Claudia Jones – As mulheres negras podem pensar, falar e escrever!

Originalmente disponível no livro “Claudia Jones – Beyond Containment”, organizado por Carole Boyce Davies.

Tradução por Guilherme Henrique

Declaração feita antes de ser condenada a um ano e um dia de prisão pelo Juiz Edward J. Dimock após um julgamento de nove meses de 13 líderes comunistas na Foley Square, Nova York, 1953

Vossa Excelência, há algumas coisas que gostaria de dizer. Porque se o que eu digo aqui serve pelo menos para que milhões de norte-americanos se dediquem cada vez mais à luta pela paz e para repelir o ímpeto fascista contra a liberdade de expressão e pensamento em nosso país, considerarei que vale a pena falar.

Muito francamente, Vossa Excelência, digo estas coisas sem ter a menor ideia se o que eu disser influenciará sua sentença sobre mim. Pois, mesmo com todo o poder que Vossa Excelência detém, como o senhor pode decidir fazer justiça pelo único ato pelo qual me declaro orgulhosamente culpada, e que, além disso, por suas próprias decisões anteriores não constitui crime – o de defender ideias comunistas; de ser membro e dirigente do Partido Comunista dos Estados Unidos?

O senhor avaliará, por exemplo, como digno de um ano de sentença, minha adesão apaixonada à ideia de lutar pela plena e inequívoca igualdade para meu povo, o povo negro, que, como comunista, acredito que só pode ser alcançada aliada à causa da classe trabalhadora?

Um ano para mais uma convicção comunista fundamental, de que a guerra da Coreia é uma guerra injusta? Ou minha convicção de que a coexistência pacífica das nações pode ser alcançada e a paz conquistada se lutarmos por ela?

Mais um ano para minha convicção de que somente sob o socialismo a exploração do homem pelo homem será finalmente abolida e os grandes recursos humanos e industriais da nação serão aproveitados para o bem-estar do povo?

Mais um ano para minha convicção de que a negação do exercício da liberdade de expressão e pensamento aos comunistas só precede, como a história confirma, a negação do exercício destes direitos a todos os norte-americanos?

Et cetera, Excelentíssimo juiz?

É claro que Vossa Excelência pode escolher outro caminho para a sentença

O senhor sem dúvida optará como base para a sentença as mentiras que se fabricam tranquilamente a partir dos bem pagos pombos correios e informantes que desfilaram diante de você aqui e deram as chamadas provas que o Tribunal afirmou serem “amplamente fundamentadas”.

“Amplamente fundamentadas”, Vossa Excelência? O que tem sido amplamente fundamentado? As mentiras de testemunhas degeneradas como Younglove, que só podem ser comparadas às de Van Der Lubbe¹, no famoso julgamento do Reichstag? A desprezível admissão forçada dos negros que foram testemunhas de Cummings que riram ao pensar em seus 10.000 dólares de Judas, que sacudiam em seu bolso, quando ele disse que viraria informante de sua própria mãe por uma bagunça do promotor?

O zumbido infeliz e indescritível do outro informante negro Rosser, que deturpou tudo usando seu bem-memorizado roteiro, e até mesmo, de acordo com a insinuação de Vossa Excelência, transformando em entoações meio-inteligíveis, “eu não sei do que você está falando”, para citar apenas alguns exemplos!

“Amplamente fundamentadas” De fato! Esta “evidência!”

Não houve um registro oficial suficientemente sólido, Vossa Excelência, para legitimar a obscenidade deste julgamento de ideias. Portanto, aceitar a sentença como culpada significaria apenas que eu me considero menos que digna da verdade, que prezo como comunista e como ser humana e também inadequada ao total desprezo com que considero tais atuações sórdidas.

É por isso que agora, como ao longo deste julgamento das ideias do marxismo-leninismo, eu descubro que somos nós, os réus, que somos moralmente livres e, pelo contrário, são os promotores e a própria Corte que ficam nus diante da Declaração dos Direitos, da Constituição e do povo de nosso país.

É isto, Vossa Excelência, que explica a razão não tão estranha, que o senhor mesmo observou, que não nos sentimos culpados. Embora seja verdade que o promotor tem sua sentença forjada sobre uma acusação e um julgamento forjado, não somos nós, réus comunistas, que trememos nesta fase final destes processos judiciais, mas os próprios acusadores de nossas ideias.

Na verdade, a vitória da acusação é tremenda. Pois nossas ideias foram reafirmadas durante o próprio julgamento.

Foi o mundialmente conhecido Karl Marx, fundador da ciência marxista-leninista, cuja aplicação das ideias às condições históricas americanas e mundiais somos tão temerosamente convictos, que há muito tempo prevíamos que “chegaria o momento em que os poderes já não viveriam mais segundo o próprio direito que eles mesmos estabeleceram.”

Nas bibliotecas e nas grandes instituições de ensino e sim, Vossa Excelência, particularmente nos lares dos trabalhadores negros e brancos, não será essa a interpretação? – que não vai deter-se com este ou qualquer outro julgamento da Smith Act² – não irão os homens, as mulheres e os jovens pensar e ponderar que tal momento chegou?

O processo de reflexão, como Vossa Excelência bem sabe, é um processo que desafia o cárcere. Quando isso tudo ferver, não são as políticas e práticas de nossos promotores – que se assemelham à prática do Estado policial – que virão à tona, mas seu medo desesperado do povo. Nada indica isso mais, Vossa Excelência, do que nossa exposição do júri tendencioso proveniente de um sistema que praticamente exclui Negros, Porto Riquenhos e Trabalhadores Manuais. Esta exclusão não existe por falta de qualificações ou mesmo por dificuldades financeiras, mas por causa da discriminação deliberada baseada no preconceito da classe dominante de supremacia branca cultivada conscientemente, que domina nossa arrogante cultura ocidental.

Este preconceito consciente da supremacia branca, que o Sr. Perry tão bem apontou, foi demonstrado na manipulação cuidadosa pelos promotores e, muitas vezes, pelo Tribunal, do calcanhar de Aquiles desta suposta acusação de “força e violência” contra nós em relação à questão negra.

Apresenta-se na página de rosto da acusação que Claudia Jones escreveu um artigo durante o período de acusação, mas você não ousa ler nem mesmo uma linha dele, mesmo para um júri tendencioso, no qual estava sentado um jurado negro solitário, lá por mero acidente, já que ele foi um suplente durante a maior parte do julgamento. Não ousam, senhores da acusação, aceitar que as mulheres negras possam pensar, falar e escrever!

Além disso, vocês não ousam lê-lo porque o artigo não só refuta a afirmação de que a classe dominante jamais concederá igualdade a 15.000.000 negros americanos, mas mostra que o que nos é concedido é a violência e a força desmedida não apenas no crime bárbaro e impune do linchamento, mas na alimentação, na existência cotidiana, na vida, nas forças armadas, nas prisões, na negação da terra, na recreação – sim, mesmo nos cemitérios das nações.

A acusação também anulou o ato manifesto que acompanhou a acusação original da ré Jones intitulado “Mulheres na Luta pela Paz e Segurança”, e por quê, Vossa Excelência? Não pode ser lido, Vossa Excelência – ela insta as mães americanas, negras e brancas, a imitarem as lutas pela paz de suas irmãs antifascistas na América Latina, nas novas democracias europeias, na União Soviética, na Ásia e na África para acabar com a guerra da Coréia para acabar com a “operação assassina”: trazer nossos meninos para casa, rejeitar a ameaça militarista de nos envolver em uma guerra com a China, para que seus filhos não sofram o destino dos bebês coreanos assassinados por bombas de napalm de B-29s, ou o destino de Hiroshima.

Tudo isso não é mais do que uma prova de que também fomos julgados por nossa oposição às ideias racistas, parte integrante do impulso desesperado dos homens de Wall Street para a guerra e o fascismo?

Um pensamento atravessou-me ao longo deste julgamento e me permeia ainda, e é o seguinte: Durante os nove meses e meio deste julgamento, milhões de crianças nasceram. Eu falo apenas daqueles que vivem. O futuro dessas crianças, incluindo os de nossos réus e até mesmo os netos de Vossa Excelência, será tornado mais seguro pela prisão de 13 homens e mulheres comunistas cujos crimes não são atos criminosos, mas a defesa de ideias? Não é isto uma violação tirânica do sonho americano de “vida, liberdade e busca da felicidade”?

Foi em uma escola secundária americana onde conheci as grandes tradições de liberdade popular da história americana, pela qual recebi então o Prêmio Theodore Roosevelt de boa cidadania.

O fato de eu ter aprendido a interpretar essa história e a trabalhar para influenciar sua mudança para a melhoria da população com a arma indispensável das ideias marxistas-leninistas, esse é o verdadeiro crime do qual sou acusada.

De todas as outras acusações, sou inocente.

Foi aqui neste solo (e não como o Sr. Lane descreveria para esta Corte, como uma criança de oito anos de idade acenando palavras de ordem revolucionárias), que eu tive experiências precoces que são compartilhadas por milhões de negros nativos – a indignidade amarga e a humilhação da cidadania de segunda classe, o status especial que ridiculariza as louváveis reivindicações do nosso governo de uma “América livre” em um “mundo livre” para 15 milhões de negros americanos.

Foi a partir de minhas experiências com as leis Jim Crow como jovem negra, experiências igualmente nascidas da pobreza da classe trabalhadora que me levou em minha busca do porquê dessas coisas terem que ser, que me levou a entrar na Liga dos Jovens Comunistas e a escolher, aos 18 anos, a filosofia de minha vida, a ciência do marxismo-leninismo – essa filosofia que não só rejeita as ideias racistas, mas é a antítese delas.

Nesta sala de audiências, muitas vezes me foram apresentadas as dezenas de reuniões de trabalhadores negros e brancos nas grandes fábricas de automóveis do Rouge, de trabalhadores têxteis da Nova Inglaterra, de estudantes e de mulheres ativas na luta pela paz que dirigi em nome do meu partido. Assim como agora, há flashes na minha mente daquelas jovens negras que vi na Casa de Detenção Feminina, quase crianças, mas pela minha descoberta precoce do marxismo-leninismo, eu tenho que dizer agora. “Poderia ter estado lá”.

Por quais crimes? Pequenos crimes que tem origem na pobreza, no gueto, na vida das leis Jim Crow, no crime de nascer negro em solo americano, de resistir a repressão, rebelar-se contra tudo sem canalizar esse sentimento, tornar-se fora da lei contra essa a mesma sociedade do Jim Crow que faz perpetuar a vida fora da lei.

Basta ser negro na América para saber que pelo crime de ser negro somos diariamente condenados por um governo que nos nega direitos democráticos básicos, o direito de votar, de exercer cargos, de ser juiz, de servir em júris, direitos negados à força no Sul e também no Norte. E quero concordar com a proposta do Sr. Perry para o Sr. Lane que ele recomenda ao Departamento de Justiça que eles demonstrem mais zelo, já que nunca processaram um único antissemita ou um Klu Kluxer nestes Estados Unidos com seu total de 5.000 homens, mulheres e crianças negras linchadas desde os anos 1860.

Estou ciente de que estas coisas não são do agrado da acusação ou mesmo desta Corte, mas isso não poderia ser evitado, pois uma das verdades históricas, de toda a história, é que os oprimidos nunca reverenciam seus opressores.

Agora chego ao encerramento. O funcionário da liberdade condicional que me interrogou era um funcionário negro. Sem dúvida, Vossa Excelência tem seus relatórios diante de você. Uma das perguntas que ele me fez foi se eu alguma vez acreditei em alguma religião. Eu lhe disse então que este era um assunto pessoal e privado e que estava garantida sob a Primeira Emenda da Constituição. Pergunto-me agora, Vossa Excelência, se ele de alguma forma considerou falsamente, como muitos oficiais falsamente consideram, que uma mudança de crença ou convicção na vida madura de alguém é como vestir um vestido novo ou um chapéu novo? Eu poderia ter citado as Escrituras para ele, as Escrituras apresentadas por um importante figura religiosa negra em homenagem no cumprimento da Smith Act, da prisão de um dos filhos notáveis do povo negro, Ben Davis, agora encarcerado na Penitenciária Federal Jim Crow de Terre Haute, Indiana. A Escritura segue: “Aniquilem o Pastor e as ovelhas serão dispersas!”

E este, ilustre Juiz, é exatamente o propósito de todos os julgamentos da Smith Act, este em particular. Partilho a fé de Elizabeth Gurley Flynn e Pettis Perry e meus co-réus, de que o povo trabalhador americano, Negro e Branco, certamente se levantará, não como ovelhas, mas com toda cautela em direção à sua liberdade, para assegurar que a paz vencerá e que a decadente Smith Act, que viola a Carta de Direitos, será varrido da história.

Foi o grande Frederick Douglass, que tinha um preço pela sua cabeça, quem disse: “Sem luta, não há progresso”. E ecoando suas palavras surge a resposta do grande poeta abolicionista, James Russell Lowell: “Os limites da tirania são proscritos pela medida da resistência a ela.”

Se, fora desta luta, a história avaliar que eu e meus co-réus fizemos uma pequena contribuição, considerarei meu papel pequeno de fato. As gloriosas façanhas de heróis e heroínas antifascistas, hoje honradas em todas as terras por sua contribuição ao progresso social, serão, assim como o papel de nossos promotores, também medidas pelo povo dos Estados Unidos nos dias que estão por vir.

 Concluo, Vossa Excelência.

Notas da tradução:

  1. Marinus van der Lubbe foi um militante antifascista nascido nos Países Baixos. Foi responsabilizado pelo incêndio no Reichstag, o parlamento alemão, em 1933. Van der Lubbe foi preso, julgado por um tribunal nazista, condenado e executado em 1934.
  2. Smith Act foi uma lei promulgada em 1940 nos EUA que tornava passível de punição os que defendessem a derrubada do governo pela força ou violência, além de restringir a presença de estrangeiros no país, exigindo seu registro. Foi usada efetivamente contra comunistas e socialistas, que foram tratados como subversivos.

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