Clara Zetkin – As Fontes do Fascismo

Este relatório, de autoria de Clara Zetkin, foi apresentado no dia 20 de Junho de 1923, ao Terceiro Plenário do Comitê Executivo da Internacional Comunista. Mais tarde, foi reimpresso em língua inglesa na versão editada por Mike Taber e John Riddell do livro “Fighting Fascism: How to Struggle and How to Win” (Heymarket Books, 2017).

Publicado em português no livro “Como nasce e morre o fascismo”, 2019, São Paulo, Editora Usina e Autonomia Literária.

Tradução de Eli Moraes.

O TraduAgindo selecionou os cinco trechos iniciais do texto, que pode ser lido de maneira completa no Marxists.


O fascismo encara o proletariado como um inimigo excepcionalmente perigoso e amedrontador. O fascismo é a expressão mais forte, concentrada e clássica em nosso tempo da ofensiva generalizada da burguesia mundial. É urgente e necessário fazê-lo cair. Isso não apenas no que diz respeito à existência histórica do proletariado enquanto classe, que libertará a humanidade superando o capitalismo. É também uma questão de sobrevivência para qualquer trabalhador, uma questão de acesso ao pão, a condições de trabalho e qualidade de vida para milhões e milhões de explorados.

É por essa razão que a luta contra o fascismo precisa ser empreendida por todo o proletariado. É evidente que superaremos mais rápido este inimigo sagaz na medida em que apreendermos a essência de seu caráter e como ele se expressa. Houve muita confusão em torno do fascismo, não apenas entre as amplas massas proletárias, mas também no interior da vanguarda revolucionária, entre os comunistas. A princípio, a visão predominante era a de que o fascismo não passava de um terror burguês violento, suas características e efeitos supostamente similares àquelas do regime de Horthy na Hungria(1). Ainda que o fascismo e o regime de Horthy empreguem os mesmos métodos sanguinários e terroristas, que atingem o proletariado da mesma forma, a essência histórica dos dois fenômenos é inteiramente diferente.

O terror na Hungria começou após a derrota de uma luta revolucionária que inicialmente obteve sucesso. Por um momento, a burguesia tremeu perante o poder proletário. O terror de Horthy emergiu como uma vingança contra a revolução. O sujeito dessa vingança foi uma pequena casta de oficiais feudais.

O fascismo é significativamente diferente disso. Não é de forma alguma a vingança da burguesia contra o levante militante do proletariado. Em termos históricos, visto de forma objetiva, o fascismo apresenta-se muito mais como uma punição pelo fato de que o proletariado não tenha sustentado e aprofundado a revolução que foi iniciada na Rússia . E a base do fascismo não repousa sobre uma pequena casta, mas em amplas camadas sociais, grandes massas, alcançando, inclusive, o proletariado. Devemos entender essas diferenças essenciais se quisermos lidar com o fascismo de forma bem sucedida. Meios militares, por si só, não poderão subjugá-lo, se puder usar esse termo; é necessário combatê-lo até sua queda também política e ideologicamente.

A interpretação social-democrata do fascismo

A concepção de que o fascismo é meramente uma forma do terror burguês, apesar de sustentada por algumas alas radicais de nosso movimento, é mais característica da perspectiva dos muitos sociais-democratas reformistas. Para eles, o fascismo não passa de terror e violência – mais que isso, um reflexo da burguesia contra a violência desencadeada, ou a ameaça dela, pelo proletariado contra a sociedade burguesa. Para os senhores reformistas, a Revolução Russa tem o mesmo significado que a mordida do fruto proibido no Paraíso tem para os devotos da Bíblia. Eles a veem como a origem de todas as expressões de terrorismo nos dias atuais. É como se as guerras de pilhagem imperialistas nunca tivessem acontecido; como se não existisse a ditadura de classe burguesa! Portanto, para os reformistas, o fascismo é uma consequência da Revolução Russa – o pecado original do proletariado no Jardim do Éden.

Não foi ninguém menos do que Otto Bauer quem apresentou, em Hamburgo, a posição de que os comunistas russos, e aqueles que mantêm concepções iguais as deles, possuem uma responsabilidade especial pela reação burguesa em todas as partes e pelo fascismo; são eles os que dividem partidos e sindicatos.(2) Ao fazer essa afirmação ousada, Otto Bauer esqueceu-se que o Partido Social-Democrata Independente da Alemanha (USPD) rompeu com o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) ainda antes da Revolução Russa e seu suposto exemplo moralmente desastroso. Bauer explica que a reação mundial, que alcança seu ponto mais alto com o fascismo, também é causada em parte pelo fato de que a Revolução Russa destruiu o paraíso menchevique da Geórgia e Armênia.(3) Ele ainda aponta uma terceira causa para a reação mundial: o “Terror Bolchevique” em geral. Nos seus apontamentos, contudo, sentiu-se compelido a admitir: “Nós na Europa Central somos hoje obrigados a confrontar a violência fascista com guardas de defesa proletárias. Pois não temos ilusões de que possamos vencer a violência direta com apelos democráticos”.

Seria esperado que dessa observação ele apresentasse a conclusão de que a força deve ser combatida com força. No entanto, a lógica reformista segue suas próprias regras, indecifráveis, como se dá com a providência divina.

A ambivalência de Otto Bauer continua da seguinte maneira: “Não me refiro a métodos que frequentemente não levam ao sucesso, tais como a insurreição ou a greve geral. O que é necessário é a coordenação da ação parlamentar com ações de massa extra-parlamentares”.

Aqui Otto Bauer não nos revela o segredo de seu casto seio político acerca da ação política a que ele é favorável no parlamento e, sobretudo, fora do parlamento. Há ações e ações. Existem ações tanto parlamentares, quanto de massas, que, de nosso ponto de vista, consistem em mero lixo burguês, com o perdão da palavra. Por outro lado, uma ação, seja dentro ou não do parlamento, pode ter caráter revolucionário. Otto Bauer mantém silêncio no que diz respeito à natureza das ações reformistas. E o produto final de suas reflexões sobre a luta contra a reação mundial é bastante particular. Ele se dará como um birô internacional responsável por informes precisos sobre a reação mundial. Bauer explica: “A fundação desta Internacional possivelmente será encarada com ceticismo. Se não soubéssemos como constituir um birô de notícias que nos alimente com informações necessárias sobre a reação, este ceticismo seria justificado”.

O que está por trás de toda essa concepção? A fé reformista na força inabalável da ordem capitalista e do domínio de classe da burguesia, junto à desconfiança e covardice direcionada ao proletariado como uma força consciente e irresistível da revolução mundial. Os reformistas veem o fascismo como uma expressão da inabalável e toda poderosa dominação de classe burguesa. O proletariado não está à altura da tarefa de enfrentá-lo – estaria condenado à derrota de antemão. Assim, nada resta ao proletariado além de retirar-se de cena de forma quieta e modesta, e não incitar os tigres e leões da dominação de classe burguesa a uma luta por sua liberação e autogoverno. Resumindo, o proletariado deveria renunciar a tudo em nome do presente e do futuro, e aguardando pacientemente o momento em que alguma migalha será ganha pela via da democracia e da reforma.

As raízes sociais do fascismo

Defendo um ponto de vista oposto, assim como – estou certa – todos os comunistas. Especificamente, vemos o fascismo como uma expressão da decadência e desintegração da economia capitalista e como um sintoma da dissolução do Estado burguês. Só podemos combater o fascismo se nos atentarmos para o fato de que ele desperta e arrasta consigo amplas massas sociais que perderam a segurança sobre a garantia de sua existência e, com isso, a sua crença na ordem social. As raízes do fascismo estão, de fato, na dissolução da economia capitalista e do Estado burguês. Já havia alguns sintomas da proletarização de camadas burguesas no capitalismo pré-guerra. A guerra destruiu a economia capitalista a partir de suas bases. Isso é evidente não apenas pelo empobrecimento assustador do proletariado, como também pela proletarização de amplas massas pequeno e médio burguesas, na situação de calamidade entre os pequenos camponeses e na aflição melancólica da ‘intelligentsia’ . O transtorno dos “intelectuais” é ainda mais severo dado que o capitalismo pré-guerra tomou medidas para produzi-los em excesso. Os capitalistas queriam estender massivamente a oferta de força de trabalho para o campo do trabalho intelectual e, então, estimular uma competição desgovernada que terminaria por diminuir os salários. Desses círculos é que o imperialismo recrutou grande parte de seus campeões ideológicos para a Guerra Mundial. Atualmente todas essas camadas estão encarando o colapso das esperanças que elas depositaram na guerra. O que pesa acima de tudo sobre elas é a falta de segurança para sua subsistência básica, que ainda tinham antes da guerra.

Não baseio essas conclusões nas condições da Alemanha, onde os intelectuais burgueses se deparam com condições de extremo empobrecimento que são muitas vezes mais severas do que a miséria dos trabalhadores. Não, veja a Itália – da qual falarei brevemente: a ruína da economia foi decisiva para que as massas aderissem ao fascismo naquele país. Considere outro país que, em contraste com outros Estados europeus, saiu da Guerra Mundial sem grandes convulsões: o Reino Unido. A imprensa e os debates públicos falam, praticamente com a mesma ênfase, tanto da agonia nos “novos pobres” como dos lucros gigantes e da suntuosidade dos poucos “novos ricos”. Nos Estados Unidos, o movimento de agricultores dá respostas ao crescente descontentamento de uma larga camada social. As condições das camadas intermediárias pioraram intensamente em todos os países. Em alguns deles, essa decadência leva a um ponto no qual essas camadas sociais são esmagadas ou aniquiladas.

Como resultado, há milhares procurando novas possibilidades de sobrevivência, segurança alimentar e a manutenção de sua posição social. Esse número é inflado pelos baixos e médios empregados governamentais, os funcionários públicos. A eles se juntam, mesmo em países vitoriosos, oficiais de baixas patentes e outros como eles, que agora não possuem nem emprego, nem formação profissional. Forças sociais desse tipo fornecem ao fascismo um contingente de diversas figuras que emprestam a ele, nesses países, uma pronunciada tonalidade monarquista. Mas não poderemos compreender inteiramente a natureza do fascismo encarando sua evolução somente como resultado de tais pressões econômicas, que foram consideravelmente aprofundadas a partir da crise financeira dos governos e sua perda de autoridade.

A crise de direção do proletariado

O fascismo possui outra fonte. Trata-se do obstáculo, do ritmo hesitante imposto à revolução mundial por conta da traição da direção reformista do movimento dos trabalhadores. Entre uma larga parcela das camadas médias – os funcionários públicos, os intelectuais burgueses, os pequenos e médios burgueses – que foram proletarizadas ou ameaçadas com esse destino, a psicologia de guerra foi substituída por algum grau de simpatia pelo socialismo reformista. Elas tinham a esperança de que, graças à “democracia”, o socialismo reformista poderia resultar em uma mudança global: ilusões que foram dolorosamente despedaçadas. Os socialistas reformistas impulsionaram uma política de coalizão cujos custos foram suportados não apenas por proletários e assalariados, mas também pelos funcionários públicos, os intelectuais e os níveis mais baixos e intermediários da pequena-burguesia de todo tipo.

Essas camadas carecem, em geral, de qualquer educação teórica, histórica ou política. Sua simpatia pelo socialismo reformista nunca foi profundamente enraizada. Portanto, assim que as coisas mudaram, perderam sua fé não apenas na direção reformista, mas também no próprio socialismo. “Os socialistas prometiam o alívio de nossos fardos e sofrimento, além de muitas coisas belas, e a reorganização da sociedade sobre bases de justiça e democracia”, dizem. “Mas os chefões e os ricos continuam dominando com ainda mais força que antes”. A esses burgueses decepcionados com o socialismo juntaram-se forças proletárias. Todos os desiludidos – de origem burguesa ou proletária – contudo, abandonam uma força intelectual preciosa que permitiria a eles vislumbrar um futuro de esperança e luz para além do presente sombrio. Essa força é a confiança no proletariado como a classe que reconstruirá a sociedade. A traição dos líderes reformistas não pesa tanto sobre a atitude dessas forças desiludidas quanto um outro fato: que as massas proletárias toleram essa traição, de que elas continuam aceitando o jugo capitalista sem rebelião ou resistência, de que vieram a aceitar um sofrimento ainda mais amargo que o de antes.

Além disto, para falar com justeza, preciso acrescentar que também os partidos comunistas, à exceção do russo, possuem responsabilidade pelo fato de que mesmo no interior do proletariado existam pessoas desiludidas que se jogaram nos braços do fascismo. Muito frequentemente as ações desses partidos têm sido insuficientemente firmes, suas iniciativas carecem de escopo e atingem as massas inadequadamente. Não me refiro a erros políticos que levaram a derrotas. Não há dúvidas de que muitos dos proletários mais ativos, enérgicos e de pensamento revolucionário ainda não encontraram seu caminho, ou se desviaram de nós porque não nos acharam enérgicos e agressivos o suficiente. Não conseguimos conscientizá-los o suficiente do porquê também nós, em determinadas ocasiões, precisamos nos conter mesmo que contra nossa vontade e com boa justificativa.

O caráter de massas do fascismo

As massas aos milhares se juntaram ao fascismo. Ele se transformou em um asilo para todos os desabrigados políticos, os socialmente desenraizados, os destituídos e desiludidos. E o que as massas não esperavam mais da classe proletária revolucionária e do socialismo, agora esperam que seja atingido pelos elementos mais capazes, fortes, determinados e impetuosos de todas as classes sociais. Todas essas forças deveriam unir-se em uma comunidade. E essa comunidade, para os fascistas, é a nação. Imaginam erroneamente que a disposição sincera para a criação de uma realidade social nova e melhor é poderosa o suficiente para superar todos os antagonismos de classe. O instrumento para atingir os ideais fascistas é, para eles, o Estado. Um Estado forte e autoritário que será sua própria criação e ferramenta obediente. Tal Estado irá elevar-se sobre todas as diferenças entre partidos e classes, e remodelará a sociedade de acordo com sua ideologia e programa.

É evidente que, em se tratando de composição social, o fascismo envolve forças que podem ser extremamente desconfortáveis e mesmo perigosas para a sociedade burguesa. Iremos além e diremos mesmo que esses elementos, se chegarem a entender seus próprios interesses, devem ser perigosos para a sociedade burguesa. Precisamente! Se emergir essa situação, então tais forças devem fazer o que for necessário para se certificarem de que a sociedade burguesa seja esmagada o mais rápido possível e o comunismo alcançado. Apesar disso, os acontecimentos até aqui têm mostrado que as forças reacionárias têm contido e passado para trás as revolucionárias no interior do fascismo.

O que vemos aqui é análogo aos acontecimentos em outras revoluções. A pequena-burguesia e as forças sociais intermediárias inicialmente vacilam entre os poderosos campos históricos do proletariado e da burguesia. São levadas a simpatizar com o proletariado por conta das dificuldades em suas vidas e, em parte, pelos desejos nobres e ideais elevados em seus espíritos, na medida em que este aja de forma revolucionária e apresente perspectivas de vitória. Sob a pressão das massas e de suas necessidades, e influenciados por essa situação, até mesmo os líderes fascistas são forçados a, minimamente, flertar com o proletariado revolucionário, ainda que não possuam por ele qualquer simpatia. Mas ao se tornar claro que o próprio proletariado abandonou o objetivo de levar adiante a revolução, que está se retirando do campo de batalha sob a influência dos líderes reformistas, por medo da revolução e respeito aos capitalistas – a esse ponto as amplas massas fascistas encontram seu caminho até o local em que a maioria de seus líderes já estava, consciente ou inconscientemente, desde o início: ao lado da burguesia.

A burguesia e o fascismo

Naturalmente, a burguesia dá boas-vindas a seus novos aliados com ânimo. Vê neles um crescimento grande em seu poder, um bando especial preparado para toda forma de violência a seus serviços. A burguesia, acostumada a governar, infelizmente é muito mais experiente e conhecedora de como julgar a situação e defender seus interesses de classe em comparação ao proletariado, o qual é acostumado com seu jugo. Desde o início, a burguesia compreendeu nitidamente a situação e, dessa forma, a vantagem que ela pode obter com o fascismo. O que quer a burguesia? Ela está empenhada na reconstrução da economia capitalista, ou seja, na manutenção de sua dominação de classe. Sob as atuais circunstâncias, a pré-condição para atingir esse objetivo é uma intensificação e um crescimento consideráveis da exploração e opressão sobre a classe trabalhadora.

A burguesia está inteiramente ciente de que sozinha ela não possui os instrumentos de poder necessários para impor esse destino aos explorados. Atormentado pelos escorpiões do recrudescimento da pobreza, até mesmo o proletário mais calejado começa a se rebelar contra o capitalismo. A burguesia só pode concluir que, com o passar do tempo, sob tal situação, até mesmo os sermões mansos e conciliatórios dos socialistas reformistas perderão seu efeito entediante sobre o proletariado. Ela passa a entender que o proletariado agora só pode ser explorado e subjugado através do uso da força. Mas os meios de força disponíveis para o Estado burguês começam, em parte, a ruir. O Estado está perdendo a capacidade financeira e a autoridade moral necessária para manter a subserviência e a lealdade cega de seus escravos. A burguesia não pode mais confiar nos meios de força regulares de seu Estado para garantir sua dominação. Para tal, ela precisa de um instrumento de força extralegal e paramilitar. O que foi oferecido pelo aglomerado heterogêneo que constitui a turba fascista. Esta é a razão pela qual a burguesia oferece a sua mão para o beijo fascista, permitindo-lhes completa liberdade de ação, contrariando a tudo que está inscrito ou não nas leis. Ela vai além. Ela nutre o fascismo, sustenta-lhe e promove seu desenvolvimento com todos os meios à sua disposição em termos de poder político e reservas bem guardadas de dinheiro.

É evidente que o fascismo tem características diferentes em cada país, devido a circunstâncias específicas. Independente disso, em toda parte possui dois traços essenciais: um programa revolucionário fraudulento, que se liga de forma extremamente esperta com os humores, interesses e necessidades de amplas camadas sociais; e o uso do violento e brutal terror.

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