Escrito por Fahad Ali.
Publicado em 14 de fevereiro de 2022.
Originalmente disponível no site Palestine Studies.
Tradução por Gustavo F. Costa e Silva.
Em seu ensaio, A Moment in Ramallah, John Berger escreve:
Há muito tempo, casais recém-casados plantavam rosas nos jardins de Ramallah como um augúrio para sua futura vida juntos. O solo aluvial era adequado para as rosas. […] Hoje, não há um muro no centro da cidade de Ramallah, agora capital da Autoridade Palestina, que não esteja coberto com fotografias dos mortos, tiradas quando eles estavam vivos, e agora reimpressas como pequenos cartazes.
A perda palestina é articulada através do contraste entre o passado utópico e os horrores do presente pós-Nakba. Quando pensamos nesses recém-casados felizes de tempos passados, também pensamos no futuro: haverá um tempo em que os palestinos recuperarão o que perdemos? Quando as rosas florescerão novamente nos jardins de Ramallah?
A anedota histórica de Berger pode ser apócrifa – não consigo encontrar fontes de apoio -, mas indica como o amor romântico não é puramente sentimental. Nossos desejos, nossos anseios, nossas esperanças, sexualidades e relacionamentos, tudo isso contribui e é definido pela nossa identidade como palestinos.
O amor romântico encontra a ocupação, em um sentido tangível e imediato, como visto nas políticas de apartheid que impõem segregação geográfica aos amantes palestinos. A caducada Lei da Cidadania, que impede cidadãos palestinos de Israel de obter autorizações de residência para seus cônjuges não cidadãos, continua a ser aplicada extrajudicialmente pelo ministro do interior de Israel, Ayelet Shaked – que se referiu às crianças palestinas como “pequenas cobras” – enquanto planos de renovação dessa lei estão sendo encaminhados. Essa é apenas uma das muitas políticas de facto e de jure que buscam manter os palestinos geograficamente fragmentados, e, portanto, limitados no tocante a quem eles podem amar, com quem casar e com quem viver.
Isso leva a absurdos cruéis: se um casal palestino não possui a mesma permissão de residência ou categoria de identificação sob a lei israelense, eles não podem viver juntos a menos que se mudem para o exterior. Noura Mansour, uma cidadã palestina de Israel, escreveu recentemente sobre sua experiência surreal de participar de sua própria festa de casamento na Akka ocupada sem o marido porque o governo israelense não lhe concedeu um visto. Ela não é a única: o projeto ‘Love Under Apartheid’, fundado e curado por Tanya Keilani, documentou instâncias semelhantes de separação conjugal. Mohammed, um palestino-americano noivo de Marjan, palestina com carteira de identidade da Cisjordânia, foi forçado a se casar em Chicago porque o governo israelense negou-lhe a entrada na Cisjordânia. Amer, de Gaza, se apaixonou e ficou noivo de uma palestina da Cisjordânia por dois anos. Devido ao bloqueio israelense a Gaza – agora em seu 15º ano – ele não pôde deixar a Faixa. Apesar de muitas tentativas malsucedidas de união, o casal foi forçado a cancelar o noivado.
Como um palestino exilado que nunca pisou na Palestina, meu próprio sentimento de perda é mediado pela família, história oral, arte e narrativa. Eu me pergunto: como seria voltar e caminhar pelas avenidas da minha cidade ancestral de Arraba? Se eu tiver filhos, eles poderão brincar no mesmo solo e entre as árvores da infância dos meus avós? Eu só vi minha terra natal em fotos, filmes, imagens de satélite e reels do Instagram. Imagino como seria sair dessa prisão pixelada e entrar na verdadeira Palestina.
Para mim, essas questões estão necessariamente ligadas ao amor. Meu anseio por um lar não é apenas sobre o lugar, mas também sobre as pessoas. Quero poder viver na Palestina entre amigos, familiares e namorados. Esses impulsos nos conectam com o futuro, como explica Keilani:
“Quando encontramos um parceiro, pensamos em nosso futuro: onde vamos morar; que tipo de lar criaremos; se gostaríamos de ter filhos; se sim, quantos – porém, planejar um futuro juntos não é o mesmo para os palestinos”.
Isso é particularmente verdadeiro para os palestinos queer. Como homem gay, muitas vezes me pergunto qual será o meu lugar em uma Palestina libertada. Embora as comunidades palestinas tanto na própria Palestina quanto na diáspora não sejam religiosa, política ou ideologicamente homogêneas – e certamente não sejam essencialmente homofóbicas como o regime sionista gostaria que as pessoas acreditassem – precisamos confrontar a homofobia onde ela existe.
Stéphanie Latte Abdallah escreveu um estudo sobre o matrimônio nos campos de refugiados palestinos na Jordânia, publicado no Journal of Palestine Studies. Abdullah traçou posturas em relação ao casamento em quatro gerações de mulheres nos campos de refugiados, começando com a geração pré-Nakba de mulheres nascidas antes de 1938. Em contraste com mulheres mais velhas, as mulheres da terceira geração, que atingiram a maioridade durante as décadas de 1970 e 1980, eram cada vez mais capazes de se casar por amor e em suas próprias condições. Essa foi uma ruptura significativa quanto à política sexual e relacional “tradicional”, na qual mulheres se casavam jovens e muitas vezes por meio de arranjos familiares. Embora essa revolução social tenha sido incompleta, a mobilização política das mulheres nesse período, apoiada pelo otimismo e energia do emergente movimento de libertação da Palestina, proporcionou-lhes certas liberdades no tocante às normas e expectativas do patriarcado.
Embora tome cuidado para não generalizar demais essas descobertas, traço aqui um paralelo: mobilização e visibilidade queer na Palestina são, até certo ponto, possíveis graças ao atual movimento de libertação da Palestina, ao mesmo tempo em que são desafiadas por ele. Amor queer e libertação das mulheres são inerentemente transgressores, e representam uma ameaça dupla ao regime de Israel e ao poder heteropatriarcal na sociedade palestina.
Representações convencionais de amor queer na Palestina estão frequentemente confinadas ao cinema israelense. Os dois exemplos mais flagrantes, The Bubble (2006) e Out in the Dark (2012), buscam ostensivamente criticar o regime israelense, mas ao fazer isso reproduz orientalismos e narrativas do salvador branco sobre palestinos gays. Essa contorção colonial da identidade palestina funciona para neutralizar o potencial revolucionário de políticas queer e preservar relações de poder subjacentes que mantêm a ocupação.
Precisamos articular e expressar nossas identidades nos nossos próprios termos. A cena final de It Must Be Heaven (2019), da diretora palestina Elia Suleman, acontece num bar gay em Haifa, e serve tanto como o ápice do filme quanto como comentário sobre o futuro da causa palestina. Essa sequência de cinco minutos foi mais autêntica e poderosa do que os longas-metragens israelenses que tentam mostrar o Outro exótico gay palestino.
Até certo ponto, o período pré-Nakba é mitificado na imaginação popular palestina – apesar das roseiras de Berger, as mulheres se casavam jovens, geralmente sem escolha, e a maioria era analfabeta, como mostra a pesquisa de Abdullah. Ao mesmo tempo, embora o conceito de amor romântico não tenha figurado nas relações sociais, seria errado dizer que era totalmente ausente. De fato, a cultura folclórica palestina é rica em representações de amor romântico, e canções de amor folclóricas como Wein ‘a Ramallah (وين ع رام الله) e Tarweedeh Shmaali (ترويدة شمالي) foram reaproveitadas no pós-Nakba como hinos de resistência e nosso inevitável retorno.
O trauma da Nakba ameaça nos prender no tempo. Mas está claro que o futuro não pode apenas replicar o passado – ele deve superá-lo. Nosso futuro palestino deve ser aquele em que todos possamos amar como e quem escolhermos, livres da repressão do regime israelense e do domínio patriarcal dentro de nossas próprias comunidades.
Esse é o futuro que quero construir – um futuro em que os palestinos não sejam mais separados por fronteiras, muros ou carteiras de identidade; um futuro onde meu amado e eu possamos plantar rosas no solo que foi cultivado e tem sido cultivado por gerações de palestinos livres.