José Carlos Mariátegui – União de Repúblicas Socialistas da América-Latina

Texto traduzido de Política Revolucionaria contribución a la crítica socialista: la escena contemporânea y otros escritos Tomo 1. Caracas: Fundación Editorial El perro y la rana, 2010.

Tradução por Jhonatan Alcântara.


(Março de 1929)

José Carlos Mariátegui é um pensador de uma síntese profunda, um visionário vigoroso.

Me foi apresentado em uma tarde, numa exposição de pinturas, pelo pintor José Sabogal. Em seu entorno havia uma roda com uma dezena de jovens artistas, escritores e intelectuais.

Nesse momento só pudemos trocar algumas palavras, referimo-nos aos escritores chilenos que conhecíamos ou com os quais mantínhamos contato através de correspondência. Mais tarde fui visitá-lo na sua casa, quando esse poeta maravilhoso, poeta puro, antena vibrante das mais sutis emoções, que se chama José María Eguren, o mostrava umas aquarelas, verdadeiras revelações do iluminado.

Ao reunir o pensamento da juventude peruana que estuda, que trabalha e que se prepara para assumir as responsabilidades da pátria que o destino tem preparado, acabei me aproximando de Mariátegui. E conversamos. Eu o havia dado A pousada aristocrática de Edwards. Ele concluiu a leitura e me disse:

É interessante, se lê com agrado; mas não sinto nas suas páginas a autonomia fria de um crítico. Tenho nesse livro a sensação de uma “demonstração”. Além do mais, falar da evolução política de um país e, em especial, um país americano sem se referir a sua evolução econômica, é especular nos ares; o econômico está sempre animado e palpitando na medula dos acontecimentos históricos que designamos com o nome de “político”.

Então o interroguei.

Rafael Maluenda: Como o senhor vê e interpreta o desenvolvimento econômico do Peru?

José Carlos Mariátegui: O Peru se encontra em uma etapa de crescimento capitalista. A guerra na Europa nos fez passar da moratória e do retorno as cédulas para a capitalização e lucros excessivos. A burguesia nacional, que sempre careceu, pelo menos em sua categoria dominante de latifundiários e gamonales, de um verdadeiro espírito capitalista, desperdiçou essa oportunidade de empregar inesperados recursos para sua seguridade, frente aos credores estrangeiros, uma situação mais independente, e frente as eventuais depreciações dos preços dos produtos de exportação, uma posição mais segura. Foi incapaz de coordenar e dirigir seus esforços em um sentido nacionalista. Se imaginou que os lucros excessivos não acabariam. Ostentadora, sensual por natureza e imprudente por hábito, se dedicou somente ao desperdício.

Quando os preços do açúcar e do algodão caíram bruscamente depois da guerra, os fazendeiros da costa se viram diante da impossibilidade de fazer frente aos créditos que haviam contraído para ampliar descontroladamente seus cultivos e praticamente quadruplicar seus luxos. Um grande número deles ficou, desde então, nas mãos dos seus credores: as casas de exportação que financiam nossa agricultura costeira e que regulam sua produção segundo o ritmo dos mercados estrangeiros, uma fisionomia caracteristicamente colonial. Outro fator importante foram as chuvas excessivas de 1925 que agravaram ainda mais a situação.

O volume das nossas exportações de algodão e açúcar aumentaram certamente, mas a baixa dos preços repercute negativamente na economia do país. Muitas fazendas costeiras passaram a ser propriedade das grandes empresas exportadoras, não poucos latifundiários ficaram reduzidos a condição de administradores ou curadores destes. No vale de Chicama foi operado um processo de absorção das negociações agrícolas nacionais – e ainda do comércio da cidade de Trujillo – pela poderosa empresa açucareira alemã, proprietária da fazenda central de Casa Grande.

A exploração das minas de cobre e dos campos de petróleo cresceram enormemente, mas essa utilidade enriquece as companhias estrangeiras que nada deixam no país além dos salários e uns poucos impostos pagos. A produção industrial, apesar disso, é algo ainda muito escasso. Suas possibilidades de desenvolvimento são naturalmente limitadas; porém as limita ainda mais a dependência do nosso movimento ao capitalismo estrangeiro. O capital europeu e norte-americano não tem interesse que estes outros países sejam outra coisa que não depósitos de matérias primas e mercados de consumo da indústria da Europa ou da América do Norte. Temos então que resolver o problema através de uma nacionalização da nossa economia.

Rafael Maluenda: É possível que essa nacionalização dentro dos interesses e necessidades do regime capitalista?

José Carlos Mariátegui: Aqui temos uma pergunta que cada um responderá sempre com um critério mais subjetivo que objetivo. Eu não pretendo escapar a essa regra; mas acho que de todos os modos que a crítica de um intelectual que, ainda que obedeça a uma filiação doutrinal, não pode deixar de levar em conta os dados da realidade. É mais livre, mais desinteressada que a do negociante ou a do advogado ligado absolutamente por suas conveniências ao regime capitalista.

Me parece evidente que o grau a que chegou o capitalismo mundial, em sua organização industrial e financeira e na sua distribuição de mercados ou sua concorrência entre eles, exclui a possibilidade de que se possa desenvolver com autonomia nacional novos capitalismos. Estamos em uma época de imperialismo e de colonização inevitáveis. O Peru, como os demais países latino-americanos em análogo estado de evolução econômica, não pode ignorar esta lei.

As consequências da baixa dos preços da nossa agricultura costeira seriam sentidas de forma mais marcante, na situação econômica e financeira geral do país, se a política de empréstimos que se investem em parte em trabalhos políticos e o resto se aplicam a cobrir déficits das atividades fiscais, não diminuíssem seu efeito. Esta política, por outro lado, se reflete na formação de uma categoria de profiteurs, que compensa a classe capitalista nacional da baixa de seus latifundiários algodoeiros e açucareiros.

Rafael Maluenda: Que papel e que significado as classes sociais têm na história e formação da nacionalidade peruana?

José Carlos Mariátegui: Sem dúvida há muito que falar sobre esse tópico. Porém não caberia tudo dentro dos limites de uma entrevista. Me limitarei a algumas observações. A primeira é que a população indígena viveu em um quase ostracismo quando falamos de nacionalidade. A vida social de Colônia nos legou mais um sistema de castas que um sistema de classes sociais. A revolução da Independência não cumpriu sua função de revolução liberal por falta de uma burguesia que realizasse seus ideais. Se nessa época no Peru houvesse um campesinato apto para se apropriar desses ideais, o latifúndio feudal não pesaria tanto, como pesa até hoje, na evolução política, social e econômica da República.

A caudilhagem militar foi, em nosso processo republicano, um fenômeno característico de uma sociedade em que falta uma compacta e ativa classe dirigente. Uma classe capitalista, conformada em um governo civilista, aparecem nesse processo apenas quando, somados a antiga aristocracia terratenente, os especuladores do guano e outros negócios fiscais e seus advogados, o poder econômico restabelece o poder político desta aristocracia suficientemente forte para contornar maiores problemas. O povo está visível nas lutas da República, mas como povo, ou seja, como uma soma de conjuntos, não como classe; e não existe uma elite própria como sua vanguarda. A pequena burguesia desempenhou o papel a que já me referi na formação do regime leguiísta[1]. E o fato mais importante da nossa história social desses tempos é, evidentemente, a aparição do proletariado, sua maturação como classe que se sente destinada a criação de uma nova ordem.

Rafael Maluenda: Existem ideais unificadores entre os intelectuais e os trabalhadores peruanos?

José Carlos Mariátegui: Os intelectuais das novas gerações não podem se privar precisamente da influência desse fato. Além do mais, é tarde para que aspirem ser a consciência de uma burguesia progressista e robusta. Essa burguesia não existiu nunca no Peru e não depende de os intelectuais dar-lhe existência. O prestígio dos intelectuais burgueses ou liberais envelheceu. Os intelectuais que não se dirigem ao socialismo caem no que se poderia chamar um diletantismo de reação: curiosidade simpatizante, mais que uma adesão pelas teorizações fascistas e tomistas. A juventude nas universidades, depois da agitação da Reforma, não cessou de se interessar por questões sociais.

Também deste lado houve pouco diletantismo passageiro; mas algumas inteligências honradas encontraram sua vida definitiva. A tendência ideológica mais afirmativa e definida da atualidade nacional é a tendência socialista; as outras, se existem, estão ainda em formação ou simplesmente se trata de ressurreição de velhas tendências, débeis e confusamente retocadas.

Da solidariedade dos intelectuais de vanguarda com o proletariado e o campesinato resultará a força política do amanhã. Essa força já existe com potência. Muitos fatores favorecem a formação de um partido socialista, que dê um programa e um rumo as massas trabalhadoras e campesinas. Com a liquidação dos velhos e débeis partidos, se produziu uma substituição dos antigos temas políticos pelos temas econômicos. Neste terreno, nenhuma doutrina se move com mais segurança que o socialismo.

Alguns dirão que nós que trabalhamos pelo socialismo no Peru não temos reivindicações imediatas e, por conseguinte, nos distanciamos das necessidades presentes, concretas, das massas. Mas isso está incorreto. Reivindicamos o direito das massas trabalhadoras e camponesas a liberdade de associação, a organização sindical. Reivindicamos para as comunidades e camponeses o direito a terra. Os índios sabem que somos contra o alistamento rodoviário[2], contra todas as formas de servidão subsistentes, contra o latifúndio feudal.

Rafael Maluenda: Como julga a Ud. frente a realidade peruana, o problema de Tacna e Arica? Que projeto atribui a Ud. em um futuro americano para a unidade material e moral dos nossos países?

José Carlos Mariátegui: Quero opinar sobre essa questão, longe de toda compreensão circunstancial ou oportunista, por ser no Peru um dos escritores que não acendeu a fogueira do revanchismo. Uma distinta escritora mexicana amiga minha me escrevia recentemente de Santiago, me convidando a contribuir com a retomada das relações entre os intelectuais dos povos. Pessoalmente não tenho que retomá-las, mas acrescentar e mantê-las, porque eu não as havia rompido.

Para a geração posterior a guerra, o problema de Tacna e Arica era sentimental e moral o problema dominante da reorganização nacional. Esta geração teve um magnifico e imaculado porta-voz: González Prada. Mas a idealização insistente de Tacna e Arica deu seu mais puro fruto na Junta Patriótica e no Apostolado de Figueredo. A geração atual descobriu o problema de quatro milhões de índios obstinados e não pôde pensar ainda como González Prada. A reivindicação de Tacna e Arica tem sido explorada pela política do feudalismo, herdeiro e continuador da Colônia, precisamente para descartar outras reivindicações. A juventude, o proletariado do Peru de hoje têm respondido fraternalmente, por isso, as palavras da juventude e o proletariado do Chile. Muitos problemas comuns nos unem para que sejamos separados por Tacna e Arica, que em um ambiente de amizade e compreensão terá melhor garantia de uma solução justa.

Se a solução é possível hoje, se deve em parte a que, apesar do chauvinismo recalcitrante, se fez já um trabalho preparatório na opinião de ambos os povos. Os demais fatores da aproximação são bem conhecidos. Não é necessário que eu me refira a eles. Econômica e praticamente, Peru e Chile são países que, como produtores, se complementam. Histórica e espiritualmente seu mais glorioso patrimônio é o das comuns e fraternas jornadas da Revolução de Independência. E enquanto ao futuro da união material e moral dos nossos países, minha esperança e meu augúrio são: que uma confederação peruana-chilena-boliviana, ou outra mais ampla ainda, mas na que estarão nossos dois países, e assim se constituirá a primeira União de Repúblicas Socialistas da América-Latina. Uma utopia descabida? Os maiores estadistas da Europa capitalista – desgarrada por ardorosos nacionalismos, dividida por línguas, povos e tradições distintas -, declara sua adesão a uma ideia que, para eles sim, tem um caráter de utopia: os Estados Unidos da Europa. Por que a juventude do Peru e do Chile não hão de confessar seu ideal que não seria mais que uma estão do caminho aos Estado Unidos da América do Sul. [3]

[1] Período do governo de Augusto B. Leguía no Peru (1919 – 1930).

[2] A lei de Conscripción Vial no Peru se deu no governo de Augusto B. Leguía (1919 – 1930) já citado no texto, para mobilizar populações camponesas e indígenas entre 18 e 60 anos para a criação e ampliação de rodovias sob o paradigma modernizador do território peruano. Política impositiva que na maioria dos casos colocava estas populações em situação de trabalho forçado, servidão.

[3] Mariátegui através da revista Amauta – e em seu nome -, nas páginas 15 e 16 do Nº23, defende a “posição fraternal” da esquerda peruana, e denuncia a hipócrita demagogia dos latifundiários que faziam propagandas chauvinistas desde o Governo e que, nas costas do povo, vendiam ao Chile seus produtos (Alberto Tauro del Pino, 1960). É precisamente neste artigo “O arranjo peruano-chileno” de maio de 1929 em que Mariátegui prognostica a União das Repúblicas Socialistas da América Latina pela primeira vez em um texto escrito da sua mão e com suas palavras. É breve e se transcreve a continuação completa na entrevista: “Se houve no Peru, nos últimos anos, uma tendência que teve, frente a questão de Tacna e Arica, uma posição limpa e realista, foi a da esquerda. Desafiando o chauvinismo territorial, cultivado pela política burguesa, a juventude e o proletariado de vanguarda do Peru estenderam a mão à juventude e o proletariado de vanguarda do Chile, que antes havia dado provas explícitas do seu repúdio da ‘chilenização’ e detenção de Tacna e Arica. Gómez Rojas e Vicuña Fuente são nomes que relembram sempre essa proposta, ditada por um nobre espírito de justiça assim como de fraternidade e reconciliação.

A burguesia e o gamonalismo, pelo contrário, não renunciaram nunca a especulação política, frente a esta questão, da que tem se servido, explorando o sentimento popular para distrair as massas das suas reivindicações de classe e, às vezes, para proibi-las. Os partidos e os políticos têm competido na tarefa de excitar um ‘reivindicacionismo’ intransigente na opinião pública: ‘reivindicacionismo’ que degenerava com frequência em um frenético clamor revanchista. A plutocracia açucareira que desde 1919 deteve em suas mãos o poder, e que obtinha uma parte dos seus lucros da exploração do açúcar no Chile, se esmerou em uma declaração, afirmando a inegociável reivindicação de Tacna e Arica como uma questão de honra e sentimento, resultando na sua obra prima de simulação e hipocrisia. As facções políticas se vigiavam e se bloqueavam uns aos outros para impedirem toda tentativa de liquidação. Quando um governante de visão progressista e prática como o senhor Billinghurst se atrevia a uma rediscussão da questão, o caluniavam por esse ato como um traidor, cobrando-o na crítica de sua gestão internacional o rancor por suas tendências radicais e anti-oligárquicas na política interna. E, em 1919, ao abater a oligarquia açucareira, ainda que para vencê-la bastava um programa populista que satisfizesse as exigências da pequena burguesia, se recorreu de novo, sem as reservas que a situação exigia, a plataforma revanchista. De um lado, a especulação, do outro o romantismo e a retórica, impediram a formação de um juízo exato sobre este problema internacional. Os homens do movimento radical ou gonzález-pradista pertenciam a uma geração sobre a qual atuavam demasiadamente imperiosa e imediatamente as reações sentimentais da derrota. O movimento esquerdista da juventude intelectual, que a medida que maturava ideológica e historicamente se define e concretiza como movimento socialista, carente de precursores para adotar um gesto novo, não contava com nada mais do que o instinto de classe do proletariado. A luta com os sentimentos mantidos pela demagogia burguesa e pequeno burguesa era muito desigual e difícil. Nesta atmosfera se propagou, nos primeiros instantes da paz wilsoniana, a ilusão da justiça da Sociedade das Nações; e, mais tarde, substituiu o método de Wilson pelo de Hughes nos negócios de Washington, a ilusão da justiça dos Estados Unidos.

O Peru chegou na hora da prestação de contas com a realidade. O que de estranho tem que, frente ao acordo, o sentimento revanchista estimulado sistematicamente pela política burguesa, tenha feito, sem estender-se esta vez a classe trabalhadora, e com escasso eco nas mesmas classes médias, sua última e exacerbada aparição? O tratado que auspiciou América do Norte fracassado seu julgamento, é ao mesmo tempo que a liquidação da derrota de 83, a liquidação daquela política.  

Somos dos poucos que não têm que mudar de atitude nem ensaiar um raciocínio novo. Há dois meses declarava o diretor desta revista ao redator de “El Mercurio”, senhor Maluenda, em uma entrevista que ficou inédita até hoje, me parece que por questões de diplomacia jornalística: ‘Minha esperança e minha vontade são que uma confederação peruano-chilena-boliviana ou outra ainda mais ampla, mas na qual entrarão nossos países, constituirá a primeira União de Repúblicas Socialistas da América Latina’. “Amauta” representa o único setor isento de responsabilidade nas especulações chauvinistas. Tribuna do socialismo peruano, dirige sua atenção aos problemas que como Tacna e Arica serviu de razão para adiar e esquecer. Em suas páginas, colaboraram escritores e artistas chilenos sinceramente comprometidos com a reconciliação de ambos os povos.

Hoje sua solidariedade fraterna acompanha os trabalhadores, intelectuais e professores que, representantes da mesma causa histórica, lutam no Chile contra o regime reacionário do general Ibáñez. Ao partido e os sindicatos da classe trabalhadora, aos grupos de intelectuais revolucionários que esse regime fascista pretende aniquilar com suas perseguições carniceiras, lhes ofereço a saudação do “Amauta”. Essa saudação é, também, nosso voto.”

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