A influência de Carlos Marighella no Partido dos Panteras Negras

por Andrey Santiago

Um mês antes do assassinato do militante do Partido dos Panteras Negras Fred Hampton pela polícia de Chicago, Carlos Marighella, membro da Aliança Libertadora Nacional era assassinado pela polícia da ditadura militar brasileira.

Em apenas um mês, os comunistas perderam internacionalmente dois líderes revolucionários negros que levantaram massas e lutaram implacavelmente pela causa comunista, ambos faziam parte de organizações que eram taxadas de “terroristas” pelo Estado.

A morte de Marighella em 4 de novembro de 1969, em uma emboscada orquestrada pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do torturador Sérgio Paranhos Fleury, teve impacto significativo na sociedade brasileira e marcou um importante momento da resistência na ditadura militar: um momento de reorganização e refluxo da luta armada.

A morte de Fred Hampton em 4 de dezembro de 1969, em uma emboscada orquestrada pela polícia de Chicago, com apoio do FBI de J. Edgar Hoover, mobilizou intensamente a comunidade negra norte-americana e acentuou as lutas que eram travadas dentro e pelo Partido dos Panteras Negras, com a teoria da guerrilha urbana de Carlos Marighella exposta no “Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano” tendo um papel ativo nessas discussões.

Este texto visa explorar o desenvolvimento e a influência dos ensinamentos de Carlos Marighella na política do Partido dos Panteras Negras.

Em junho de 1969, Marighella publica o “Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano” que por meio de suas páginas estabelece as orientações que um militante revolucionário deve seguir para garantir o sucesso da luta armada no contexto urbano. Esse documento, curto em tamanho, mas grande em aprendizados, serviria enquanto instrumento de propaganda para atrair membros engajados para a luta armada no meio urbano, meio que se combinaria com a guerrilha rural e ações de massas, afim de acabar com a ditadura militar no Brasil.

Marighella, em uma de suas últimas entrevistas vivo esclarece o porquê do início das atividades de resistência por meio da guerrilha urbana, destacando que:

“Na situação de ditadura que o país está vivendo, o trabalho de propaganda e divulgação só é possível, a priori, nas cidades. Os movimentos de massas, sobretudo os que haviam sido organizados pelos estudantes, pelos intelectuais, por certos grupos de militantes sindicais, criaram, nas principais cidades do país, um clima político favorável à aceitação de uma luta mais dura (as ações armadas). As medidas antidemocráticas tomadas pelo governo (fechamento do congresso, supressão das eleições, cassação do mandato parlamentar de mais de 100 deputados e senadores, censura da imprensa do rádio e da televisão) e inúmeros atos de repressão contra estudantes, muitos professores e jornalistas, criaram um clima de revolta. A cumplicidade da população foi conseguida pelos revolucionários. A imprensa clandestina progride. As emissões piratas são recebidas favoravelmente. A cidade reúne, pois, as condições objetivas e subjetivas requeridas para que se possa desencadear com sucesso a guerrilha. No campo, a situação está evidentemente menos favorável. A guerrilha rural deve, portanto, ser posterior à guerrilha urbana, cujo papel é eminentemente tático. Por outro lado, os combatentes que lutarão nos campos terão sido testados antes, durante a luta urbana. Os mais corajosos entre eles serão enviados aos campos.” [1]

O texto é disseminado por diversas regiões do Brasil, atraindo forte atenção para a ALN. Acaba por ganhar uma dimensão internacional com influência notável no Ejército Revolucionário del Pueblo argentino, no Movimiento Revolucionário Tupac Amaru peruano e nas Fuerzas Armadas Rebeldes guatemaltecas, além de diversos outros grupos que atuaram na guerrilha urbana durante a década de 1970, na América Latina e Europa. [2]

Nos Estados Unidos, o Mini-Manual chega em 1970, com tradução por estudantes da Universidade de Berkeley na Califórnia, local de grande agitação política que contou com Angela Davis enquanto palestrante em outubro de 1969, denunciando perseguições políticas por conta de sua afiliação enquanto militante do Partido Comunista dos EUA. [3]

Há a hipótese bastante factível de que o documento chegou em mãos norte-americanas por meio de estudantes que viajaram à Cuba pela Brigada Venceremos organizada pelos Estudantes por uma Sociedade Democrática (SDS em inglês) e o governo cubano, no ano de 1970, em um período em que Cuba estava no centro das atenções dos revolucionários latino-americanos e estadunidenses. [4]

De todo modo, a figura de Marighella já era conhecida pelos Panteras Negras desde ao menos a edição de 8 de novembro de 1969 do jornal The Black Panther, que publicou o texto “Chamamento ao Povo Brasileiro” do revolucionário brasileiro, apresentando o escrito da seguinte maneira:

“O manifesto a seguir delineia os objetivos e o programa de uma das duas organizações clandestinas no Brasil que foram responsáveis pela captura do Embaixador dos EUA Elbrick. Carlos Marighella é o líder da Ação Libertadora Nacional (National Liberating Action). Anteriormente ele foi um membro dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCB).”

Um dos primeiros líderes negros ligado aos Panteras que a reivindicou Marighella foi Stokely Carmichael (considerado o Primeiro-Ministro Honorário dos Panteras), que viajou para Cuba em 1967 e participou da I Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS) entre 31 de julho e 10 de agosto, provavelmente encontrando de forma pessoal com o dirigente brasileiro.

Carmichael cita o Mini-Manual em diversos discursos durante sua estadia nos Estados Unidos, antes de viajar à África por convite de Kwame Nkrumah. Ele explicitamente cita a tática de expropriações de Marighella em seu livro “Stokely Fala” do seguinte modo:

“… quando a guerrilha mata um membro do exército ocupador, ele não leva apenas a arma que está em sua cintura, ele abre a porta e pega a escopeta.” [5]

Com a morte da Fred Hampton o Partido dos Panteras Negras passa por um intenso processo de radicalização, seu principal jornal advoga pela insurreição armada contra o governo dos EUA. Ilustrações demonstrando o conflito direto do povo com as forças armadas recheiam a edição sobre o assassinato de Hampton, com a seguinte citação de Huey P. Newton em destaque:

“Os cães policiais racistas devem retirar-se imediatamente de nossas comunidades, cessar seu assassinato cruel, brutalidade e tortura de pessoas negras, ou irão enfrentar a ira das pessoas armadas.” [6]

Huey P. Newton, um dos fundadores do Partido dos Panteras Negras, é libertado da prisão em 5 de agosto de 1970, e em uma de suas primeiras entrevistas após o período encarcerado, cita diretamente a tática de Marighella de maneira inspiradora para os Panteras:

“Nosso programa é a luta armada. Nós nos conectamos com as pessoas que estão se levantando em todo o mundo com armas, porque sentimos que somente com o poder da arma a burguesia será destruída e o mundo transformado … eu acho que [a inspiração mais importante para os Panteras Negras] não é apenas Fidel e Che, Ho Chi Minh e Mao e Kim Il Sung, mas também todos os bandos guerrilheiros que operam em Moçambique e Angola, e as guerrilhas palestinas que lutam por um mundo socialista … Os guerrilheiros que atuam na África do Sul e vários outros países tiveram grande influência. Estudamos e seguimos seu exemplo. Estamos muito interessados na estratégia que está sendo usada [por Carlos Marighella] no Brasil, que é uma área urbana, e pretendemos aproveitar ela.”

Durante este período entre 1969 e 1970, Carlos Eugênio da Paz (Comandante Clemente), que assume o comando militar da ALN relata que a organização chegou a enviar representantes para os Estados Unidos a fim de fazer contato e articular atividades conjuntas com o Partido dos Panteras Negras. Marighella tinha conhecimento da atuação dos revolucionários comunistas entre o povo negro norte-americano, notando em 1968 que:

“É necessário levar avante uma luta para liquidar o sistema capitalista nos Estados Unidos, sem a qual não haverá a libertação da população negra. Para nós brasileiros é uma questão muito séria. Um país como o nosso, com um grande percentual de negros na sua população, não pode comportar-se de outra forma numa situação como a aliança geral dos povos de toda a América Latina com a população negra dos Estados Unidos. A questão da solidariedade com o Vietnã, com a revolução cubana, da solidariedade com a população negra nos Estados Unidos são três pontos capitais na luta geral de toda a humanidade contra o imperialismo norte-americano.” [7]

As divergências políticas internas dentro do Partido dos Panteras Negras foram crescendo após o assassinato de Fred Hampton durante o início dos anos 70, com uma ala sendo liderada por Huey P. Newton (então Ministro da Defesa) priorizando atividades políticas contínuas e outra ala sendo liderada por Eldridge Cleaver (então Ministro da Informação) priorizando a insurreição armada imediata contra o governo dos EUA.

A fração de Cleaver, que estava exilado na Argélia, contou com militantes extremamente próximos da teoria da guerrilha desenvolvida por Marighella. Donald Cox, que estava na Argélia junto de Eldridge Cleaver, publica em janeiro de 1971 no jornal de The Black Panther um artigo que cita diretamente um trecho do Mini-Manual de Marighella:

“Quando uma unidade de guerrilha se move contra este sistema opressor executando um porco ou atacando suas instituições, por qualquer meio – atirando, esfaqueando, bombardeando, etc. – em defesa contra os 400 anos de brutalidade racista, assassinato e exploração, isso pode apenas ser definida corretamente como autodefesa. … Hoje, ser “violento” ou um “terrorista” é uma qualidade que enobrece qualquer pessoa honrada, porque é um ato digno de um revolucionário engajado na luta armada contra a vergonhosa ditadura militar e suas atrocidades. [grifos nossos] … UNIDADES DE GUERRILHA (grupos de autodefesa) devem ser formados e golpes devem ser desferidos contra o mestre de escravos até que tenhamos assegurado nossa sobrevivência enquanto um povo.” [8]

Donald Cox dedicou seu artigo à Jonathan Jackson (militante dos Panteras que executou uma fracassada invasão armada de um tribunal na Califórnia) e Carlos Marighella, inclusive, batizou seu filho de Jonathan Carlos Cox em homenagem aos militantes que o inspirava.

A célula do Partido dos Panteras Negras em Nova Iorque, uma das maiores e mais bem organizadas do partido nos EUA, se somou a ala que instava a insurreição armada imediata, com o grupo 21 Panteras elaborando um panfleto que defendia a luta armada nos Estados Unidos e criticava abertamente a postura gradualista do seu Comitê Central. Parte de panfleto intitulado “Carta dos 21 Panteras ao Weather Underground” dizia o seguinte:

“A única coisa que vai lidar com a força reacionária e a violência é a contra-força e a contra-violência revolucionária […] A máquina Amerikkkana e sua economia devem ser destruídas – e isso só pode ser feito com consciência política inteligente e luta armada – revolução … como afirmou Che – “A luta armada é a única solução para quem luta para se libertar” …. Revolução é – em última análise – LUTA ARMADA – revolução é VIOLÊNCIA – revolução é GUERRA – revolução é BANHO DE SANGUE! Há quanto tempo diferentes frentes de libertação nacional bem-sucedidas lutaram antes de ganhar grande apoio popular? Che declarou: “Uma revolução é um punhado de homens e mulheres sem outra alternativa a não ser a morte ou a vitória. Nos momentos em que a morte é um conceito mil vezes mais real e a vitória um mito com que só um revolucionário pode sonhar.” Você gosta de Marighella – Carlos Marighella? … “A organização revolucionária geralmente cresce por dois métodos importantes: 1) agrupamento e formação de quadros políticos para realizar reuniões e discutir documentos e programas; 2) ação revolucionária – seu método é a violência extrema e a radicalização. Escolhemos este último porque achamos que é o método mais convincente e que o primeiro leva – se não combinado com o segundo – à tática burguesa e perde a iniciativa.” … O objetivo é 1) destruir a economia – como locais de bombardeio que afetarão mais a economia; 2) roubo de dinheiro, armas e etc; 3) ataques de precisão. Fábricas de bombas, fábricas de minas, fábricas de armas e fábricas de balas são necessárias. Vamos falar sobre “danos materiais em grande escala” – essa economia deve cair – Há uma guerra em andamento.” [9]

Em 18 de novembro de 1970, apenas três meses depois de sair da prisão e meses antes da eclosão aberta das disputas internas no Partido dos Panteras Negras em janeiro de 1971, Huey P. Newton diminuiu visivelmente a consideração pela luta armada imediata, dando ênfase a sua teoria dos programas de sobrevivência e a sua tese do suicídio revolucionário. Táticas muitas vezes utilizadas de forma defensiva para garantir o apoio de setores amplos da sociedade civil estadunidense e a manutenção da inserção nas comunidades negras que atuavam.

Durante os anos seguintes, a luta interna entre as alas dos Panteras Negras, aliada a concessões políticas e a perseguição/sabotagens do FBI minaram suas possibilidades revolucionárias. Membros do setor que reivindicava de maneira mais firme as ideias de Marighella dentro dos Panteras Negras fundaram então o Exército Negro de Libertação que atuou até 1981 realizando expropriações de bancos e entrando em conflitos com a polícia.

Em 1974, Thomas J. Deakin, um agente especial do FBI em Washington redige um artigo sobre o legado de Carlos Marighella, tratando particularmente de sua influência nas organizações que lutavam pela guerrilha urbana nos Estados Unidos. O agente especial conclui sua análise notando que Carlos Marighella, Che Guevara e Regis Debray foram os principais influenciadores da teoria da guerrilha teorizada e praticada no país, com vasta influência nas atividades de organizações de esquerda e do povo negro que lutavam pela causa comunista, ele destaca que:

“Embora a história recente tenha mostrado que nem todas as campanhas de guerrilha urbana são bem-sucedidas, pode-se argumentar que as interrupções até mesmo da guerra de guerrilha urbana embrionária podem ser um catalisador autogerado, levando a novas sérias atividades revolucionárias.”

Existe uma admissão do perigo que as guerrilhas urbanas podem causar para o funcionamento ordinário do sistema capitalista. Ainda assim, somente a história e uma profunda análise concreta irão avaliar com a devida justeza a luta empreitada por estes corajosos revolucionários. Uma questão é fato: o dever de todo revolucionário continuará sempre o de fazer a revolução.

Referências

[1] “O Brasil será um novo Vietnã”: Entrevista com Carlos Marighella. Disponível aqui.

[2] CARREIRA, Eduardo José Antunes Netto. Carlos Marighella e a história do conceito ‘terrorismo’. 2020. 435 f., il. Tese (Doutorado em História) — Universidade de Brasília, Brasília, 2020. Disponível aqui.

[3] Discurso de Angela Davis e Herbert Marcuse na UC Berkeley, em 24 de outubro de 1969. Disponível aqui.

[4] CARREIRA, Eduardo José Antunes Netto. Carlos Marighella e a história do conceito ‘terrorismo’. 2020. 435 f., il. Tese (Doutorado em História) — Universidade de Brasília, Brasília, 2020. Disponível aqui

[5] DEAKIN, Thomas J. The Legacy of Carlos Marighella. Disponível aqui.

[6] BLOOM, Joshua; MARTIN JÚNIOR, Waldo E. Blacks Against Empire: The History and Politics of the Black Panther Party. Berkeley e Los Angeles. University of California Press, 2013. 540p.

[7] RIBEIRO, Maria Cláudia Badan. Experiência de luta na emancipação feminina: mulheres na ALN. 2011. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. doi:10.11606/T.8.2011.tde-26042012-163246. Acesso em: 2021-11-04.

[8] BLOOM, Joshua; MARTIN JÚNIOR, Waldo E. Blacks Against Empire: The History and Politics of the Black Panther Party. Berkeley e Los Angeles. University of California Press, 2013. 540p.

[9] BLOOM, Joshua; MARTIN JÚNIOR, Waldo E. Blacks Against Empire: The History and Politics of the Black Panther Party. Berkeley e Los Angeles. University of California Press, 2013. 540p.

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