socialista de 1918 e da subsequente evolução do nazismo, e sem uma descrição política hábil desses eventos de 1918, qualquer história da Republica de Weimar e da Alemanha Nazista se torna incompreensível, deixando a discussão sobre arte no tempo francamente sem suporte. Certamente, a Revolução Alemã, iniciada em 1918, também é omitida na maioria dos livros didáticos da Civilização Ocidental, condensando a Segunda Guerra Mundial em um quadro moralista útil, que obscurece os tentáculos que se cruzam do capitalismo, imperialismo e fascismo em todo o mundo.

The Degenerate Art exhibition organized by the Nazis in 1937
A exibição de Arte Degenerada organizadas pelos nazistas em 1937.

A pessoa pode ler vários grandes livros sobre história da arte com seções sobre Frida Kahlo sem descobrir muito sobre sua filiação política comunista. Esse tipo de distração faz com que seja fácil para pessoas, como a Primeira Ministra Britânica Theresa May usar sua imagem em joias – seja sem estar ciente ou não dando atenção, porque marxistas não contam. No livro de Janson, Diego Rivera é descrito como um “convicto marxista”, sem especificar o que isso significa, enquanto Frida Kahlo, “uma notável artista”, aparentemente não é. Parece aparentemente mais ordenado para os autores relegar suas crenças ao misticismo católico e étnico, mas quão estereotipado e sexista é o gênero. Por que ela deveria ter uma cabeça para a política, sendo uma mulher afinal? Assim, o caso dela com Trotsky, como foi mencionado, seria potencialmente mais caso de novela do que intelectual, incapaz de entender a paixão mútua de Kahlo e Trotsky (e Rivera) pelo marxismo.

Frida Kahlo
Frida Kahlo.

As seções sobre o surrealismo também tiram a ênfase que o fundador André Breton tinha pelo socialismo, em 1937 ele escreveu conjuntamente com Leon Trotsky um manifesto, assinado por Diego Rivera, ele se chamava “Manfiesto por uma Arte Revolucionária Independente”. [xxiii] A intenção do surrealismo era de expor as contradições por baixo do véu da respeitabilidade burguesa, e essas contradições são potencialmente dialéticas: onde as coisas se tornam o seu oposto, contradições estão no coração de tudo e a realidade não é tão direta quanto parece ser. [xxiv]

Diego Rivera, André Breton and Leon Trotsky in Mexico City
Diego Rivera, Leon Trotsky e André Breton na Cidade do México.

A opressão e a exploração imperialista e capitalista reprimem a verdadeira realização do que significa ser humano: “o consumo deve ser um ato humano concreto no qual nossos sentidos, necessidades corporais, nossos gostos estéticos estão envolvidos”. [xxv] Naturalmente, precisamos ceder à nossa criatividade e apreciar indiretamente a criatividade dos outros, “mas a vida se torna cada vez menos criativa, devido às demandas e interferência do trabalho, pré-produção social e [ironicamente] o desejo de consumir”. Para citar Fromm novamente, “bens de consumo [são] valorizados por sua conspicuidade […] as pessoas passaram de consumir valor a valor simbólico […] com base no que o produto deve transmitir sobre o consumidor “. [xxvi] O consumo deve ser significativo, não substituindo o significado pelas mistificações que perpetuam o consumo. Os livros de história da arte em geral são construídos e constroem mistificações existentes, informando o que você precisa saber para parecer educado e refinado, ou para passar em um curso, eles constroem uma identidade para o graduado da faculdade – com o valor prospectivo de se encaixar na força de trabalho ou “subir ao topo” e coletar a mais-valia da força de trabalho. Isso acontece em parte possibilitada por historiadores da arte convencionais que delimitam as aberturas educacionais e conceituais de seus alunos, excluindo as análises marxistas de classe, imperialismo, colonialismo e mercantilização [xxvii] etc. A linha de fundo, devemos nos perguntar é, qual é a diferença entre os alunos que “consomem” os versos da educação e são alterados por eles: consumir educação para pertencer ao clube de versos ou consumir educação para experimentar o que é ser humano e melhorar o mundo real? No final, os esforços para manter o “status social e imitar os que estão no topo da sociedade criam uma tremenda tensão”. [Xxviii]

O historiador de arte da UCLA, T. C. Clark, argumentou que “a história da arte deve ser lutada no seu próprio terreno, que o marxismo deveria demonstrar sua superioridade “a história da arte burguesa” mostrando que seus próprios procedimentos geram um entendimento mais complexo e real das obras de arte do que seu rival”. O fim de muitas associações educacionais de esquerda nos EUA, como o Caucus Marxista da College Art Association, bem como periódicos históricos da arte, como Perspectivas Marxistas e Práxis: Um Jornal de Perspectivas Radicais sobre as Artes, também demonstra a hostilidade dos ambientes acadêmicos ao marxismo, a falta de recursos e, como eu diria, o complexo corporativo de marketing de livros didáticos antagônico ao aprendizado mais amplo. A realidade social é diversa, a tentativa de compreender seus significados também deveria ser, abrindo portas, reconhecendo o potencial da análise marxista. Porque deveríamos ligar sobre a história da arte, quando o mundo talvez tenha apenas mais uns 12 anos antes do aquecimento global chegar num nível sem volta? Porque esse é um outro front ideológico na contínua luta de classes, o qual está no coração tanto de nossa sobrevivência, quanto da qualidade dela.

Refêrencias

[i]Andrew Hemingway, editor, Marxism and the History of Art: From William Morris to the New Left, (London: Pluto Press, 2006), ix.
[ii]Ibid., 1.
[iii] In addition: how did capitalism come into existence to begin with, in terms of “primitive” or primary accumulation, including the dispossession of indigenous peoples, peasantry, and non-capitalist modes of production?
[iv]Nicos Hadjinicolaou, in “New Left Art History’s International,” chapter 10, in Ibid., 194.
[v]Fred S. Kleiner, Gardner’s Art Through the Ages: A Global History, 15th edition, (Boston: Cengage Learning, 2016).
[vi]Penelope J. E. Davies, Walter B. Denny, Frima Fox Hofrichter, Joseph Jacobs, Ann M. Roberts, and David L. Simon, Janson’s History of Art: The Western Tradition, 8th edition, (London: Prentice Hall, 2011).
[vii] I like not being sure if art and art history are vehicles for Marxist thought or vice versa.
[viii]Hemingway, 176.
[ix]Ibid., 2.
[x]Ibid., 2.
[xi]Ibid., 1.
[xii]Karl Marx, Capital, (New York: International Publishers, 1967), 131-133.
[xiii]A. E. Davis, “The New ‘Voodoo Economics:’ Fetishism and the Public/Private Divide,” in Review of Radical Political Economics.  http://doi.org/10.1177/0486613412447057.
[xiv]David Winkenweder, editor, Art History as Social Praxis: The Collected Writings of David Craven, (Chicago: Haymarket Books, 2018), 2.
[xv]Ben Davis, 9.5 Theses on Art and Class, (Chicago: Haymarket Books, 2013).
http://art.yale.edu/file_columns/0000/8594/9.5-theses-on-art-and-class-2011-10-25.pdf.
[xvi]Winkenweder, Art History as Social Praxis.
[xvii]Gardiner’s, 818.
[xviii]Dave Beech, Art and Value: Art’s Economic Exceptionalism in Classical, Neoclassical and Marxist Economics, (Chicago: Haymarket Books, 2015), 13.
[xix]Ibid., 905.
[xx] For an excellent discussion of this see, Eduardo Galeano’s Open Veins of Latin America: Five Centuries of the Pillage of Continent and Upside Down: A Primer for the Looking-Glass World.
[xxi]Anamorphosis is a distortion of point of view/perspective.
[xxii]Erich Fromm, The Sane Society (New York: Henry Holt, 1955), 129-130, in David Matthews, “Capitalism and Mental Health,”  Monthly Review, (19 Jamuary 2019).
[xxiii]Alan Woods, “For Revolutionary Art! On the Anniversary of the Death of Andre Breton,” https://www.marxist.com/death-andre-breton-revolutionary290905.htm accessed in April 2019.
[xxiv]Ibid.
[xxv]Ibid., 129-130.
[xxvi]Ibid.,129-130.
[xxvii]For a broader discussion of the commodification and exceptionalism of art, see Dave Beech, Art and Value.
[xxviii]T. C. Clark, in “On the Absence of a Marxist Economics of Art,” review of chapter 7 of Hemingway, by Nizan Shaked.
[xxix]Hemingway, 180.


Texto originalmente escrito por Laura Fair-Schulz para a Revista Red Wedge.

Disponível neste link.

Tradução por Andrey Santiago

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